De há muito o nosso sistema processual admitia a possibilidade de ajuizamento de demandas formalmente judiciais, voltadas exclusivamente à produção de conteúdo probatório e em caráter antecedente à regular fase instrutória do procedimento comum (v., a propósito, Flávio Luiz Yarshel, Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova, São Paulo, Malheiros, 2009).
Para não haver dúvida, o vigente Código de Processo Civil regrou expressamente a produção de provas despida dos pressupostos — urgência e risco de perecimento — que, no passado, possibilitavam a excepcional colheita da prova ad perpetuam rei memoriam. É o que se infere, com todas as letras, do disposto no artigo 381: “A produção antecipada da prova será admitida nos casos em que: …II – a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito; III – o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação”.
Verifica-se, assim, sem qualquer dificuldade, que o nosso diploma processual, estabeleceu a tutela de um direito de natureza autônoma, facultando expressamente a produção antecipada em situação que não tem natureza cautelar e, portanto, sem urgência, destacando-se, entre as hipóteses possíveis, aquela cuja precípua finalidade é a de diagnosticar a viabilidade de uma possível e futura ação judicial.
Assegurado o contraditório, visa assim a ensejar a produção voluntária da prova desejada pelo requerente, como também por eventuais interessados, desde que guarde relação aos mesmos fatos. Não se admite, por outro lado, discussão, no bojo do procedimento, do conteúdo (ou falta dele) da prova apresentada, ou das consequências e ônus, a serem suportados pela parte requerida, na hipótese de sua não apresentação.
E tal meio processual não se confunde, por certo, com a ação de natureza cautelar — antecedente ou incidental — de exibição de documento ou coisa, prevista no artigo 396 e seguintes do Código de Processo Civil.
Trata-se, portanto, de expediente processual apto a constituir prova para eventualmente, no futuro, ser incorporada em outro processo e, sendo admitida, produzir a prova desse fato nesta sucessiva demanda.
Com efeito, como procedimento de natureza não contenciosa, em que não há litígio propriamente dito, não se espera nenhuma apreciação de mérito da prova colhida, mas tão somente a observância da regularidade do seu procedimento de obtenção, sob o crivo do contraditório.
Nesse sentido, ao permitir o ajuizamento da ação antecipada de produção de provas, o Código de Processo Civil de 2015 garante o direito constitucional e autônomo à sua obtenção, assegurando às partes os fundamentos necessários a uma melhor delimitação de sua pretensão.
No âmbito deste específico contexto, bem é de ver que a ação de produção antecipada de provas não pode ser confundida, em hipótese alguma, com a ação ou medida cautelar pré-arbitral.
Infere-se, com efeito, da redação do artigo 22-A da Lei de Arbitragem que: “Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência”.
Não obstante, constata-se que a jurisprudência dos nossos tribunais apresenta atualmente clara divergência quanto à competência para processar a ação de produção antecipada de provas sem o requisito da urgência.
Antes de instaurada a arbitragem, a orientação que prevalece no Tribunal de Justiça de São Paulo firma-se no sentido de reconhecer o cabimento da ação de produção antecipada de provas perante o Poder Judiciário, a despeito da existência de cláusula compromissória, sendo prescindível o requisito de urgência, pois tal medida não se confunde com a cautelar pré-arbitral do artigo 22-A da Lei de Arbitragem.
Tais acórdãos, proferidos por unanimidade de votos, em particular, pela 1ª Câmara Especializada de Direito Empresarial, invocam a inafastabilidade da jurisdição, com assento constitucional no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, sendo pertinente destacar os seguintes precedentes:
“(…) A cláusula compromissória, mesmo se não fosse o caso de urgência, não afastaria a competência estatal para a produção antecipada de provas. Doutrina de Mazzola e Assis Torres. Nesta demanda, o juiz não se pronunciará ‘sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas’ (artigo 382, parágrafo 2º); não é possível saber, de antemão, quem irá se beneficiar da respectiva prova; e, sob o prisma da análise econômica do direito e da eficiência processual — norma estruturante do processo civil (artigo 8º do CPC/15) —, a medida é fundamental para reduzir os notórios e elevados custos de procedimento arbitral” (Apelação nº 1086219-29.2019.8.26.0100, relator desembargador Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. em 28/07/2021);
“Existência de compromisso arbitral. Possibilidade de ajuizamento perante o Poder Judiciário de ação de produção antecipada de provas, ainda que as partes tenham convencionado a resolução de conflitos por meio de arbitragem. Inteligência do artigo 381 do CPC. Constituição do Tribunal Arbitral, durante a tramitação do presente recurso. Deslocamento da cognição exauriente para o foro eleito pelas partes” (Apelação nº 1064959-90.2019.8.26.0100, relator desembargador Azuma Nishi, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. em 30/06/2021).
Sufragando divergente entendimento, recente julgamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 2.023.615/SP, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, decidiu que, estabelecida entre as partes cláusula compromissória arbitral, nas hipóteses contempladas no artigo 381, incisos I e II, do Código de Processo Civil, a parte interessada na produção da prova deve aguardar a constituição do tribunal arbitral, para, em tal sede, pleitear a produção antecipada, in verbis:
“Esta compreensão apresenta-se mais consentânea com a articulação — e mesmo com a divisão de competências legais — existente entre as jurisdições arbitral e estatal, reservando-se a esta última, em cooperação àquela, enquanto não instaurada a arbitragem, preservar o direito à prova da parte postulante que se encontra em situação de risco, com o escopo único de assegurar o resultado útil de futura arbitragem. Ausente esta situação de urgência, única capaz de autorizar a atuação provisória da Justiça estatal em cooperação, nos termos do artigo 22-A da Lei de Arbitragem, toda e qualquer pretensão — até mesmo a relacionada ao direito autônomo à prova, instrumentalizada pela ação de produção antecipada de provas, fundada nos incisos I e II do artigo 381 do Código de Processo Civil — deve ser submetida ao Tribunal arbitral, segundo a vontade externada pelas partes contratantes.
Em sendo a pretensão afeta ao direito à prova indiscutivelmente relacionada à relação jurídica contratual estabelecida entre as partes, cujos litígios e controvérsias dela advindos foram, sem exceção, voluntariamente atribuídos à arbitragem para solvê-los, dúvidas não remanescem a respeito da competência exclusiva dos árbitros para conhecer a correlata ação probatória desvinculada de urgência. Não cabe, pois, ao intérprete restringi-la, se as partes contratantes não o fizeram expressamente.”
Todavia, com o escopo único de viabilizar o acesso à Justiça, na hipótese de que a arbitragem, por alguma razão, ainda não tenha sido instaurada, eventual medida de urgência deverá ser intentada perante o Poder Judiciário, para preservar direito sob situação de risco da parte postulante e, principalmente, assegurar o resultado útil da futura arbitragem. Resulta, pois, evidenciada, em tal situação, a indispensável cooperação entre as jurisdições arbitral e estatal. Ademais, após a constituição do tribunal arbitral, dúvida não remanesce a respeito da competência exclusiva dos árbitros para conhecer a correlata ação probatória desvinculada de urgência.
Ora, isso significa que a parte que pretende ajuizar ação de produção antecipada de prova, com fundamento numa das hipóteses dos incisos II e III do artigo 381 do Código de Processo Civil, vale dizer, sem urgência, deve aguardar a instituição do tribunal arbitral para ser perante este ajuizada.
Saliente-se, por outro lado, que o árbitro não dispõe de poder coercitivo para impor medidas de força, como, e. g., busca e apreensão e arrombamento.
Em tais casos, em consonância com importante precedente da 3ª Turma do STJ , no julgamento do Recurso Especial nº 1.717.677/PR, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, as partes têm a faculdade de buscar tutela jurisdicional, antecedente ou incidental, perante o tribunal estatal, “ante a falta de coercividade das decisões exaradas pelos árbitros”.
No entanto, considerando a divergência da orientação pretoriana acerca desta questão, prevalece, no meu entender, a tese de que o processamento da ação de produção antecipada da prova, de conformidade com a regra do artigo 381, incisos II e III, do Código de Processo Civil, sem o requisito da urgência, é da competência da jurisdição arbitral.
Havendo necessidade do emprego de medidas coercitivas, o tribunal arbitral poderá valer-se da carta arbitral, contemplada no artigo 22-C da Lei de Arbitragem, para tornar eficazes, no plano substancial, “na área de sua competência territorial”, eventuais determinações proferidas pelos árbitros, como, por exemplo, a busca e apreensão de documentos.
Fonte: Conjur