Conforme prognóstico do Atlas Mundial da Obesidade, metade dos habitantes do planeta estará acima do peso em 2035; entre os brasileiros, 41% estarão obesos[1]. Segundo o Ministério da Saúde brasileiro e a Organização Mundial da Saúde (OMS), ainda, o consumo de alimentos ultraprocessados[2], ao lado do consumo nocivo do álcool e do uso do tabaco, constitui um dos principais causadores das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) — doenças cardiovasculares, diabetes, doenças respiratórias e câncer[3].
Diante deste fato, que acomete não apenas o Brasil mas também o mundo todo, há hoje uma agenda internacional — liderada pela OMS e pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) — que vem mobilizando diversos segmentos da sociedade e dos governos para o enfrentamento do problema das DCNTs, por meio da identificação dos fatores determinantes sociais e comerciais que impactam no aumento de tais doenças, bem como do desenvolvimento de estratégias, planos de ação e políticas públicas para combatê-las.
Dentre os determinantes comerciais identificados, o marketing e a publicidade dos alimentos ultraprocessados ocupam papel de destaque, na medida em que exercem forte influência nas escolhas das pessoas, elevando o desejo e a aceitação de produtos não saudáveis.
O termo “determinantes comerciais da saúde” refere-se a “estratégias e abordagens utilizadas pelo setor privado para promover produtos e escolhas que são prejudiciais à saúde” e, em linhas gerais, caracterizam-se por práticas corporativas ou comerciais que priorizam a geração de riqueza/lucros em detrimento da geração de saúde[4]. Por meio de altos investimentos em marketing e publicidade, a indústria alimentícia impulsiona as vendas dos seus produtos, em especial os não saudáveis, utilizando estratégias publicitárias destinadas a explorar principalmente as populações mais vulneráveis, manipulando as suas escolhas de consumo[5].
Neste cenário, a liberdade econômica das empresas, por meio da publicidade, conflita com os direitos fundamentais à saúde e à vida dos cidadãos.
A noção de determinantes comerciais da saúde divulgada pela OMS/OPAS, que traz a publicidade como um dos principais fatores de disseminação de DCNTs, não apenas alertou para a necessidade de os países adotarem medidas restritivas específicas à prática da publicidade destes produtos não saudáveis, mas também colocou luz em uma questão que talvez seja pouco debatida no Direito brasileiro: apesar de existirem normas que protegem o consumidor da publicidade enganosa e abusiva no CDC[6] (além de um Código de Autorregulamentação Publicitária, aplicável por meio da atuação do Conar), a prática deste controle não alcança o objetivo almejado.
Em primeiro lugar, por estas normas introduzirem conceitos indeterminados, cabendo ao Poder Judiciário a última palavra para definir se o caso de fato se trata de publicidade enganosa ou abusiva, delimitando o alcance e aplicação destes conceitos à luz das circunstâncias do caso concreto. Isso requer uma ação judicial e todos os custos e complexidades decorrentes do acesso à justiça, inclusive a contratação de advogados e o interesse e esforço para agir, considerando-se as múltiplas funções e, não raras vezes, os recursos limitados dos legitimados ativos para a defesa coletiva dos consumidores. Ainda, uma vez no Judiciário, há pouca previsibilidade quanto ao resultado da ação, o que acaba sendo levado em consideração antes de ajuizá-la.
Esta situação conduz a outra consequência: não há como afirmar com certeza se todos ou a maioria dos casos de publicidade potencialmente abusiva ou enganosa chegam ao Procon ou ao Conar, ou ao Poder Judiciário, na medida em que não há uma fiscalização pelo Poder Público e acaba-se dependendo de denúncia de pessoas lesadas ou potencialmente lesadas.
Neste sistema, caso o próprio consumidor ou uma associação privada de defesa dos consumidores não identifique o potencial enganoso ou abusivo da mensagem publicitária, dificilmente esta mensagem será denunciada, provavelmente passando despercebida e produzindo os efeitos perniciosos da publicidade ilícita na sociedade. Adiciona-se a isso o fato de que, uma vez havendo a denúncia, o processo leva tempo, e a publicidade dificilmente será retirada do ar durante o período previsto para a campanha enquanto se encontra sob análise, não impactando a denúncia e a decisão, desta forma, na sua finalidade junto ao consumidor.
Somado a estes pontos está o fato de a autorregulamentação do Conar ser reconhecida por muitos, inclusive o STF (por exemplo, no caso da ADO 22[7]) como suficiente e efetiva no controle da publicidade no Brasil, o que entendemos não ser exatamente verdade quando se analisa a sua atuação um pouco mais a fundo. Especialmente porque o Conar tem como propósito proteger a atividade publicitária e não o consumidor; as suas decisões não têm efeito mandatório, sendo meras recomendações; e há um conflito de interesses essencial na sua atuação, na medida em que o seu Conselho e Administração são compostos por representantes de grandes corporações privadas que detêm interesses econômicos na atividade publicitária.
O regime do controle da publicidade no Brasil, conforme estas características brevemente resumidas, conduz à questão quanto a se este se mostra inteiramente suficiente para proteger o consumidor dos efeitos de qualquer publicidade abusiva e enganosa, ainda que, em alguns casos, anunciantes venham a ser posteriormente condenados a reparações. No entanto, esta dúvida parece deixar de existir quando os produtos anunciados são alimentos ultraprocessados, que são nocivos à saúde e cujo consumo pode levar a DCNTs.
Nestes casos, os “efeitos danosos à sociedade pela publicidade abusiva ou enganosa” não são puramente materiais ou financeiros (potencialmente reparáveis dependendo do resultado da ação judicial ou administrativa, ou do atendimento às recomendações do Conar), como acontece no caso da publicidade de outros produtos. Ao contrário, podem levar os consumidores a contrair doenças e até mesmo à morte.
No caso específico da publicidade de alimentos ultraprocessados, conclui-se que a publicidade em si poderia ser considerada abusiva lato sensu, independentemente de serem encontradas mensagens enganosas ou abusivas stricto sensu nos seus materiais publicitários, tendo em vista que (i) não informa adequadamente o consumidor sobre dado essencial do produto — o fato de causarem DCNTs que podem levar à morte; e (ii) visa a persuadir o consumidor a comprar produtos nocivos à sua saúde, induzindo-o a este comportamento, sendo o enunciado do § 2º do art. 37 do CDC suficiente para enquadrar esse tipo de mensagem como abusiva e justificar a proibição ou a restrição da publicidade destes produtos.
Neste contexto, defende-se a possibilidade de se estabelecer medidas restritivas à publicidade de alimentos ultraprocessados previamente à veiculação das campanhas publicitárias[8], por meio de lei específica, já havendo iniciativas no Congresso brasileiro nesse sentido. No que toca à proteção da publicidade amparada pela livre iniciativa, foi identificado o debate quanto a como dever ser interpretado este direito à luz da Constituição, verificando-se correntes distintas: a que lê a livre iniciativa em si como direito fundamental e a corrente que entende que a livre iniciativa deve ser interpretada sob a perspectiva de seus valores sociais, correspondendo o direito fundamental aos valores sociais da livre iniciativa.
Já sob o enfoque da liberdade de expressão, verificou-se debate mais amplo. Parte da doutrina entende que o direito à publicidade não estaria protegido pelo direito fundamental à liberdade de expressão, pois que a informação veiculada se trata de instrumento de persuasão e não estaria inserida dentro do conceito de livre manifestação do pensamento. Outra corrente entende que o direito à publicidade está protegido como direito fundamental por força da liberdade de comunicação das empresas, prevista no art. 220 da CF.
O STF ainda não se posicionou quanto à definição da proteção da publicidade no Brasil, tendo sido identificada uma tendência, por meio de aproximações dos ministros em decisões que envolvem o tema, ao reconhecimento da proteção pela liberdade de expressão, embora não tenha ainda se posicionado quanto aos contornos desta proteção — se há uma liberdade de expressão do discurso comercial que se difere da, e apresenta grau de proteção menor do que, a liberdade de expressão que protege o discurso não comercial, a exemplo do entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos.
Aos que advogam pela autorregulação e a não intervenção estatal nessa temática, é importante salientar que a ausência de regulação estatal é uma forma de calar a voz dos consumidores, especialmente os mais vulneráveis. Ao assumir-se a possibilidade de que o Estado não possa limitar a expressão comercial, ou que o possa apenas em excepcionalíssimas hipóteses e somente em nível federal, mais uma vez cala-se a voz do consumidor para se ouvir apenas a do mercado. Reforçamos que a Política Nacional das Relações de Consumo, expressa em nosso CDC (artigo 4º), tem por objetivo “o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (…) II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor (…)”. É nesse sentido que se enaltece, dentre outras importantes decisões, a decisão do STF na ADI 5.631, que julgou constitucional a Lei nº 13.582/16 do estado da Bahia, que proíbe a comunicação mercadológica dirigida a crianças nos estabelecimentos públicos e privados de educação básica.
[1] Disponível em: https://www.worldobesityday.org/resources/entry/world-obesity-atlas-2023. Acesso em 29 de maio de 2023.
[2] No Brasil, aproximadamente 57 mil pessoas morrem por ano devido ao seu consumo, conforme dados de 2019. Esse número é mais do que o total de homicídios no país no mesmo período – foram 45,5 mil em 2019, segundo o Atlas da Violência. O estudo foi publicado no American Journal of Preventive Medicine. Veja-se: https://actbr.org.br/post/brasil-tem-57-mil-mortes-por-ano-devido-ao-consumo-de-ultraprocessados-estima-pesquisa/19441/. Acesso em 28 de maio de 2023.
[3] World Health Organization. (2004). Global strategy on diet, physical activity and health. World Health Organization. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/43035. Acesso em 28 de maio de 2023.
[4] KICKBUSCH, Ilona et al. The Commercial Determinants of Health. The Lancet, vol. 4, dez. 2016.
[5] MAIA, E. G. et al. Análise da publicidade televisiva de alimentos no contexto das recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira. Cad. Saúde Pública, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/jVVs3FnFCKvpy6byHNC4QYj/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 29 de maio de 2023.
[6] Em especial, arts. 6º, IV, 36, 37 e 38 da Lei nº 8.078/90 (CDC).
[7] A ADO 22 julgou improcedente a alegada omissão legislativa parcial ou insuficiência da Lei 9.294/96, que apenas restringiu a propaganda de bebidas alcóolicas com teor alcóolico superior a treze graus Gay Lussac (13º GL). Em seu voto, a Min. Carmen Lúcia afirma que, reconhecer a insuficiência da Lei 9.294/96 nos termos postos pelo requerente significaria “ultrapassar a barreira que fundamenta o princípio da separação dos poderes (…) e, ainda, desconsiderar a validade também das normas criadas pelo CONAR”.
[8] Tese defendida em livro recentemente publicado: PEREIRA, Carla da Silva de Britto. Regime Jurídico da Publicidade de Alimentos Ultraprocessados no Brasil: uma perspectiva crítica à luz dos determinantes comerciais da saúde. Porto Alegre: Arquipélago, 2023.
Fonte: Conjur – Por Carla da Silva de Britto Pereira e Fernanda Nunes Barbosa