Relativização da impenhorabilidade: entre proteção à subsistência e efetividade da execução

Inicialmente, cabe destacar que as regras de impenhorabilidade têm por finalidade assegurar a dignidade da pessoa humana. Elas buscam proteger valores e bens necessários à sobrevivência do devedor e de sua família, como salários, vencimentos, aposentadorias, pensões e outros rendimentos essenciais, impedindo que a execução judicial o reduza à miséria.

Seguindo este diapasão, há quem entenda que as regras de impenhorabilidade são normas de ordem pública [1]. Todavia, conforme elucida Fredie Didier Jr [2], as regras de impenhorabilidade não servem à proteção da ordem pública, mas, sim, à proteção do executado. Logo, a impenhorabilidade perfaz um direito do executado.

Em outras palavras, como salienta Daniel Amorim [3], a impenhorabilidade é a última medida no trajeto percorrido pela “humanização” da execução, sendo uma tentativa do legislador em preservar a pessoa do devedor, manifestando a defesa de um mínimo existencial, respeitando-se a dignidade humana que, conforme emanado pelo legislador, possui patamar elevado em relação ao direito do exequente em ver o seu crédito satisfeito.

Relativização jurisprudencial: da literalidade do artigo 833 à ponderação de princípios pelo STJ com base no julgamento do EREsp 1.874.222/DF

Ocorre que, embora o artigo 833 CPC/15 tenha definido um rol de bens impenhoráveis, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EREsp 1.582.475-MG [4], relator ministro Benedito Gonçalves, por maioria, julgado em 3 de outubro de 2018, definiu que a regra geral de impenhorabilidade dos vencimentos do devedor, além da exceção explícita prevista no parágrafo 2º do artigo 649, IV, do CPC/1973, também pode ser excepcionada quando preservado percentual capaz de manter a dignidade do devedor e de sua família.

Vê-se, portanto, fazendo uma análise paralela entre a equiparação do artigo 649 do CPC/73 com o artigo 833 do CPC/15, que o Superior Tribunal de Justiça mitigou a regra sobre a impenhorabilidade, definindo que a impenhorabilidade só se revela necessária e adequada quando o bem efetivamente presta-se à manutenção da dignidade humana do devedor.

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Esse entendimento foi ratificado posteriormente, com o julgamento do EREsp 1.874.222-DF [5], relator ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, por maioria, julgado em 19 de abril de 2023, onde relativizou-se a penhora de verba salarial inferior a 50 salários mínimos, desde que assegurado o montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família, alterando, portanto, o entendimento do legislador esboçado no §2º do artigo 833 do CPC/15.

Isto, pois, segundo o ministro João Otávio, o Código de Processo Civil de 2015 suprimiu a palavra “absolutamente” impenhoráveis, presente no CPC/73. Logo, entendeu-se que a nova lei processual tratou a impenhorabilidade como relativa, permitindo que o Juízo, à luz da ponderação de princípios, tais como o princípio da execução menos gravosa, do desfecho único e da dignidade da pessoa humana, possa prestar uma tutela jurisdicional adequada para às peculiaridades do caso concreto.

Rol taxativo tornou-se exemplificativo após decisão do STJ

Assim, conforme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o rol previsto no artigo 833 do CPC, originalmente taxativo, tornou-se exemplificativo após a relativização da impenhorabilidade pelo STJ.

E, ainda neste diapasão, a flexibilização das regras de impenhorabilidade à luz do entendimento da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Embargos de Divergência nº 1.874.222/DF, consolidou-se o entendimento no sentido de que a regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial, prevista no artigo 833, IV, do CPC, não possui caráter absoluto, admitindo-se sua relativização em caráter excepcional, inclusive para satisfação de dívidas de natureza não alimentar, devendo o magistrado analisar o caso concreto, realizando a ponderação entre os princípios cabíveis.

Portanto, em que pese a literalidade da impenhorabilidade esboçada pelo legislador no artigo 833 do CPC, a jurisprudência entende que é, sim, possível afastar a impenhorabilidade “absoluta”, quando resguardado o mínimo existencial, à luz do caso concreto, haja vista que a não flexibilização desta impenhorabilidade absoluta, a exemplo da fixação do limite de 50 salários-mínimos para a impenhorabilidade, conforme artigo 833, §2º, do CPC, seria praticamente um dispositivo-barreira, impedindo a prestação jurisdicional no âmbito executivo, pois destoa-se da realidade da população brasileira, não traduzindo, portanto, em uma impenhorabilidade que vise o mínimo existencial para o devedor, mas, sim, uma tese defensiva que impede a satisfação do crédito.

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[1] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, v. 4, cit., p. 341; BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 3, p. 222; REDONDO, Bruno Garcia, LOJO, Mário Vítor Suarez. Penhora. São Paulo: Método, 2007, p. 82; GÓES, Gisele. “Proposta de sistematização das questões de ordem pública processual e substancial”. Tese de doutoramento em Direito. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2007, p. 254; STJ, 4°. T., REsp n. 327.593/MG, rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. em 19.12.2002, publicado no DJ de 24.02.2003, p. 238. Pontes de Miranda afirma que o beneficium competentiae, impenhorabilidade de bens estritamente necessários à preservação da dignidade do executado, examinado mais à frente, é de “direito público” (Comentários ao Código de Processo Civil. 2° ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, t. 10, p. 133).

[2] Didier Jr., Fredie Curso de direito processual civil: execução / Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha, Paula Sarno Braga, Rafael Alexandria de Oliveira – 7. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, pág. 815.

[3] Neves, Daniel Amorim Assumpção Manual de direito processual civil – Volume único / Daniel Amorim Assumpção Neves – 14. ed. – São Paulo: Ed. Juspodivm, 2022, pág. 1144/1145.

[4] Disponível aqui.

[5] Disponível aqui.

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