Lei das consequências não intencionais e proteção à vítima no direito processual penal

Em 1989, o petroleiro Exxon Valdez protagonizou um dos maiores vazamentos de petróleo na costa do Alasca. Estima-se que o equivalente entre 257 mil a 750 mil barris de petróleo foram derramados quando no navio encalho na enseada do Príncipe Guilherme. Neste acidente, morreram cerca de 260 mil pássaros marinhos, 2,8 mil lontras, 250 águias e 22 orcas, para ficar nos exemplos mais expressivos.

Esta tragédia gerou a busca por aprimoramento no serviço de transporte de óleo e, entre eles, a edição de uma série de leis. Estas leis reforçavam a responsabilidade dos transportadores de petróleo e, evidentemente, seu objetivo era criar maior responsabilidade para evitar que novas tragédias ambientais se repetissem.

No entanto, esta lei gerou uma consequência não intencional [1]: o Grupo Royal Dutch/Shell, uma das maiores empresas de petróleo do mundo, passou a contratar navios independentes para a entrega de petróleo em vez de usar sua própria frota de 46 petroleiros. Com isso, a probabilidade de derramamento de óleo aumentou dado o uso de petroleiros de qualidade duvidosa.

Uma lei que originalmente fora elaborada para aumentar a proteção contra vazamentos de petróleo normal tornou mais frágil o transporte aumentando os riscos quando tais leis não existiam.

Este é um exemplo da lei das consequências não intencionais: uma lei que é projetada com finalidade específica, por conta de situações não previstas pelo legislador acaba gerando o oposto do que pretendia.

Lei das consequências não intencionais e o processo penal

No direito processual penal temos vários exemplos, e gostaria de me focar na indenização cível para a vítima.

Até 2008, o sistema era relativamente simples. A sentença penal condenatória transitada em julgado era título executivo judicial. A vítima deveria buscar a liquidação do valor na esfera cível. Não se discutia mais se o réu era responsável pelo dano mas apenas seu valor. É dizer, não se discutia mais o an debeatur, mas apenas o quantum debeatur.

Em 2008, a Lei 11.719, buscando aprimorar a proteção das vítimas, promoveu duas alterações importantes no Código de Processo Penal:

1) O artigo 387, IV estabeleceu que o juiz deveria fixar o valor mínimo da indenização considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido e
2) O artigo 63, parágrafo único estabeleceu que a vítima poderá executar o valor mínimo sem prejuízo de liquidação do restante do valor.

A partir de 2008, passaríamos a ter então dois mecanismos conjuntos:

a) o juiz poderia fixar um valor indenizatório mínimo e
b) a vítima, além de executar este valor, poderia fazer a liquidação da sentença buscando a satisfação do valor justo.

Passados quase 16 anos desta mudança, temos ainda insegurança na jurisprudência quanto ao trato desta questão da indenização e a jurisprudência oscilou muito ao longo dos anos.

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Logo após editada a lei, surgiram três posições sobre o tema:

a) o juiz poderia fixar de ofício o valor da indenização;
b) haveria necessidade de pedido para a imposição deste valor e
c) haveria necessidade de pedido deste valor que somente poderia ser feito pelo ofendido. Também se discute se, havendo pedido, este precisa ser com o valor específico da indenização ou pode ser genérico.

Violência contra a mulher

O STJ definiu parte deste tema relativamente aos casos envolvendo a Lei Maria da Penha e fixou o Tema 983: nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória.

Este acórdão foi afetado em 4 de outubro de 2017, julgado em 28 de fevereiro 2018 e transitado em julgado em 19 e abril de 2018. Ou seja, passados 12 anos da mudança da lei foi pacificado o tema, mas apenas e unicamente nas questões envolvendo a Lei Maria da Penha.

A questão acaba adquirindo preocupação, pois nas demais situações o entendimento do STJ não é esse. Vejamos esse julgado abaixo:

“A interpretação do artigo 387, inciso IV, do CPP consentânea com as garantias constitucionais do devido processo legal e do contraditório e da ampla defesa orienta que a fixação, na sentença condenatória, de valor mínimo para reparação de danos materiais causados pela infração depende de pedido expresso na inicial, com a indicação do valor a ser indenizado, bem como da realização de instrução probatória específica. Precedentes”. (STJ, T5, AgRg no AREsp 2108809/SP, Rel. Messod Azulay Neto, DJe 04.10.2024).

Este julgado segue a orientação definida pela 3ª Seção que estabelece que “1. À exceção da reparação dos danos morais decorrentes de crimes relativos à violência doméstica (Tema Repetitivo 983/STJ), a fixação de valor mínimo indenizatório na sentença — seja por danos materiais, seja por danos morais — “[…] exige o atendimento a três requisitos cumulativos: (I) o pedido expresso na inicial; (II) a indicação do montante pretendido; e (III) a realização de instrução específica a fim de viabilizar ao réu o exercício da ampla defesa e do contraditório” (REsp 1986672/SC, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, Terceira Seção, julgado em 08/11/2023, DJe 21/11/2023)” (STJ, T6, AgRg no REsp 2008575/RS, Rel. Min. Teodoro Silva Santos, DJe 07.03.2024).

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Ou seja, para entendermos adequadamente como está a questão da indenização precisamos nos perguntar se está ou não no âmbito de crimes relativos à violência doméstica. Em caso positivo, há necessidade de pedido e não há necessidade de indicação do valor concreto nem de instrução probatória específica. Se não for no âmbito da violência doméstica, então há necessidade de pedido, indicação de valor concreto e instrução específica.

Indenização da vítima

A preocupação com a vítima é valor relevante em nossa sociedade. No entanto, quando esta preocupação é feita pelo legislador unicamente com o objetivo de populismo penal, a lei das consequências indesejáveis assume o papel: a proteção da vítima com as mudanças operadas pela lei deixa de ter segurança e torna-se terreno inseguro.

Tantos e tamanhos são os riscos envolvidos no uso do direito processual penal para obtenção de indenização da vítima que a conduta segura da parte é valer-se de ação cível autônoma. David Garland nos alerta sobre o risco que existe no sistema ao se colocar a vítima como protagonista do sistema criminal.

Além dos tradicionais riscos relativos à limitação de direitos e garantias fundamentais, temos os riscos gerados pela própria lei das consequências indesejadas. Há o risco de a vítima ser utilizada apenas como um totem a justificar nossas punções punitivas.

O exemplo acima mostra o porquê precisamos ser melhores na elaboração e na aplicação das leis. A ideia original do legislador era aumentar a proteção da vítima e, no entanto, gerou tamanha insegurança que reduziu a sua proteção.

O processo criminal tradicional não tem se mostrado o local mais adequado para a proteção da vítima. O processo criminal transformativo, no entanto, apresenta múltiplas possibilidades de mudança e de solução de problemas. Mas este é tema para outro artigo.

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Referências

ALVES, Leonardo Barredo Moreira. Manual dos Direitos da Vítima e de Vitimologia. Editora Juspodivm, 2024.
GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Editora Revan, 2008.
ROSA, Cristina Schmitt. Reflexões sobre o papel da vítima no sistema de justiça criminal. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, v1 (95), 2024. Link para acesso: https://revistadomprs.org.br/index.php/amprs/article/view/375/236


[1] Para maiores detalhes veja aqui

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