Globalização, compliance e relativas patologias

A globalização incorpora um conceito amplo e multifacetado que se refere ao processo de integração e interdependência entre países e povos do mundo. Este fenômeno envolve a convergência de diversos aspectos e matérias, como economia, direito, cultura, política, tecnologia e sociedade, resultando em uma maior conectividade e intercâmbio entre nações. A relevância da globalização no mundo moderno (e pós-moderno) desempenha, portanto, um papel crucial na promoção do crescimento econômico, na difusão de ideias e culturas, e na criação de uma economia mundial interconectada [1].

Pense-se a como mudou e muda a vida de cada um de nós em relação à, por exemplo, possibilidade de viajar e conhecer outras culturas, regiões, cidades, continentes ou a facilitação em adquirir produtos e serviços de outros países. Ou até encontrar produtos e serviços estrangeiros dentro do nosso próprio país. Estudar e (ou) trabalhar em outro país, com diferente cultura, religião etc., a um custo relativamente acessível, se tornou muito mais fácil. Por esta perspectiva, o mundo apareceu e parece maior e mais perto.

Esta descrição acima representa simples (e glamourosos) reflexos da globalização na vida real de todos nós. Mas não é só isso! A globalização consta de elementos macroeconômicos muito mais complexos que abrangem o mundo das relações econômicas, sociais, financeiras, politicas e diplomáticas entre países. No entanto, a ela tem também gerado controvérsias e desafios significativos, como desigualdade econômica, perda de identidades culturais e impactos ambientais adversos.

Em particular, a experiência dos últimos anos demonstra que os maiores desafios, senão os mais importantes da globalização abrangem: (i) a manutenção do emprego das pessoas que trabalham em setores mais expostos à concorrência; (ii) a capacidade de mover e (ou) deslocar trabalhadores para serem absorvidos em setores que crescem mais rapidamente; e (iii) o crescente e constante desenvolvimento tecnológico e da inteligência artificial que, além de fomentar o aumento da interconexão global, do comércio e dos mercados globais, implica mais automação do trabalho e diferentes impactos nas temáticas ambientais e de sustentabilidade [2].

Processo inverso

Paradoxalmente, do ponto de vista jurídico, em vez de ocorrer a simplificação das regras para acompanhar e promover a harmonização e uniformização das disciplinas, parece que estamos assistindo a um processo inverso; ou seja, a uma intensificação de regras, processos, procedimentos, códigos, etc. não apenas produzidos por estados, mas também por organismos internacionais, privados e públicos. Esses esforços visam a ditar novas regras para que, sobretudo, o comércio internacional e as relações comerciais privadas sejam respeitosas de princípios éticos e sustentáveis.

É o assim chamado compliance ou compliance global! Refere-se compliance o conjunto de normas, regulamentos, procedimentos e códigos de comportamento que tenha como objetivo garantir que um determinado Estado, organismo ou empresa esteja em conformidade com as leis, regulamentos e normas aplicáveis que regem e regulamentam as suas respectivas atividades.

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Com foco aqui neste artigo, o principal objetivo do compliance é, portanto, evitar violações legais e garantir a integridade das relações comerciais e de negócios, assim como promover uma cultura ética. Sic et simpliciter, a aderência ao compliance implica o respeito e a aplicação concreta a princípios, como o da legalidade, da integridade ética e moral, da proteção dos direitos fundamentais, do meio ambiente, etc.

A conexão entre compliance e respeito a princípios é, portanto, imediata! Melhor, podemos até sustentar que o compliance tenha sido criado justamente para executar e implementar determinados princípios de forma a garantir que determinadas atividades sejam conduzidas de acordo, por exemplo, aos princípios da legalidade, integridade, etc.

Assim, da mesma forma, a aderência de um país, uma organização ou uma empresa ao compliance há a ser entendido como aderência a uma determinada e certa forma de globalização, ou seja, à globalização que promove o respeito da legalidade, integridade, etc. Em outras palavras, para representar as bases de qualquer Estado de Direito e (ou) Estado democrático de Direito! E assim nos entendemos! O respeito do compliance  concretiza o respeito de regras finalizadas à defesa de princípios cardeais de qualquer sociedade civil.

Vale, todavia, a seguinte reflexão

Os princípios, por definição, constituem normas genéricas [3]. Devido à sua natureza genérica, são suscetíveis de aplicação em diversas maneiras. A generalidade refere-se precisamente à amplitude da classe de sujeitos aos quais o conteúdo do princípio se aplica. Em virtude disso, é possível afirmar que o princípio possui um conteúdo abrangente, sem especificar exatamente como deve ser implementado [4].

Por exemplo, considere-se que proclama valores como a igualdade, a liberdade de manifestação do pensamento, o equilíbrio nas relações contratuais, o respeito ao meio ambiente, entre outros.

Portanto, a reflexão reside no fato de que, enquanto a importância de um princípio é percebida dentro de uma cultura jurídica, a importância de uma regra é revelada por sua relação instrumental na realização do princípio ou do ideal ético-político subjacente [5]. Assim, destaca-se a relevância da interpretação dos princípios, bem como da criação e interpretação das regras ou normas destinadas a concretizar a realização desses princípios.

Regras e normas funcionam, portanto, como instrumentos para a aplicação e execução de princípios. Essas regras e normas são sujeitas à mudança da realidade na qual se inserem e, sobretudo, à interpretação, de modo que sejam sempre instrumentalmente adequadas para aplicar os princípios à realidade, garantindo e assegurando as exigências substanciais de Justiça e a adaptação das normas aos casos concretos [6].

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Nessa perspectiva, é possível sustentar que as operações interpretativas buscam maximizar as oportunidades oferecidas pelos textos legais para garantir a máxima relevância e eficácia aos direitos. Elas permitem e favorecem a funcionalização dos direitos em todo o ordenamento jurídico.

Mutatis mutandis, a nosso ver, o compliance também deve ser interpretado de maneira crítica. Esta reflexão busca evidenciar que, embora os princípios subjacentes e tutelados sejam indiscutíveis, a “instrumentalidade” ou “funcionalidade” do conjunto de normas, códigos de condutas e comportamentos, que compõem o sistema “ético”, pode ser questionada.

Da mesma forma que a lei pode ser justa ou injusta, completa ou incompleta, o sistema de compliance segue (ou deveria seguir) a mesma lógica de razoabilidade e questionabilidade, sem, contudo, pôr em dúvida a legitimidade dos princípios subjacentes tutelados.

Por concretizar um conjunto de normas jurídicas, o compliance também necessita seguir a mesma exigência interpretativa “funcional” que qualquer norma deve obedecer em relação à defesa e à aplicação dos princípios. Por exemplo, na luta contra a corrupção, os princípios tutelados pela lei incluem, primariamente, o princípio da igualdade, o da transparência e o da legalidade.

compliance, então, consiste no conjunto de normas que regulamentam como determinados comportamentos devem ser conduzidos para evitar a corrupção e, consequentemente, garantir a não violação desses princípios. A mesma lógica se aplica à proteção do meio ambiente e, especificamente, à luta contra o desmatamento, entre outros.

Conforme salientado pelo professor Pierpaolo Cruz Bottini, em sua habitual perspicácia e vasta erudição, no artigo sobre a luta contra a lavagem de dinheiro intitulado “Os excessos do Compliance e o fenômeno de-risking” [7], ele observa que “adotar regras tão rígidas, procedimentos tão pesados […] acabam por afetar de forma significativa sua atividade econômica”.

O professor alerta que o excesso de compliance,  no sentido de criar uma superestrutura de integridade, nem sempre é eficaz e eficiente, podendo gerar efeitos colaterais significantes. Além disso, destaca o fenômeno de-risking que, no contexto da globalização, através do covenant quase padronizado em todos os instrumentos financiários resumido na  expressão “compliance ao Direito aplicável” aumenta, por vezes de maneira discricionária, o risco de não cumprimento das normas e regras de compliance, cujas consequências são amplificadas pela interconectividade global, tanto nacional quanto internacional, dos sistemas bancários e financeiros.

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O mesmo raciocínio e a mesma interpretação crítica deveriam ser aplicados para interpretar superestruturas de integridade cada vez mais complexas e globais (compliance global). Um exemplo disso são as exigências impostas pela União Europeia no âmbito do Green Deal [8] e pelos Estados Unidos em relação à adoção da Lei de Prevenção à Extorsão Estrangeira (Foreign Extortion Prevention Act — Fepa) [9].

A análise conjunta dessas normas se justifica, por um lado, pela característica de extraterritorialidade intrínseca a essas normativas (União Europeia e EUA impõem normas de Direito aplicável “fora” de seus respectivos territórios); e, por outro lado, por reconfigurarem o próprio conceito de globalização. Essas normas impõem o cumprimento de medidas rigorosas e discricionárias que, ao invés de facilitarem o processo de globalização, parecem promover o processo inverso: uma forma de desglobalização [10].

Portanto, julgamos pertinente questionar: qual seria o remédio adequado em face de um compliance excessivamente rígido, ineficaz ou injusto? Seria possível qualificar e disciplinar tal situação, por exemplo, como uma forma de abuso do direito?

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[1] BAUMANN, Renato. Globalização, desglobalização e o Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2668, 2021; BALERA, Wagner. ODS 16: Paz e Justiça. In Comentários aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, BALERA, Wagner, SOARES DA SILVA, Roberta (orgs.), São Paulo: Verbatim, 2018; BONAGLIA, Federico; GOLDSTEIN, Andrea. Globalização e Desenvolvimento, Lisboa, Editorial Presença, 2006.

[2] STIGLITZ, Joseph E., Globalização: a Grande Desilusão, Lisboa, Terramar, 2004; STIGLITZ, Joseph E. A Globalização e seus malefícios: a promessa não cumprida de benefícios globais, São Paulo: Ed. Futura, 2002; CASSAR, Volia Bomfim. Princípios Trabalhistas, Novas Profissões, Globalização da Economia e Flexibilização das Normas Trabalhistas. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009; ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros Editores, 2022; BOBBIO, Norberto; A Era dos Direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

[4] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática  constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996.

[5] MCCORMICK, Neil. Ragionamento giuridico e teoria del diritto. (Trad. A. Schiavello), Torino, Giappichelli, 2001.

[6] BALDASSARRE, Pastore. Complessità del diritto, interpretazione, ragione giuridica. Padova, CEDAM, 2024.

[7] Cf. https://www.conjur.com.br/2023-jun-26/direito-defesa-excessos-compliance-fenomeno-risking/

[8] Cf. https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/european-green-deal_pt

[9] Cf. https://www.conjur.com.br/2024-fev-26/eua-reforcam-protecionismo-com-nova-lei-contra-extorsao/

[10] Cf.  https://www.conjur.com.br/2024-mai-09/compliance-global-a-nova-cara-do-protecionismo/

Fonte: Conjur