Rescisórias abrem novo round na disputa sobre a ‘tese do século’ no Judiciário

Contribuinte e Fazenda Nacional vivem hoje um novo round na luta pelos valores decorrentes da inclusão do ICMS na base de cálculo de PIS e Cofins. Ele está sendo disputado por meio das centenas de ações rescisórias ajuizadas para aplicar a modulação da chamada “tese do século” definida pelo Supremo Tribunal Federal.

Aproveitamento de créditos obtidos pela aplicação da “tese do século” vai depender do momento em que a ação foi ajuizada

Essas rescisórias buscam derrubar decisões definitivas que deram a empresas brasileiras o direito de compensar ou reaver valores indevidamente cobrados pelo Fisco no período de cinco anos anteriores ao seu ajuizamento.

Os pedidos de compensação ou ressarcimento foram feitos depois que o STF decidiu que o ICMS deveria ser excluído da base de cálculo de PIS e Cofins. O problema é que, quatro anos mais tarde, em 2021, a corte decidiu modular a aplicação temporal da tese.

O Supremo entendeu que a exclusão do ICMS da base de PIS e Cofins só poderia ser aproveitada pelo contribuinte a partir de 17 de março de 2017, data em que a “tese do século” foi fixada. A restrição não alcançou as ações que foram ajuizadas para discutir o tema antes dessa data.

Assim, quem obteve o direito de compensação ou ressarcimento mediante ações ajuizadas entre março de 2017 e abril de 2021 entrou na mira da Fazenda Nacional.

Uma empresa que, por exemplo, ajuizou ação em 2018 e obteve o direito de compensar os valores indevidamente pagos ao Fisco desde 2013, com a modulação, restringiria esse aproveitamento ao período a partir de 17 de março de 2017.

Essa é a restrição buscada pela Fazenda Nacional por meio das ações rescisórias. E ela tem alcançado seu objetivo. Há registros de procedência para aplicar a modulação da “tese do século” nos Tribunais Regionais Federais da 3ª, 4ª e 5ª Regiões.

Para tributaristas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, o cenário aumenta a grave insegurança jurídica vivida no país. A consequência é o aumento do passivo tributário das empresas e o estímulo a novos litígios judiciais e administrativos.

Fica, ainda, um impasse sobre como a questão será resolvida. Até o momento, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal têm dado indício de que não pretendem analisar o cabimento ou o resultado dessas rescisórias, seja pelo viés infraconstitucional ou constitucional.

Como ficam as empresas
Os números levantados pela própria Fazenda Nacional indicam o impacto. Quando a “tese do século” esteve em julgamento, em 2017, o prejuízo foi orçado em R$ 250 bilhões. E mesmo após a modulação dos efeitos, em 2021, subiu para R$ 533 bilhões — valores de perda de arrecadação e estimativa de ressarcimentos.

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Em regra, as empresas que correram ao Judiciário após março de 2017 para tratar do tema buscaram a compensação dos valores indevidamente pagos ao Fisco. Esse é o meio de aproveitamento mais rápido, já que a devolução implica em usar o rito dos precatórios, que se submete a ordem de pagamento.

Tais compensações foram cruciais para muitos contribuintes, por permitir o pagamento de tributos com os créditos gerados pelas decisões judiciais, especialmente em período crítico como o da epidemia da Covid-19, a partir de 2020.

Supremo fixou “tese do século” em 2017, mas só modulou seus efeitos em 2021

Com a procedência das rescisórias, os valores não abarcados pela modulação se tornam débito em aberto, a ser pago com multa e juros de mora. E poderão ser impugnados, em processos administrativos a serem discutidos a perder de vista no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf).

Para as empresas, há a possibilidade de arrastar o pagamento à espera de condições mais favoráveis de negociação e parcelamento incentivado, por meio dos recorrentes programas de recuperação fiscais (Refis) aprovados pelo Congresso.

De qualquer maneira, trata-se de uma contingência inesperada. O contribuinte que só foi ao Judiciário quando tinha a certeza de que havia pago PIS e Cofins a mais confiou na coisa julgada tributária formada pela aplicação da “tese do século”, mas agora a vê sob risco.

Melhor litigar logo
Para a advogada Maria Carolina Sampaio, do GVM Advogados, o cenário é péssimo em termos de política tributária porque o Judiciário acaba indicando ao contribuinte que é sempre melhor litigar por prevenção, já que as pretensões futuras podem ser ceifadas por modulações temporais das decisões.

Isso afeta as empresas que tinham uma postura mais conservadora, o que evitava tumultuar o Judiciário e gastar com ações de resultado incerto. “Não dá mais para ser assim. Agora a indicação é: se acredita que tem algo a receber, melhor acionar a Justiça. É importante litigar para não perder a chance.”

Maria Andréia dos Santos, do Machado Associados, também aponta a mudança de postura de empresas que, até recentemente, aguardavam a formação de posição pelos tribunais superiores. “A modulação tem sido aplicada de forma tão ampla que há um estímulo à litigiosidade. Se você não ingressar com ação e for definida uma data de corte no precedente, pode perder todo o crédito anterior.”

Mariana Ferreira, do Murayama e Affonso Ferreira Advogados, chama a atenção para o viés político da modulação, por meio da qual o tribunal define de que forma o precedente vai impactar a sociedade. Isso acaba por privilegiar quem atuou de maneira preventiva.

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As três advogadas veem indícios de que modulação dos efeitos pretendida pela Fazenda por meio das rescisórias deve ser confirmada nas instâncias superiores. O principal deles é a forma como a coisa julgada tributária vem sendo tratada.

Recentemente, o STF admitiu a quebra automática de decisões definitivas tributárias, nos casos em que a corte concluir que a cobrança de determinado tributo é constitucional. Já o STJ admitiu o uso da rescisória para desconstituir decisão definitiva sobre tributos de pagamento continuado quando houve posterior mudança de jurisprudência.

Nenhum desses precedentes se enquadra na discussão travada sobre a “tese do século”, mas mostram uma preocupação em assegurar a autoridade da interpretação tributária das cortes, mesmo que modificando jurisprudência e decisões anteriores.

Primeiro precedente colegiado do STJ não analisou cabimento ou mérito da rescisória

Também para Renan Castro, do Diamantino Advogados Associados, o cenário não poderia ser de mais incerteza. Ele nota um esforço da União em reverter posições desfavoráveis para aumentar a arrecadação, ainda que por meio de artifícios processuais como no caso das rescisorias.

Como mostrou a ConJur, essa tendência não se restringe ao caso da “tese do século”. Depois de o STJ vetar a exclusão automática de benefícios do ICMS da base de IRPJ e CSLL, a Receita Federal convidou os contribuintes a aplicar a posição e regularizar a situação. E depois o governo editou uma Medida Provisória para burocratizar o usufruto dessas vantagens.

Ainda assim, Castro prevê um final feliz para o contribuinte. E o faz com base no precedente da AR 2.297, em que o STF entendeu que não cabe rescisória uando o julgado estiver em harmonia com o entendimento firmado pelo Plenário do Supremo à época da formalização do acórdão rescindendo, ainda que ocorra posterior superação do precedente.

“Se levarmos em consideração que o posicionamento da exclusão do ICMS na base de PIS e Cofins era firme no STF antes da modulação, há boas chances de os contribuintes saírem vencedores nesse tema específico”, analisa.

Quem dá a palavra final
De fato, o cabimento da rescisória é um dos pontos contestados pelos contribuintes nos recursos às cortes superiores. Até o momento, há uma possibilidade de que a discussão caia em uma espécie de limbo recursal.

O STJ tem, até o momento, apenas um precedente colegiado. A 2ª Turma entendeu que não poderia analisar o mérito do recurso contra a rescisória porque envolveu a aplicação da “tese do século” ao caso concreto. Por se tratar de tema constitucional, a análise só poderia ser feita pelo Supremo.

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Já o STF até agora tem ao menos três decisões monocráticas em que também recusa a análise dos recursos extraordinários contra essas rescisórias. Elas foram proferidas pelos ministros Nunes Marques (clique aqui para ler), Luís Roberto Barroso (clique aqui) e Gilmar Mendes (clique aqui).

Eles entendem que a invocação do princípio constitucional dos limites da coisa julgada não possui repercussão geral por representar ofensa reflexa à Constituição e que o próprio cabimento da rescisória é tema infraconstitucional, por envolver normas do Código de Processo Civil.

Nos TRFs, as rescisórias são admitidas com base no artigo 535, parágrafo 8º do CPC, por atacar julgado contrário à decisão do STF em controle de constitucionalidade, ainda que se trate de decisão proferida posteriormente à formação da coisa julgada.

O TRF-4, especificamente, tem entendido cabível a rescisória com base no artigo 966, inciso V do CPC, por violação a literal disposição de lei quando, à época do acórdão rescindendo, não havia qualquer orientação do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria constitucional controvertida.

Maria Carolina Sampaio aponta que a rescisória é mesmo o caminho correto para a Fazenda Nacional contestar as decisões, mas contestar a posição admitida pelos TRFs. “Em termos de segurança jurídica, que é uma questão constitucional muito mais importante do que qualquer vírgula do CPC, não deveria ser cabível.”

Para Maria Andréia dos Santos, a posição dos TRFs destrói a confiança do contribuinte no sistema, uma sensação calcada nos mecanismos oferecidos, dentre eles a imutabilidade da coisa julgada e o cabimento restrito da ação rescisória.

Já Mariana Ferreira vê uma certa prudência do STJ ao evitar analisar o mérito do recurso contra a rescisória. Se a análise de mérito é vinculada a violação de tema constitucional, melhor nem adentrar esse ponto, sob risco de levar a mais um dos recorrentes choques tributários com o STF.

REsp 2.088.760 (STJ)
RE 574.706 (Tese do século no STF)
RE 1.428.668  (STF)
RE 1.455.096 (STF)
RE 1.430.462 (STF)
AR 5000730-32.2022.4.03.0000 (TRF-3)
AR 5000058-24.2022.4.03.0000 (TRF-3)
AR 5008924-57.2023.4.04.0000 (TRF-4)
AR 5021620-28.2023.4.04.0000 (TRF-4)
AR 0808923-34.2022.4.05.0000 (TRF-5)
AR 0806972-05.2022.4.05.0000 (TRF-5)

Fonte: Consultor Jurídico.