Legislação experimental, PL do Estupro e jabuti das blusinhas

AGU e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços anunciaram no último dia 24 de junho uma cooperação para desenvolver o procedimento de legislação experimental. Você, pessoa desavisada e incrédula nas inovações que possam sinalizar alguma luz no ringue polarizado da crônica político-legislativa nacional saiba que ainda há vida republicana no Brasil.  Ainda que, por enquanto, seja o Executivo a dar o passo enquanto o Legislativo assista a banda passar.

A legislação experimental como o próprio nome indica é um procedimento (com garantias à uma polifonia dos afetados) que encontra o seu espaço de atuação, exatamente onde a possibilidade de consenso sobre como regular uma matéria parece estar a anos luz de um desfecho no mundo terreno.

Para quem ainda acha que elaborar um ato normativo (seja ele de origem parlamentar/legal, ou regulamentar/legal) significa publicar e assistir a dinâmica da situação objeto da ação legislativa, há remédios para aqueles temas que ninguém quer e todo mundo fala.

A fala inclui até mesmo a alegação da inexistência do dever de legislar (cuja necessidade é fartamente documentada nas burocracias judiciais e administrativas), como se a afetação de recursos públicos para os legislativos federais, estaduais e municipais fosse coisa de pouca monta que não tivesse a contrapartida de poder-dever. Aliás, a defesa da legislação pelos legisladores (e legisladoras em menor número, mas isso é assunto para depois) é sempre invocada quando o Judiciário se lança no seu desejo secreto e explícito de legislar.

Afinal, há um imenso campo das omissões, moras e lacunas legislativas que povoam a vida cotidiana nacional. Exorbitância de competência, reserva legal, conflito entre poderes são parte dos mantras entoados pelo mesmo Legislativo (mandatários da atual legislatura) que ignora temas difíceis, controversos de olho nos likes, quer dizer, votos na próxima campanha.

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A legislação experimental apresenta-se como técnica que atua sobre a duração (vigência) de uma legislação. Na prática, significa o reconhecimento estratégico do papel do tempo e sobre como modulá-lo de maneira eficiente para alcançar os objetivos justificadores da sua existência (ou deveria sê-lo). A modulação de efeitos da legislação não é algo estranho à crônica jurídica brasileira, haja vista o que ocorre com os efeitos das declarações de inconstitucionalidade, ou mesmo com os eventuais conflitos em caso de perda de eficácia das medidas provisórias (de novo, o tempo), ou mesmo no caso de legislações em tempos de calamidades e riscos.

Os outros campos de atuação da lei experimental têm a ver com o impacto da tecnologia em produtos, processos e na sociedade, ou mesmo quando há conflitos e visões divergentes sobre um tema cujos dados e evidências demonstrem problemas na efetividade de direitos fundamentais, por exemplo. O período de existência de uma legislação é controlado ( modulação do tempo de vigência) com o fim de verificação dos efeitos e também no modo como a sociedade, as instituições, o setor produtivo, os governos reagem ao conteúdo da decisão de legislar.

Insumos informacionais obtidos nessa etapa formam uma justificação poderosa ao aperfeiçoamento da legislação. Essa inovação na elaboração de legislações e regulações considera as contingências do nosso tempo e a necessidade de leis que façam sentido e que sua edição minimize a criação ou risco de efeitos perversos, desiguais, com ônus. Por fim, a legislação experimental lida com problemas públicos, problemas delimitados no arco de direitos e garantias da nossa Constituição, inclusive aqueles com impacto sobre a dignidade humana, a autonomia científico-tecnológica, o desenvolvimento nacional, a maior isonomia entre entes e pessoas e etc.

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Legislação experimental exige planejamento

O planejamento passa, primeiramente, pela definição do tipo de problema a ser enfrentado. Falamos de questões do presente que necessitam serem redesenhadas para o futuro. Como o mundo deveria ser, pode passar por percepções religiosas, ideológicas, morais, mas elas não podem desconsiderar a ocorrência de efeitos aqui e agora.

Porém, o tempo, no procedimento legislativo ou regulatório tem o seu lado b que não tem nada de bom para a nossa República.Práticas legislativas malfazejas estão entre nós, mesmo com as inovações identificadas no Executivo e no Judiciário.

Uma das formas para obtenção de consensos autoritários e em franco desrespeito ao princípio constitucional do contraditório que permite a circulação de informações e sua dinâmica de verificação e contradita é o regime de urgência. Ele entra em rota de colisão com toda a proposta de inovação da legislação experimental pois cria uma barreira às condições para uma livre deliberação pública, com a devida crítica fundamentada quanto efeitos de um texto inicial de proposição legislativa.

Foi o caso do PL do Estupro (PL nº 1.094/2024) que sem considerar o iter legislativo ordinário pretende criar um ilícito desproporcional e desumano que atinge mulheres e meninas brasileiras. A avalanche de dados contrários ao texto apresentado e o deslocamento do debate parlamentar para a arena cotidiana e das redes sociais, mostrou o desastre da desconsideração do tempo e da necessidade de seriedade no deferimento dos regimes de urgência de tramitação. O balão de ensaio, mal acabado, do Legislativo, tal e qual o real das Festas de São João chamuscou, ainda mais, a imagem da Câmara dos Deputados.

Nosso segundo caso de péssimas práticas legislativas, tem a ver com o PL 914/2024 cujo objeto é a produção de veículos menos poluentes. A iniciativa, conforme os objetivos do desenvolvimento sustentável, tem toda a justificação de uma legislação intergeracional a marcar o campo legislativo brasileiro no setor, porém, trouxe consigo um oitavo passageiro.

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A “taxa das blusinhas “,ou a taxação de compras internacionais até 50 dólares não poderia ser discutida, de forma, ampla, aberta e republicana. Ela tinha que ser aprovada a todo custo, ainda que seu preço fosse o desrespeito às regras do jogo, do devido processo legislativo (sim, de novo o artigo 7º da Lei Complementar nº 95/1998 que não por acaso regulamenta o art. 59 da Constituição) , minando as bases principiológicas do Regimento do Senado, frustrando de uma só vez a participação, o contraditório, a deliberação (artigo 412).

Bons argumentos não faltam para impedir a aquisição de importados de baixo custo (por boa parte da população que não viaja para o exterior) como a evasão fiscal, concorrência desleal da indústria têxtil internacional, ocorrência de trabalho escravo etc. Três bons assuntos diferentes, díspares, com regimes próprios a exigir tempo, dados, discussão, afinal o inferno anda cheio de boas intenções, inclusive as legislativas.

Inovações que coloquem o tempo da legislação e sua sabedoria a serviço de instituições mais legítimas (no caso, o Executivo) têm na legislação experimental uma boa prática. Porém, cabe aos legisladores, não ao decurso do tempo, a decisão de fazerem sentido para quem vota, respeitando as próprias regras que criam.

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