*Editorial de O Globo desta quarta-feira (16/8)
Está em julgamento no plenário virtual do STF (Supremo Tribunal Federal) um caso que afeta a liberdade de informação e expressão na imprensa brasileira. Trata-se de um recurso do Diário de Pernambuco, condenado a pagar indenização pela publicação de uma entrevista.
O jornal não endossou as afirmações do entrevistado, tampouco atacou quem quer que fosse. Apenas divulgou uma entrevista. O caso tem repercussão geral e será paradigma para os futuros julgamentos da Corte. Noutras palavras, definirá em que hipóteses um veículo de comunicação poderá ser condenado pelas informações que publica.
Como ocorre nesse tipo de julgamento, a Corte se debruça sobre o caso a fim de encontrar a tese que melhor aplica as regras da Constituição ao tema em debate. Diversas foram apresentadas pelos ministros — e outras ainda poderão surgir. Uma delas será escolhida e doravante moldará os limites da liberdade de divulgação de informações na imprensa brasileira.
Julgamentos de repercussão geral, como as ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs), são mais que a aplicação da Constituição a casos concretos. São sinais que a mais alta Corte do país emite ao próprio Judiciário, aos demais Poderes e à sociedade sobre os limites constitucionais em cada área do Direito. Como no centro da controvérsia está a liberdade de informação, espera-se da Corte sensibilidade e firmeza.
sabido que não existem direitos absolutos. As liberdades de expressão e informação são pilares da democracia e base dos demais direitos fundamentais, uma vez que, sem elas, ninguém pode reivindicá-los ou denunciar violações. Sem liberdade de expressão e informação, a sociedade não tem como fiscalizar o exercício do poder, do Estado ou das grandes corporações, e as minorias não têm voz.
No entanto outros direitos, também constitucionais, podem impor limites às liberdades de expressão e informação. É o caso dos direitos à honra ou à vida privada. Não é lícito a nenhum veículo de informação publicar informações sabidamente falsas ou ofender quem quer que seja. No momento em que a sociedade cobra das plataformas digitais que se responsabilizem pelos conteúdos que distribuem, ainda que não os produzam, os veículos tradicionais não poderiam se furtar à responsabilidade pelo que publicam. É isso que sempre caracterizou o jornalismo profissional e continuará a caracterizá-lo.
É necessário, entretanto, reconhecer a natureza dinâmica e arriscada da atividade jornalística. A sociedade exige a publicação de notícias em tempo real, com a maior riqueza de detalhes possível. É papel dos jornais e dos veículos de comunicação atender a essa demanda social, buscando incessantemente a verdade sobre os fatos, especialmente os de interesse público. Se esse papel é cumprido com seriedade e ética, não há razão para que o veículo seja punido, ainda que as informações divulgadas venham posteriormente a se mostrar equivocadas.
A atividade jornalística pressupõe a busca incessante da verdade sobre os fatos, divulgados ao leitor ainda quentes, à medida que chegam ao conhecimento dos jornalistas, no calor da luta pela informação. Erros podem acontecer. A imprensa pode errar primeiro, assim como, nas palavras do ministro Nelson Hungria, o STF tem “o supremo privilégio de errar por último”. Ambos acertam muito mais que erram.
No jornalismo profissional, definido por seguir princípios, ninguém erra porque quer. Apenas a má-fé e a negligência grosseira em relação aos fatos justificam punir um veículo de comunicação. Publicar deliberadamente notícias falsas ou ignorar evidências ao alcance da apuração, ocultando propositalmente versões dos envolvidos nos acontecimentos quando disponíveis, são atitudes incompatíveis com o bom jornalismo e merecem desaprovação.
É assim que a Justiça americana encara o assunto, por meio da doutrina conhecida como actual malice (correspondente, na tradição brasileira, ao dolo). Desde o caso New York Times Co. v. Sullivan, de 1964, a Suprema Corte americana exige, para condenar um veículo, prova do conhecimento prévio de que a notícia era falsa ou de negligência no dever ético de buscar a verdade factual (“reckless disregard of whether it was false or not”).
Penalizar os erros involuntários, cometidos na apuração ética dos fatos, provocaria um efeito silenciador em toda a imprensa (“chilling effect”, na expressão consagrada pelo caso), com consequências desastrosas para a qualidade da informação consumida pela sociedade brasileira. Diante da possibilidade de constantes condenações a pagamento de indenizações, os veículos se acovardariam, especialmente na divulgação de notícias sobre os poderosos.
É essa lucidez que se espera do STF na escolha da tese que pautará o exercício da liberdade de expressão e informação no país. Que ela seja equilibrada, contemplando os demais direitos fundamentais, mas que entenda a urgência da produção das informações jornalísticas e só reprima as condutas antiéticas deliberadas e a negligência jornalística grave, deixando aos veículos espaço para que, com suas imperfeições e virtudes, continuem a informar a sociedade brasileira livremente.
Fonte: Conjur