Negacionismo judicial: a hipótese do reconhecimento fotográfico

Parece não haver mais dúvidas que o reconhecimento a partir da exibição de fotografias é uma das principais fontes de injustiça nos julgamentos criminais. A ausência de cuidado e a violação de limites jurídicos, éticos e epistemológicos potencializa o que Daniel L. Shacter chamou de “pecados da memória”. [1]

Reprodução

A questão torna-se mais grave pelo desconhecimento demonstrado por juízes sobre o funcionamento da memória. Para entender a dinâmica do reconhecimento, é preciso compreender fenômenos como a transitoriedade, a distração, a distorção óptica, o bloqueio da memória, a sugestionabilidade da testemunha e, por fim, a atribuição equivocada da autoria.

Não é mais admissível que juízes ignorem avanços da ciência relativos à memória. Como haver um inegável enfraquecimento da memória com o tempo. A transitoriedade e a fragmentariedade dos dados são características que vão repercutir em falhas no processo de recordar. Informações juridicamente relevantes à cognição não chegam a ser registradas e, muitas vezes, isso ocorre em razão da distração, ruptura na interface entre a atenção para um determinado dado e a memória que se exige da testemunha.

Os juízes também não podem ignorar que é frequente a ocorrência de bloqueio, especialmente em situações traumáticas. Outro fenômeno bastante comum é a atribuição errada: confusão entre uma fantasia ou imaginação e o evento, por exemplo, quando a testemunha se lembra de determinada conduta, mas a atribui a uma pessoa que ela até já viu, mas que não foi a autora.

Pecados da memória

No campo do reconhecimento, os principais pecados da memória são a sugestionabilidade e a distorção. Lembranças são fabricadas a partir de comentários, imagens ou perguntas tendenciosas. Como explica Daniel L. Schacter, a “sugestionabilidade na memória pode ser descrita como uma tendência do indivíduo a incorporar informações enganadoras de fontes externas (…) a recordações pessoais” [2], que não raro transformam sugestões em lembranças e daí em uma atribuição errada. A sugestão é sempre fruto de uma ação de terceiros, mas quando é um agente estatal (policial, promotor ou juiz), a conduta se torna ainda mais danosa, porque tende a ativar o viés de confirmação.

A distorção é fenômeno que traduz a existência de fortes influências das informações que a vítima ou testemunha adquiriram após o fato sobre a maneira como elas se lembram e descrevem o evento. Se a vítima é informada que a pessoa que acabou de identificar, com hesitação, como o autor de um crime é conhecido por ser suspeito de crimes similares, tende à dúvida em certeza.

A memória não reproduz os fatos como ocorreram; os reconstrói a partir de elementos que não guardam relação necessária com a facticidade. As informações captadas pelos órgãos sensoriais ao longo da vida são transformadas e armazenadas como traços de memória. Nesse procedimento de criação e recriação, com frequência, recorre-se a elementos que não ocorreram no contexto do fato como forma de preencher lacunas ou dar coerência a um relato. A memória, para ser ativada, exige três fases: a codificação (entrada de um traço da memória), o armazenamento (manutenção de alguns traços da memória, enquanto outros são descartados) e a evocação (tentativa de reconstrução do fato e produção de memória apta a ser descrita pela linguagem). Distorções podem ser produzidas em cada uma dessas fases -a codificação pode se dar a partir de uma distorção óptica, ser fruto de uma distração ou mesmo de um preconceito do observador.

Se a prova testemunhal é oportunidade para produção desses vícios, no procedimento de tentativa de reconhecimento fotográfico, conduzido sem cuidados mínimos, os riscos aumentam exponencialmente. Com frequência, a testemunha é submetida à sugestão, até de forma involuntária.  Sempre que essa pessoa é informada que os suspeitos retratados em álbum de reconhecimento são conhecidos por crimes similares, ela tende a acreditar que o criminoso se encontra no álbum e acaba por reconhecer uma das pessoas que lhe foram mostradas. A técnica da exibição do álbum de suspeitos, por si só, já tem o poder de influenciar em falsas atribuições.

READ  TSE adequa normas e aumenta transparência do uso do poder de polícia nas eleições

Problema dos erros de reconhecimento: tradição autoritária e racionalidade neoliberal

Outros fenômenos são também decisivos para o grande número de erros de reconhecimento.

Em primeiro lugar, a tradição autoritária que condiciona a atuação tanto de quem vai efetuar o reconhecimento, como de quem vai cuidar de operacionalizá-lo e, ainda, do juiz responsável por avaliar a legitimidade e a qualidade da prova.

Por tradição autoritária entende-se o conjunto de sistemas simbólicos ligados à ideia de força e desconfiança do conhecimento: valores que se tornam hegemônicos, percepções da realidade, pré-compreensões, preconceitos e práticas sedimentadas que apostam no uso da força e, ao mesmo tempo, desconfiam do saber.

É possível identificar na sociedade brasileira todos os sintomas da personalidade autoritária descritos por Theodor Adorno na pesquisa [3] que conduziu nos EUA, no pós-guerra, para verificar tendências antidemocráticas -convicções políticas, econômicas e sociais que formam a mentalidade autoritária. Dentre esses sintomas, destacam-se o convencionalismo (aderência rígida aos valores da classe média), a submissão autoritária (postura submissa e acrítica diante da autoridade), o pensamento estereotipado (forma de pensar por categorias rígidas, recorrendo a preconceitos como premissas), a simplificação excessiva da realidade (tendência a recorrer a explicações primitivas) e a dureza (preocupação de agir no sentido de reforçar as ideias de força e dureza, do domínio e submissão).

É inegável que considerável parcela da classe média brasileira é conservadora, classista, racista, sexista, punitivista e percebe os direitos fundamentais como obstáculos à eficiência repressiva do Estado. As pessoas envolvidas no reconhecimento tendem a reproduzir: práticas que levam à eliminação da diferença; diversas violências: intersubjetivas, sistêmicas e simbólicas e incapacidade de reflexão. Se a classe média violenta naturaliza a tortura e os linchamentos, os envolvidos no ato de reconhecimento também tendem a violar os limites éticos, jurídicos e epistemológicos no ato de indicar uma outra pessoa, não raro percebida como um inimigo a ser neutralizado.

O sintoma social da submissão autoritária faz com que as pessoas que devam fazer o reconhecimento tendam a confirmar as hipóteses defendidas por figuras de autoridade numa manifestação do viés de confirmação. Mais, percebe-se uma tendência a ser intolerante, repudiar e castigar as pessoas apontadas como suspeitas.

A dureza faz com que as pessoas apostem em respostas de força e não aceitem deixar escapar criminosos em potencial. Para eles, suspeitos devem ser tratados de forma exemplar, sem hesitações ou empatia. Há uma espécie de deslocamento imaginário e semântico que faz o suspeito ser tratado como inimigo.

A simplificação excessiva da realidade e o pensamento estereotipado fazem com que o cuidado com procedimento de reconhecimento acabe desconsiderado, já que se pode chegar ao resultado sem tantas formalidades. Com características do pensamento autoritário, os preconceitos atuam mais decisivamente na produção do resultado. Assim, o reconhecimento positivo se constrói a partir de preconceitos transformados em premissas, tais como “se a pessoa está ali entre os suspeitos, deve ser culpada de algo”, “negros são violentos”, “mulheres não prestam”.

READ  Criminalistas repudiam possível limitação de quesito genérico do Júri

Tradição autoritária

A tradição autoritária também faz com que direitos fundamentais sejam percebidos como obstáculos à eficiência punitiva. Bom lembrar que a sociedade brasileira nunca foi capaz de elaborar adequadamente fenômenos como a escravidão e a ditadura. Por isso, ainda hoje, no Brasil, naturaliza-se uma espécie de hierarquização: pessoas matáveis e pessoas que não devem ser mortas, pessoas dignas de proteção do Estado e pessoas que não merecem ser tratadas com dignidade. E, incapazes de elaborar o que ocorreu durante a ditadura instaurada em 1964, amplos setores acreditam que os anos de chumbo foram marcados por paz, tranquilidade e ausência de corrupção. Ocorre no Brasil o fenômeno da retrotopia, [4] identificado por Bauman: o desejo de voltar a um passado idealizado, que nunca se fez presente. Como demonstram diversas pesquisas conduzidas por historiadores que revelam inúmeros casos de arbítrio, opressão, violações dos direitos mais básicos e, ainda, muita corrupção durante o regime militar.

Também a hegemonia da racionalidade neoliberal ajuda a compreender a naturalização das injustiças no reconhecimento. Por racionalidade neoliberal, entende-se um certo modo de ver e atuar que trata tudo e todos como objetos negociáveis. [5] Esse modo de pensar (e julgar) por cálculos na busca por vantagens tornou-se a regra. [6] No Estado condicionado pela racionalidade neoliberal dá-se uma reaproximação pornográfica entre poder político e poder econômico. [7] O Judiciário, por exemplo, passa a atuar preponderantemente como mero homologador das expectativas dos detentores do poder econômico, como agência de controle das populações indesejáveis.

A partir da hegemonia dessa racionalidade, juízes passaram a decidir, não mais com base em regras e princípios que miram na concretização do projeto constitucional, mas a partir de cálculos entre os interesses em jogo. Em matéria penal, muitas vezes, julgamentos são construídos para agradar maiorias forjadas na desinformação e transformam a ideia de punição em paixão nacional. [8] Fenômenos como o punitivismo e o populismo penal, que crescem a partir da manipulação do medo e da sensação de insegurança da população, passaram a influenciar a aplicação da lei penal, até mesmo o processo de reconhecimento.

Uma das manifestações destes cálculos de interesse ocorre na retórica da proteção da sociedade. Juízes recorrem a uma ponderação entre direitos fundamentais concretos e o direito abstrato à segurança. Ignoram, assim, a advertência de Dworkin de que só é possível e juridicamente legítimo ponderar direitos e interesses de igual densidade [9]. Um direito concreto individual não pode ser ponderado com um direito abstrato coletivo, sob pena de relativização e negação de todos os direitos individuais.

Antídotos ao negacionismo judicial em matéria de reconhecimento fotográfico

Diante dos avanços científicos na compreensão das falhas da memória, como explicar que tantos juízes continuem a relativizar os cuidados exigidos no artigo 226 do CPP? Como explicar que sigam a considerar que o reconhecimento por fotografia possa ser efetivo sem que outras fotos de pessoas semelhantes figurem ao lado do suspeito? Como admitir tantos reconhecimentos em descompasso com os procedimentos que foram desenvolvidos como garantias do valor verdade? Trata-se de puro negacionismo (científico, histórico e cultural), com pitadas de punitivismo.

Romper com o negacionismo é apostar no conhecimento que contribui para a justiça das decisões e, portanto, para evitar que inocentes acabam condenados. A resposta passa por reconhecer a importância de constrangimentos epistemológicos e jurídicos que funcionem como obstáculos a reconhecimentos indevidos. É preciso apostar em limites legais, éticos e epistemológicos ao reconhecimento por fotografia.

READ  Afinal, qual a amplitude do direito de acesso amplo e integral aos autos?

A admissão pelo STF da repercussão geral (Tema 1.380) parece ser uma boa oportunidade para reafirmar a ciência e evitar condenações injustas. O caminho para a incorporação jurisprudencial dos avanços científicos e o abandono das mistificações foi aberto pelo Superior Tribunal de Justiça e encontram-se, com destaque, nas teses firmadas no Tema 1.258 e ainda na Resolução 484/2022 (CNJ):

  1. só é possível o reconhecimento de suspeito por fotografia se não for possível o reconhecimento pessoal;
  2. o procedimento de reconhecimento por fotografia deve reproduzir os cuidados exigidos pelo artigo 226 do CPP, com destaque para a formalização prévia da descrição do autor do delito e a exibição de fotos do suspeito ao lado de fotos de pessoas que se pareçam com a descrição fornecida pela vítima;
  3. o reconhecimento (pessoal ou fotográfico) deve ser tido como irrepetível; o vício do primeiro procedimento de reconhecimento contamina os seguintes;
  4. a única exceção feita à vedação da produção de novos reconhecimentos é a possibilidade da realização de um novo ato a pedido da defesa;
  5. por ocasião do reconhecimento por fotografia, não podem ser adotadas as técnicas da exibição de álbum de fotografia ou a do show-up (exibição de uma única foto), mas a técnica do alinhamento, a exibição simultânea da foto de várias pessoas alinhadas;
  6. nas fotos exibidas por alinhamento devem constar exclusivamente retratos de pessoas de tipo físico semelhante, com as fotografias obedecendo o mesmo padrão;
  7. qualquer foto (em redes sociais, aparelhos celulares etc.), imagem ou vídeo da pessoa a ser identificada que for exibida antes do reconhecimento contamina o resultado;
  8. qualquer informação sobre as pessoas exibidas à testemunha ou vítima também contamina o reconhecimento;
  9. é preciso que sejam dadas instruções adequadas para que a testemunha ou vítima compreenda que o autor do delito pode não se encontrar retratado nas fotos;
  10. o responsável pelo procedimento de reconhecimento não pode dar qualquer informação relativa à confirmação do reconhecimento de um suspeito;
  11. o reconhecimento positivo não exclui o dever do Estado de trazer aos autos todas as provas possíveis à confirmação da hipótese acusatória, tais como gravações do local do crime, imagens das câmeras corporais de agentes policiais. A perda de qualquer chance probatória fragiliza o reconhecimento da autoria delitiva.

Espera-se que o STF apresente parâmetros adequados à normatividade, afastando-se das mistificações e negacionismo típicos do populismo penal.


[1] SCHACTER, Daniel L. Os setes pecados da memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

[2] Ob. cit., p. 143.

[3] ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.

[4] BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

[5] Sobre a racionalidade neoliberal: DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016; CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.

[6] SUPIOT, Alain. La gouvernance par les nombres. Paris: Fayard, 2015.

[7] Sobre a mutação neoliberal do Estado: CASARA, Rubens. Estado pós-democrático. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

[8] FASSIN, Didier. Punir: une passion contemporaine. Paris: Le Seuil, 2017.

[9] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Fonte: Conjur