A Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, promoveu significativa alteração no sistema tributário nacional, principalmente no que concerne à tributação sobre o consumo.
Diversas foram as alterações e, neste breve artigo, que esperamos ser de fácil digestão, abordaremos, apenas, alguns dispositivos dessa emenda que nos parecem confusos e/ou conflitantes entre si.
De início, importa ressaltar que o inciso X do § 1º do artigo 156-A estabeleceu, em relação ao Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a vedação à concessão de benefícios e incentivos fiscais ou financeiros e, bem assim, a proibição de concessão de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação.
No entanto, esse mesmo dispositivo constitucional abriu espaço para que a própria Carta Magna pudesse criar exceções a essa regra. In verbis:
X – não será objeto de concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais relativos ao imposto ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses previstas nesta Constituição;
O que se verifica, em verdade, é que o legislador constitucional não quis, efetivamente, vedar a concessão de benefícios e incentivos fiscais relativos ao IBS, mas, tão somente, condicioná-la a uma autorização constitucional, o que, na prática, torna mais difícil a concessão de novos benefícios fiscais.
Isso posto, insta salientar que, no tocante aos denominados “regimes diferenciados de tributação”, o artigo 9º da sobredita emenda fixou que a lei complementar federal que vier a instituir o IBS e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) poderá estabelecer regimes diferenciados de tributação, que deverão ser uniformes em todo o território nacional, para as operações relativas aos seguintes bens e serviços. Confira-se:
Art. 9º A lei complementar que instituir o imposto de que trata o art. 156-A e a contribuição de que trata o art. 195, V, ambos da Constituição Federal, poderá prever os regimes diferenciados de tributação de que trata este artigo, desde que sejam uniformes em todo o território nacional e sejam realizados os respectivos ajustes nas alíquotas de referência com vistas a reequilibrar a arrecadação da esfera federativa.
§ 1º A lei complementar definirá as operações beneficiadas com redução de 60% (sessenta por cento) das alíquotas dos tributos de que trata o caput entre as relativas aos seguintes bens e serviços:
I – serviços de educação;
II – serviços de saúde;
III – dispositivos médicos;
IV – dispositivos de acessibilidade para pessoas com deficiência;
V – medicamentos;
VI – produtos de cuidados básicos à saúde menstrual;
VII – serviços de transporte público coletivo de passageiros rodoviário e metroviário de caráter urbano, semiurbano e metropolitano;
VIII – alimentos destinados ao consumo humano;
IX – produtos de higiene pessoal e limpeza majoritariamente consumidos por famílias de baixa renda;
X – produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura;
XI – insumos agropecuários e aquícolas;
XII – produções artísticas, culturais, de eventos, jornalísticas e audiovisuais nacionais, atividades desportivas e comunicação institucional;
XIII – bens e serviços relacionados a soberania e segurança nacional, segurança da informação e segurança cibernética.
§ 2º É vedada a fixação de percentual de redução distinto do previsto no § 1º em relação às hipóteses nele previstas.
§ 3º A lei complementar a que se refere o caput preverá hipóteses de:
I – isenção, em relação aos serviços de que trata o § 1º, VII;
II – redução em 100% (cem por cento) das alíquotas dos tributos referidos no caput para:
a) bens de que trata o § 1º, III a VI;
b) produtos hortícolas, frutas e ovos;
c) serviços prestados por Instituição Científica, Tecnológica e de Inovação (ICT) sem fins lucrativos;
d) automóveis de passageiros, conforme critérios e requisitos estabelecidos em lei complementar, quando adquiridos por pessoas com deficiência e pessoas com transtorno do espectro autista, diretamente ou por intermédio de seu representante legal ou por motoristas profissionais, nos termos de lei complementar, que destinem o automóvel à utilização na categoria de aluguel (táxi);
III – redução em 100% (cem por cento) da alíquota da contribuição de que trata o art. 195, V, da Constituição Federal, para serviços de educação de ensino superior nos termos do Programa Universidade para Todos (Prouni), instituído pela Lei nº 11.096, de 13 de janeiro de 2005;
IV – isenção ou redução em até 100% (cem por cento) das alíquotas dos tributos referidos no caput para atividades de reabilitação urbana de zonas históricas e de áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística.
(…)
Após uma leitura atenta, verifica-se que a redação do artigo 9º não prima pela clareza. Senão vejamos:
Seu § 1º delega à lei complementar a definição dos bens e serviços que serão contemplados com redução de 60% das alíquotas do IBS e da CBS, enquanto seus incisos enumeram os bens e serviços passíveis de serem beneficiados por essa redução.
Por sua vez, seu § 2º veda, expressamente, a concessão de redução de alíquota, tanto do IBS quanto da CBS, em percentual diferente daquele fixado no § 1º, o que reforça o mandamento contido neste parágrafo.
Entretanto, a alínea ‘a’ do inciso II do § 3º, em flagrante violação ao disposto no § 2º, estabelece que a mesma lei complementar federal que instituir o IBS e a CBS deverá prever a redução de alíquota de 100% para os seguintes bens e serviços já contemplados, nos termos do § 1º, com redução de alíquota de 60%: dispositivos médicos; dispositivos de acessibilidade para pessoas com deficiência; medicamentos; e produtos de cuidados básicos à saúde menstrual. Afinal, a redução de alíquota para esses bens e serviços será de 60% ou de 100%?
Outrossim, a alínea ‘b’ do inciso II do § 3º, ao estabelecer que a lei complementar federal que instituir o IBS e a CBS deverá prever uma redução de 100% das alíquotas do IBS e da CBS para “produtos hortícolas, frutas e ovos”, também contraria, frontalmente, a regra inserta no § 2º, pois, se considerarmos que os produtos hortícolas, as frutas e os ovos podem ser entendidos como alimentos destinados ao consumo humano (inciso VIII do § 1º), resta evidente a contradição. Afinal as operações com produtos hortícolas, frutas e ovos estarão sujeitas à redução de alíquota de 60% ou à redução de 100%?
E as contradições não param por aí. O inciso I do referido § 3º estabelece que os serviços de transporte público coletivo de passageiros rodoviário e metroviário de caráter urbano, semiurbano e metropolitano, previstos no inciso VII do § 1º e, portanto, já alcançados pela redução de alíquota de 60%, serão isentos do IBS e da CBS. Afinal, esses serviços farão à redução de alíquota de 60% ou à isenção?
Outro ponto controvertido
Conforme previsto nos incisos I e II do § 7º do artigo 156-A da Constituição, a isenção acarretará o estorno de crédito da operação anterior e não gerará crédito para operação posterior. Confira-se:
Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
(…)
§ 7º A isenção e a imunidade:
I – não implicarão crédito para compensação com o montante devido nas operações seguintes;
II – acarretarão a anulação do crédito relativo às operações anteriores, salvo, na hipótese da imunidade, inclusive em relação ao inciso XI do § 1º, quando determinado em contrário em lei complementar.
Ademais, consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), as reduções de alíquota ou de base de cálculo equivalem a isenção (parcial). Vejamos:
RE 635.688 (Repercussão Geral – Tema 299):
Ementa
Recurso Extraordinário. 2. Direito Tributário. ICMS. 3. Não cumulatividade. Interpretação do disposto art. 155, §2º, II, da Constituição Federal. Redução de base de cálculo. Isenção parcial. Anulação proporcional dos créditos relativos às operações anteriores, salvo determinação legal em contrário na legislação estadual. 4. Previsão em convênio (CONFAZ). Natureza autorizativa. Ausência de determinação legal estadual para manutenção integral dos créditos. Anulação proporcional do crédito relativo às operações anteriores. 5. Repercussão geral. 6.Recurso extraordinário não provido. (Grifou-se)
ARE 1.447.686:
(…)
Depreende-se do excerto acima que o Tribunal de origem equiparou a redução de alíquota ou base de cálculo à regra de que a isenção e a não incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implica crédito com o montante devido nas operações ou prestações seguintes.
No tocante a essa questão, cabe ressaltar o entendimento desta Corte, firmado no âmbito da repercussão geral (RE-RG 635.688 – tema 299), de minha relatoria, de que a redução de base de cálculo corresponde a uma isenção parcial e não confere o direito ao aproveitamento integral aos créditos fiscais relativos às entradas tributadas.
Dessarte e tendo em vista que o crédito tributário exigível, quando decorrente de operação sujeita a isenção ou a redução de alíquota em 100%, é o mesmo, isto é, zero, por qual motivo o constituinte estabeleceu, para os serviços relacionados no inciso I do § 3º, a isenção e para os bens e serviços discriminados nos incisos II e III do mesmo § 3º, a redução de 100% da alíquota?
Será que a intenção do constituinte foi, propositalmente, contrapor-se à jurisprudência do STF acima transcrita e estabelecer, em relação ao IBS e à CBS, essa diferenciação, a fim de permitir a manutenção do crédito na hipótese de redução de 100% da alíquota?
Não sendo essa a intenção, qual seria o real motivo dessa diferenciação?
Nesse sentido, cumpre destacar que no inciso IV do § 3º essa diferenciação se apresenta de forma mais explícita, eis que relacionada à mesma hipótese incidência. Assim, no que concerne às atividades de reabilitação urbana de zonas históricas e de áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística, a lei complementar federal, que instituir o IBS e a CBS, poderá estabelecer isenção ou redução em até 100% das alíquotas do IBS e da CBS. Vejamos:
Art. 9º A lei complementar que instituir o imposto de que trata o art. 156-A e a contribuição de que trata o art. 195, V, ambos da Constituição Federal, poderá prever os regimes diferenciados de tributação de que trata este artigo, desde que sejam uniformes em todo o território nacional e sejam realizados os respectivos ajustes nas alíquotas de referência com vistas a reequilibrar a arrecadação da esfera federativa.
(…)
§ 3º A lei complementar a que se refere o caput preverá hipóteses de:
(…)
IV – isenção ou redução em até 100% (cem por cento) das alíquotas dos tributos referidos no caput para atividades de reabilitação urbana de zonas históricas e de áreas críticas de recuperação e reconversão urbanística.
Saliente-se, ainda, que, nos termos do parágrafo único do artigo 8º da Emenda Constitucional nº 132/2023, a lei complementar deverá definir quais produtos destinados à alimentação humana comporão a cesta básica nacional de alimentos, sendo certo que as alíquotas do IBS e da CBS incidentes sobre esses produtos deverão ser reduzidas a zero. Confira-se:
Art. 8º Fica criada a Cesta Básica Nacional de Alimentos, que considerará a diversidade regional e cultural da alimentação do País e garantirá a alimentação saudável e nutricionalmente adequada, em observância ao direito social à alimentação previsto no art. 6º da Constituição Federal.
Parágrafo único. Lei complementar definirá os produtos destinados à alimentação humana que comporão a Cesta Básica Nacional de Alimentos, sobre os quais as alíquotas dos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, da Constituição Federal serão reduzidas a zero.
Diante do exposto, imaginemos, por exemplo, que a alface (produto hortícola), a banana (fruta) e o ovo sejam inseridos, via lei complementar, na cesta básica nacional de alimentos. Em sendo assim, qual será a tributação (IBS e CBS) incidente sobre as operações com essas mercadorias? Redução de 60% das alíquotas (inciso VIII do § 1º do artigo 9º da Emenda Constitucional nº 132/2023), redução em 100% das alíquotas (alínea ‘b’ do inciso II do § 3º do artigo 9º da Emenda Constitucional nº 132/2023) ou alíquota zero (parágrafo único do artigo 8º da Emenda Constitucional nº 132/2023)?
Ao que parece, essa sobreposição de regras deixa transparecer que o crescimento desordenado das exceções à regra matriz contida no inciso X do § 1º do artigo 156-A é fruto, muito provavelmente, de sucessivas alterações da Proposta de Emenda à Constituição nº 45-A, de 2019, as quais visavam acomodar os pleitos de setores da economia com maior cacife político e ávidos por benefícios fiscais.
Da forma como estão redigidos, os dispositivos constitucionais supramencionados parecem clamar por uma completa revisão, de forma a eliminar incongruências e sobreposições de regras e definindo-se, de maneira clara e objetiva, os bens e serviços que serão objeto de um ou de outro benefício fiscal específico.
Certamente, uma revisão mais cuidadosa do texto final da Emenda Constitucional nº 132/2023, antes de sua promulgação, teria evitado os problemas apontados acima.
Fonte: Conjur