A responsabilidade funcional pelo abusivo lançamento tributário

No Código de Defesa do Contribuinte do Estado de São Paulo (Lei Complementar 939/03) consta a seguinte norma: “artigo 4° – São direitos do contribuinte: XX – o ressarcimento por danos causados por agente da Administração Tributária, agindo nessa qualidade, decorrentes de abuso de poder por parte do Estado na fiscalização”. Esse inciso foi acrescido em 2005, pela Lei Complementar 970. No que consiste essa disposição?

Trata-se de um direito fundamental dos contribuintes à boa administração fiscal, pelo qual nada pode ser exigido além do que está estabelecido nas normas, e que tais exigências sejam pautadas nas condições de confiança recíproca, moralidade, boa-fé e urbanidade que devem reger as relações entre fisco e contribuintes. Embora não exista um dever que seja fundamental ao pagamento de impostos (em discordância com Casalta Nabais), não se deve esquecer que tributos são o preço que pagamos por uma sociedade civilizada (alinhado com Oliver Holmes), a despeito de ser sabido que o poder de tributar envolve o poder de destruir (conforme John Marshall), conforme expus em outro texto.

A norma do CDC paulista nos conduz a um passo civilizatório no âmbito financeiro-administrativo, decorrente de um abuso no exercício do poder tributário, amparado no direito fundamental (que só os contribuintes podem ter) à boa administração fiscal.

Existem dois requisitos que devem ser considerados para a implementação dessa norma.

Primeiro, deve-se buscar a identificação da conduta do agente de fiscalização como um ato de “abuso de poder”, o que implica em comprovação de atuação dolosa daquele agente público visando prejudicar o contribuinte.

Será que a expressão “abuso de poder” constante da norma engloba o lançamento que tenha sido realizado de forma errônea? Penso nem sempre ser possível identificar plenamente um conceito ao outro, mas existe uma zona de intersecção entre eles. Em algumas situações identifica-se o procedimento fiscalizador como abusivo e conduzido de forma a coagir o contribuinte a pagar tributos que sabidamente são indevidos. E isso ocorre muitas vezes de forma conjunta com constrangimentos penais, com a remessa dos autos ao Ministério Público para análise de eventuais crimes contra a ordem tributária. Nada é mais constrangedor do que imputar o cometimento de um crime a uma pessoa que pauta sua conduta de conformidade com os preceitos de compliance.

Segundo, deve-se estabelecer uma relação de causa e efeito entre a conduta dolosa e o dano sofrido, que pode ser de diversos âmbitos, como material (pagamento de advogados, contadores, custas e custos, perícias etc.) e também imaterial (abalo de crédito na pessoa jurídica, abalos psicológicos nas pessoas físicas etc.).

READ  Polícia não pode pedir direto ao Coaf dados de movimentação financeira, diz STJ

Indenização

Identificados esses dois requisitos, surge o direito à indenização, que é amparado pela referida norma do CDC paulista e pelo artigo 37, §6º, da Constituição, que estabelece: “§6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros…”.

Quem pagará a indenização serão os cofres públicos, que posteriormente se ressarcirão desses custos, cobrando daquele agente, por meio de “… direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”, conforme a parte final do §6º, do artigo 37, CF. Observe-se que a norma constitucional é até mais ampla que a estadual, a qual menciona apenas o “abuso de poder”, apontando apenas para condutas dolosas, enquanto a constitucional menciona inclusive as condutas culposas.

Desconheço casos em que os contribuintes tenham utilizado dessas duas normas para se ressarcir dos danos causados pela atuação fiscalizatória, mas, atendidos os dois requisitos referidos, o direito surge pleno. Igualmente desconheço situações concretas, envolvendo ou não matéria tributária, em que o Poder Público tenha buscado se ressarcir dos pagamentos efetuados por meio de ações de regresso.

Em síntese: o que é assegurado de forma ampla pela Constituição (artigo 37, §6º) é explicitado no âmbito tributário pelo CDC paulista (artigo 4º, inciso XX), ainda que de forma restrita.

O que a norma paulista põe em evidência ao tratar dos aspectos tributários é assegurar ao contribuinte um dos múltiplos direitos fundamentais que possui, que é o da boa administração fiscal, expurgando eventuais condutas dolosas de agentes de fiscalização que agem de má-fé contra os contribuintes, conspurcando a confiança recíproca que deve presidir as relações entre os fiscos e os contribuintes, pois, sem ela, não há civilização, apenas barbárie.

READ  Marcos Carazai: As fraudes envolvendo criptomoedas

O post A responsabilidade funcional pelo abusivo lançamento tributário apareceu primeiro em Consultor Jurídico.