Sancionada no último dia 5, a Lei 14.879/2024 alterou as regras sobre eleição de foro para ações judiciais relacionadas a contratos privados. E os advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico entendem que a norma restringe a liberdade das partes de escolher o melhor local para resolver eventuais disputas.
A proposta foi concebida com o pretexto de desatolar a Justiça do Distrito Federal, mesmo sem dados que corroborassem tal necessidade. Profissionais que trabalham com Direito Civil, Processual e Empresarial percebiam, na verdade, uma preferência muito maior por São Paulo, que não era contestada.
O texto da lei diz que a escolha do foro precisa “guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação” — exceto em contratos de consumo nos quais o foro eleito seja favorável ao consumidor.
Com a nova regra, se as partes escolherem um foro aleatório, que não cumpra tais requisitos, o juiz poderá, de ofício, declinar a competência para analisar a ação e enviá-la a outra comarca.
SP fora da rota
De acordo com a experiência de advogados que lidam com casos do tipo, especialmente envolvendo empresas, os clientes tinham preferência por determinadas comarcas. A Justiça de São Paulo era um dos alvos prediletos.
A advogada Renata Cavalcante de Oliveira, sócia do Contencioso Cível do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados, conta que muitos clientes de outros estados costumavam eleger foros em São Paulo, devido principalmente à “celeridade” e à “especialidade” das varas.
Além disso, segundo ela, o Tribunal de Justiça paulista “tende a ser mais pró-contratual”. Ou seja, as decisões costumam ter “menos surpresas”. E a nova lei limita essa opção.
Carlos Braga, sócio da área de resolução de disputas do escritório Cescon Barrieu, afirma que existia, no geral, uma “tendência de eleição de foro em São Paulo” nos casos de empresas estrangeiras.
O advogado indica que isso é especialmente forte com relação às Varas Empresariais do estado, “reconhecidas por serem especializadas, técnicas e eficientes” — em outras palavras, “dão muita segurança para as partes”.
Mas, mesmo empresas brasileiras, principalmente de maior porte, tinham costume de eleger a Justiça paulista. É o que aponta Giuliana Schunck, sócia de Contencioso Cível do Trench Rossi Watanabe.
Isso acontecia porque o estado tem “uma boa Justiça, com Varas Empresariais bastante especializadas, que se destacam pela capacitação e sofisticação dos juízes”. Tais magistrados “estão acostumados a decidir casos grandes e complexos, o que muitas vezes se traduz em bons julgamentos (bem técnicos)”.
Assim, o Judiciário de São Paulo era bastante escolhido como “um foro isento”, mesmo quando não era o local de domicílio de qualquer uma das partes.
A preferência também ocorria para evitar insegurança jurídica. Oliveira exemplifica: em Minas Gerais, a comarca de Belo Horizonte possui a Central de Cumprimento de Sentença (Centrase), especializada nesta fase do processo para casos cíveis.
“Essa vara é super abarrotada”, diz a advogada. “As coisas lá não andam”. Por isso, quando havia possibilidade de escolher foro em MG ou SP, ela sempre optava por levar os casos para São Paulo, para evitar que as ações ficassem travadas na Centrase mineira.
De acordo com Diego Herrera de Moraes, sócio de Contencioso e Arbitragem do Mattos Filho, o impacto negativo da nova lei é amplo e atinge não só o Judiciário paulista.
Ele acrescenta que a escolha do foro levava em conta não apenas a especialização das varas, mas também o “nível de congestionamento do tribunal”, a “estabilidade da jurisprudência” e outros fatores.
Já Braga acredita que, com a nova regra, haverá “um novo impulso para as arbitragens” — outra alternativa que as partes têm no momento da contratação para encaminhar eventuais disputas relacionadas ao negócio.
Liberdade afetada
Oliveira diz que a nova legislação “limita a liberdade das partes de colocar o foro que entendem como o melhor para decidir um eventual litígio”.
Na sua visão, isso viola a Lei da Liberdade Econômica, segundo a qual “os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes”.
Já Moraes entende que “a nova lei vai na contramão do espírito do Código de Processo Civil, que permite de forma ampla a realização de negócios jurídicos processuais”.
Schunck concorda que a mudança promovida pela nova lei foi “ruim para o ambiente dos negócios”. De acordo com a advogada, a Lei 14.879/2024 não é positiva porque acabou com a possibilidade de escolha do foro mais conveniente e isento.
Para ela, a regra que obriga a escolha do foro de domicílio de uma das partes pode restringi-las a varas menos especializadas ou mesmo “com mais vieses, que podem levar a algum tipo de proteção (ainda que inconsciente) para a empresa local”.
O advogado Júlio César Bueno, sócio do Pinheiro Neto Advogados e coordenador da área contenciosa do escritório, considera que “a alteração contraria a tendência de consensualidade e contratualização do processo, estabelecida pelo CPC e pela Lei de Liberdade Econômica”.
Outro problema, segundo ele, é a incerteza gerada pela indefinição quanto à vara para o qual o processo deve ser enviado caso o juiz decline a competência. Bueno ainda ressalta que “já existia previsão legal para o controle de ofício de cláusulas abusivas pelo magistrado”.
Já Moraes acredita que a norma também gera insegurança jurídica aos contratos “sujeitos à cláusula arbitral, em especial nos casos em que a arbitragem é antecedida ou sucedida de disputa perante o Poder Judiciário”.
Isso porque, agora, há uma “incongruência” entre a escolha do foro arbitral — que ainda é ampla, pois não sofreu alterações — e a eleição do foro estatal (judicial), restringida pela nova lei.
Forum shopping em Brasília?
A Lei 14.879/2024 foi aprovada com a justificativa de evitar a sobrecarga de processos na Justiça do Distrito Federal. O deputado federal Rafael Prudente (MDB-DF), autor do projeto de lei aprovado, disse ter identificado nas comarcas locais muitas ações com partes de outros estados.
Já a deputada Érica Kokay (PT-DF), relatora do PL na Câmara, apontou que a Justiça distrital acumulava tais processos porque é mais rápida e tem custas mais baratas.
A justificativa da proposta, assinada por Prudente, dizia que o TJ-DF vinha “recebendo uma enxurrada de ações decorrentes de contratos que elegeram o Distrito Federal como foro de eleição para julgamento da causa, mesmo sem qualquer relação do negócio ou das partes com a localidade”.
Mas, na opinião de Schunck, a alegação de que a Justiça brasiliense estaria atolada não é suficiente para “uma mudança tão importante e impactante para os negócios do país inteiro”.
A advogada também afirma que as empresas do Sul e Sudeste, com as quais ela costuma lidar, geralmente optam pelos foros de São Paulo ou outros da região, e não do Distrito Federal.
Se a ideia da lei é evitar a prática do forum shopping — ou seja, a escolha dos foros mais favoráveis aos interesses da parte —, Bueno alerta: “Não há evidências empíricas de que o congestionamento do Judiciário seja causado pela eleição de foro”.
Em dezembro do último ano, quando o PL ainda tramitava no Congresso, o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) se manifestou de forma contrária à proposta. A entidade apontou justamente a falta de estudos e estatísticas que comprovassem “congestionamentos processuais” ou a escolha reiterada de varas e tribunais com “melhor desempenho”.
Segundo o IBDP, “pode até existir a preferência de empresas estatais federais pelo foro de Brasília, mas nenhuma tendência similar é visível a olho nu na iniciativa privada”. O instituto apontou a inexistência de uma “rota migratória única” ou de “oásis jurisdicionais que atraiam os litigantes aos milhares”.
Na justificativa do PL de Prudente, não havia qualquer dado sobre o suposto acúmulo de processos na Justiça do DF em função de cláusulas de eleição de foro.
Questionada pela ConJur, a assessoria de imprensa do deputado disse não ter um levantamento do tipo. Já o TJ-DF afirmou que não é possível levantar tais dados, pois as estatísticas são feitas com “base nas tabelas processuais unificadas do Conselho Nacional de Justiça”.
Injustiça injustificada
Durante a cerimônia de sanção, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, defendeu a nova lei e criticou a regra que valia até então: “Se o particular puder escolher o foro, ele penaliza a parte contrária, que terá de se deslocar, ou penaliza os tribunais mais eficientes”.
Mas Oliveira explica que a lógica do deslocamento não se aplica, pois a escolha do foro ocorre apenas em comum acordo entre as partes, no momento da assinatura do contrato.
Isso é diferente da situação em que uma das partes aciona a Justiça e a outra é pega de surpresa. Nesses casos, em que o autor teve tempo para se preparar, há critérios mais benéficos à parte contrária: o foro deve ser o local de domicílio do réu ou o local de cumprimento da obrigação.
A advogada discorda que a regra antiga penalizava a parte contrária, porque a cláusula de eleição de foro é estabelecida com antecedência. “Não pega ninguém de surpresa”, pontua.
De acordo com Schunck, na prática, “as partes escolhiam de livre vontade” e o foro podia ser o de domicílio de uma delas. Nesses casos, a parte que não fosse do mesmo local “já sabia de antemão que teria que se deslocar”.
Da mesma forma, era possível escolher um local em que nenhuma das partes estivesse localizada, o que seria mais “imparcial”.
Braga ressalta que o foro eleito não é necessariamente mais benéfico para o autor. “Quem tem mais poder de barganha no momento do contrato vai puxar para onde acha melhor”, assinala.
Schunck ainda lembra que, com o processo eletrônico, praticamente tudo é feito de forma virtual e o deslocamento quase não acontece.
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