Quase dez anos após o início da discussão (Recurso Extraordinário 635.659), o Supremo Tribunal Federal encerrou o julgamento sobre a descriminalização da cannabis sativa com a fixação de parâmetros para diferenciar o usuário do traficante.
Os ministros, embora não tenham agradado a gregos e troianos, decidiram que quem portar até 40 g ou seis plantas-fêmeas de cannabis comete ilícito administrativo e será penalizado nas sanções do artigo 28, incisos I e III, da Lei 11.343/06, ressaltando que o critério objetivo é relativo, ou seja, o indivíduo que portar quantia inferior ainda pode ser considerado traficante e vice-versa.
Chama atenção o fato de que não há modulação de efeitos na decisão, ou seja, ela retroagirá para beneficiar os milhões de réus e apenados espalhados pelo país, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição, como referido pelo ministro Luís Roberto Barroso ao final do julgamento.
Assim, engana-se quem pensou que o novo entendimento do Supremo implicaria apenas na extinção da punibilidade de usuários condenados, no arquivamento de alguns processos de tráfico em curso e na soltura dos indivíduos que foram, equivocadamente, enquadrados como traficantes e presos preventivamente.
Os reflexos dessa decisão vão além e podem gerar uma série de revisões e recursos no Poder Judiciário. Vejamos:
Reabilitação criminal
Primeiramente, cita-se a reabilitação criminal (artigos 93 a 95 do CP), que prevê a possibilidade de o indivíduo que já cumpriu sua pena buscar judicialmente o sigilo da sua condenação, numa espécie de “limpeza” de sua ficha criminal.
Embora a condenação por porte de cannabis não acarrete as consequências previstas no artigo 92 do CP (e.g. perda de cargo, função pública ou mandato eletivo), ainda pode impactar na vida civil do indivíduo, ao constar em seus antecedentes criminais. Isso porque sua consulta é procedimento comum em entrevistas de emprego, contratações, concursos públicos, empréstimos bancários e até mesmo na tentativa de retirada de visto para visita, moradia ou trabalho em países estrangeiros.
A questão que se coloca é, portanto, se as pessoas que possuem anotação em seus antecedentes criminais em razão da prática da conduta descriminalizada poderão eliminá-la de suas fichas ou rever decisões prejudiciais, como, por exemplo, a desclassificação de um concurso público.
Revisão criminal
Em seguida, tem-se a revisão criminal, que permite que condenados solicitem a revisão de sua sentença já transitada em julgado, desde que o caso se amolde às hipóteses do rol taxativo do artigo 621 do CPP.
Das hipóteses previstas no artigo 621, verifica-se que os indivíduos condenados por tráfico de drogas, que traziam consigo até 40g de cannabis ou seis plantas-fêmeas, poderão solicitar a revisão com base em seu inciso primeiro (“Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida: I – quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos;”), uma vez que o STF reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06.
É sabido que os tribunais superiores entendem que a mudança de entendimento jurisprudencial não dá ensejo à revisão criminal [1]. Todavia, o STF declarou a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06 para fins criminais, tornando a lei inválida neste âmbito, isto é, a sancionou com a perda de todos os seus efeitos, logo, tais sentenças condenatórias devem ser entendidas como “contrárias ao texto expresso de lei”. Não se trata, portanto, de mera alteração da interpretação jurisprudencial do dispositivo ou dos fatos relevantes à sua aplicação, estes mutáveis com o tempo, mas de verdadeira invalidade plena da lei para efeitos criminais desde sua promulgação.
Não somente isso. Com fulcro no mesmo inciso, o indivíduo que teve sua pena aumentada em razão conduta descriminalizada poderá pleitear a sua revisão. Afinal, com a descriminalização, tal condenação não poderia ter sido utilizada como fundamento para o magistrado exasperar a pena-base do réu ou reconhecer a agravante da reincidência.
Acordos penais
Da mesma forma, serão impactados os processos em que a transação penal [2] e a suspensão condicional do processo [3] são viáveis. A leitura dos dispositivos revela que somente serão oferecidos ao réu caso ele não possua antecedentes ou não esteja respondendo por outro processo criminal [4]. De pronto, presume-se que para diversos réus não foram oferecidos estes acordos por não preencherem aqueles requisitos em razão da conduta descriminalizada.
Embora perdure a discussão sobre a faculdade do Ministério Público em ofertar ou não tais acordos, a jurisprudência [5] vem reconhecendo que estes benefícios são um direito subjetivo do acusado. Deste modo, sendo agora a conduta prevista no artigo 28 um ilícito administrativo, tais acusados passaram a fazer jus às benesses mencionadas, devendo o magistrado conceder ao Ministério Público a oportunidade de oferecê-las, de forma similar ao previsto pela Súmula 337 do STJ [6].
Para os processos findos, a discussão pode ser construída em razão da complexidade e unicidade do cenário gerado pela descriminalização, mas, de acordo com STJ, é inadmissível o pleito da suspensão condicional do processo após a prolação da sentença [7].
Falta grave
Por fim, pode-se dizer que, na esfera da execução penal, a decisão repercutirá nas faltas graves aplicadas aos apenados que foram flagrados portando cannabis dentro do sistema prisional.
Isso porque a LEP, em seu artigo 52, dispõe que será considerada falta grave a prática de fato considerado como crime doloso. Assim, não sendo mais tal conduta considerada crime e nem se enquadrando nas demais hipóteses de falta grave previstas no rol taxativo [8] do artigo 50 da LEP, não haverá alternativa aos juízes da execução penal senão a revogação das faltas graves anteriormente impostas por este fundamento.
Aliás, em situação similar, a 13ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP absolveu um apenado pela prática de falta grave por ter se tatuado dentro do presídio, pois tal conduta não se amolda em nenhuma das hipóteses de falta grave constantes na LEP — e, no caso concreto, sequer nas previsões do Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais do São Paulo [9].
O desembargador Marcelo Semer, relator do caso, ressaltou em seu voto que não se poderia permitir a punição de uma autolesão em razão do princípio da alteridade, o que se enquadra perfeitamente na hipótese de o indivíduo ser flagrado portando cannabis dentro do sistema prisional, visto que, fazer o uso da substância, nada mais é do que uma autolesão, o que foi amplamente discutido pelos ministros do STF durante o julgamento do RE 635.659.
Portanto, percebe-se que, além das questões atinentes à saúde e segurança pública, a descriminalização do porte de cannabis para consumo próprio irá causar um grande impacto no Poder Judiciário, que, além de continuar sendo competente — por ora — para processar um ilícito que não é de sua alçada, terá de enfrentar incontáveis revisões e recursos.
[1] “8-A. Alteração na jurisprudência: como regra, não deve provocar a revisão criminal. O entendimento acerca de diversos temas, questões fáticas e jurídicas, pode mudar ao longo do tempo, não sendo causa válida para justificar a revisão da pena aplicada”. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 12 ed. p. 1.087.
[2] “Art. 76 […] § 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado: […] III – não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.”
[3] “Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena.”
[4] O Acordo de Não Persecução Penal ainda pode ser ofertado. O legislador deixou claro na redação do inciso II, do § 2º, do art. 28-A, do CPP: “ Art. 28-A […] § 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses: […] II – se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas.
[5] STJ, HC 131.108/RJ, Relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, j. 18/12/2012.
[6] “Súmula 337. É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva.”
[7] STJ, AgRg no REsp 1.503.569/MS, Relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, j. 04/12/2018.
[8] STJ, Jurisprudência em Teses, Edição N. 145, Item 10: “O rol do art. 50 da Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/1984), que prevê as condutas que configuram falta grave, é taxativo, não possibilitando interpretação extensiva ou complementar, a fim de acrescer ou ampliar o alcance das condutas previstas. Julgados: HC 481699/RS, REsp 1519802/SP; HC 284829/SP; HC 519800/RS; REsp 1806559/RO; e REsp 1789178/TO”.
[9] TJSP, Agravo de Execução Penal 0014132-81.2023.8.26.0996, Relator Marcelo Semer, 13ª Câmara de Direito Criminal, j. 12/01/2024.
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