A soberania do júri não pode se sobrepor à presunção de inocência. Dessa maneira, não é possível que a pena imposta pelos jurados seja executada imediatamente, mas apenas após o trânsito em julgado, como ocorre em todas as condenações penais. Essa é a opinião de especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
O Supremo Tribunal Federal começou a julgar na última sexta-feira (30/6) se a condenação no tribunal do júri deve ser executada imediatamente. O julgamento, que ocorre no Plenário Virtual, está marcado para ser concluído em 7 de agosto. Até o momento, há cinco votos pela execução imediata da pena e três para aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória.
No caso julgado, o Superior Tribunal de Justiça permitiu ao réu recorrer em liberdade, com base no entendimento do STF de que a pena só pode ser executada após o trânsito em julgado da sentença condenatória (ADCs 43 e 44). O Ministério Público recorreu ao Supremo.
Em seu voto, o relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que a soberania do júri prevalece sobre a presunção de inocência. Segundo Barroso, a presunção de inocência, por ser princípio, e não regra, pode ser “aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes”.
Assim, para o ministro, não há violação da presunção de inocência com o imediato cumprimento da pena de réu condenado pelo júri. Ele também fez uma interpretação conforme a Constituição da lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), que permitiu a execução provisória de pena superior a 15 anos imposta pelo júri.
Barroso propôs a seguinte tese de repercussão geral: “A soberania dos veredictos do tribunal do júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”.
O voto do relator foi seguido, até o momento, pelos ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e André Mendonça. Os ministros Gilmar Mendes, Rosa Weber, presidente da corte, e Ricardo Lewandowski (aposentado) divergiram, entendendo que a pena só pode ser executada ao fim do processo. Faltam os votos dos ministros Kassio Nunes Marques, Edson Fachin e Luiz Fux.
Críticas ao ministro
Em artigo publicado na ConJur, o jurista Lenio Streck contestou o voto de Barroso. Streck afirmou que, se Barroso aplicasse corretamente a ponderação do jurista alemão Robert Alexy, chegaria à conclusão de que a presunção de inocência prevalece sobre a soberania do júri, uma vez que restringe a liberdade de acusados. Portanto, a pena decorrente de condenação do júri só poderia ser aplicada após o trânsito em julgado.
O jurista também criticou o uso de estatísticas por Barroso, que deu a entender que é função do Judiciário combater crimes. Com isso, o ministro transforma o Direito em consequencialismo, algo que não pode ser admitido, segundo Lenio, que é professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá.
O constitucionalista ressaltou que nunca foi proibido prender depois de decisão de segundo grau. “Nem a liberdade é automática para recorrer e nem a prisão pode ser obrigatória-automática. O voto do ministro dá ares de automaticidade à prisão se a decisão vier do júri. E isso fere o precedente vinculante” (ADCs 43 e 44).
Além disso, ele destacou que é inconstitucional o dispositivo da lei “anticrime” que retira o efeito suspensivo das apelações contra condenações a penas superiores a 15 anos pelo tribunal do júri. Afinal, para Streck, isso igualmente viola o princípio da presunção de inocência.
“Não devemos perder a oportunidade de debater, para além da prisão automática e sua afronta à presunção da inocência, qual é o papel da doutrina no Direito brasileiro. Por qual razão a doutrina se transformou em caudatária da jurisprudência? Por qual razão um voto como o do ministro Barroso não tem maior repercussão e não gera uma posição mais crítica da doutrina? Ou a doutrina concorda que se pode usar a tese da ponderação de Alexy desse modo? Ou que precedentes da própria Corte Maior podem ser ignorados?”, questionou ele à ConJur.
Presunção de inocência
Especialistas em Direito Processual Penal concordam com a crítica ao voto de Luís Roberto Barroso, ressaltando que o princípio da soberania do júri não pode se sobrepor à presunção de inocência.
Aury Lopes Jr., professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, afirma que o voto de Barroso “é um grave erro, que desconsidera a presunção de inocência até o trânsito em julgado, enquanto dever de tratamento, reafirmada pelo próprio STF”.
“A soberania dos veredictos não tem, absolutamente, nada que ver com execução antecipada da pena ou ponderação da presunção de inocência”, avaliou. Conforme Lopes Jr., a soberania está vinculada ao ato de julgar, à definição de fatos, ao julgamento feito pelos jurados por meio dos quesitos, não à prisão automática como consequência do julgamento.
A proposta de Barroso não é uma interpretação conforme a Constituição, é “simplesmente reescrever um artigo de lei e suprimir — sem justificativa legítima — o limite de pena ali estabelecido (os tais 15 anos, que também é um ‘limite’ ilógico, irracional e inconstitucional)”, declarou Lopes Jr.
“Enfim, nada justifica tamanho retrocesso, ainda mais se considerarmos que sempre cabe a prisão preventiva, em qualquer fase, se houver uma necessidade cautelar. O que não cabe é prisão automática em primeiro grau, com ampla possibilidade de recurso de apelação, em flagrante violação da presunção de inocência”, opinou o docente da PUC-RS.
Não é possível pensar em ponderação no caso porque a previsão de soberania do júri é regra, portanto, não está sujeita a tal forma de análise, ressaltou Antonio Eduardo Ramires Santoro, professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
“Além disso, é absolutamente paradoxal estabelecer a prevalência da regra da soberania do júri sobre a presunção de inocência, uma garantia estruturante do sistema penal brasileiro. Um sistema fundado nos direitos humanos não pode transigir com regras específicas, como as que se dirigem ao tribunal do júri”, destacou Santoro.
Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo, aponta que não há o que sopesar na ação, pois não há colisão entre a soberania dos vereditos do júri e a presunção de inocência.
“A presunção de inocência, enquanto regra de tratamento do acusado que não pode ser tratado como se fosse culpado antes do trânsito em julgado da condenação penal — o que inclui a execução provisória da pena —, não colide com a soberania dos veredictos, enquanto atributo dos jurados de dar a última palavra sobre os temas que são de sua competência na sentença subjetivamente complexa do júri, não podendo ser substituídos, em suas decisões, por um magistrado togado”, analisou Badaró.
O professor da USP também ressaltou o perigo de usar estatísticas para fundamentar restrições de direitos fundamentais. Barroso, em seu voto, lançou mão do argumento do “inexpressivo percentual de modificação das decisões condenatórias do júri”.
“O voto desenvolve o seguinte argumento estatístico: ‘E todas as decisões proferidas pelo júri, em apenas 1,97% dos casos houve a intervenção do tribunal de segundo grau para, a pedido do réu, devolver a matéria para a análise do júri’. Isso significa, em grandes números, que para o ministro Roberto Barroso não há problemas de, a cada cem pessoas, duas delas terem a sua liberdade irreparavelmente lesada.”
O especialista em processo penal cita um exemplo para demonstrar a inadequação das estatísticas para restringir direitos fundamentais. Em 2021, tramitaram 94 casos de foro por prerrogativa de função no STF. No mesmo ano, tramitaram 7,8 milhões de processos criminais no Brasil.
“Logo, os casos de foro por prerrogativa de função, no total de processos penais brasileiros, correspondem a um percentual muito inferior a 1,97%, de aproximadamente 0,00001%. Creio que os ministros concordarão que, nem por isso, devemos acabar com o foro por prerrogativa de função, inclusive para magistrados do STF”, destacou ele.
“A estatística é um mau argumento quando se trata de restringir direitos fundamentais. Até porque os direitos fundamentais, exatamente por esse caráter, devem estar a salvo até mesmo da vontade das maiorias momentâneas. Isso é Estado democrático de Direito”, disse Badaró.