O artigo “Desafio fiscal e urgente valorização da Receita Federal”, de autoria de um colega auditor-fiscal, publicado neste JOTA em 18 de julho último, a nosso ver traz uma visão distorcida do movimento reivindicatório da categoria, como da própria imagem dos auditores-fiscais, motivo pelo qual oferecemos este outro ponto de vista.
Após uma longa mobilização, a categoria aceitou a proposta do governo, por ampla maioria, numa assembleia com participação recorde de 8.500 filiados. A mobilização foi conduzida pelo Sindifisco Nacional, entidade representativa dos auditores-fiscais com legitimidade e competência para tratar de assuntos de natureza salarial, conforme critério definido na Constituição, que assinou, após a decisão favorável na assembleia, o acordo com governo federal.
O Sindifisco Nacional é um espaço onde se pratica a democracia. Todas as propostas são amplamente discutidas e todos têm direito a defender suas posições. Ao final do processo de deliberação, prevalece a decisão da maioria dos filiados, expressa por meio de votação individual, não tendo mais qualquer relevância, depois disso, fazer especulações sobre como e por que a categoria assim decidiu.
O autor do texto foi, no mínimo, infeliz ao reclamar para o público externo à categoria que “no dia 11 de julho, após a maior greve da história recente, uma proposta insuficiente foi aceita – majoritariamente por auditores-fiscais aposentados – e ofereceu-se 9,22%”, uma vez que, doravante, ninguém pode intervir para mudar o resultado da assembleia.
A reclamação pública sobre o decidido em assembleia democrática do Sindifisco mostra pouco apreço pelos conceitos básicos que caracterizam a vida sindical, além de desrespeito com a totalidade dos filiados que participaram do processo.
De modo que é lícito questionar se o autor, ao fazer seu protesto fora das instâncias sindicais apropriadas, teve objetivos outros para além de uma simples manifestação de inconformidade com o processo democrático onde sua posição foi perdedora.
Estaria ele querendo dizer que os auditores-fiscais aposentados – com décadas de relevantes serviços prestados à Receita Federal – não deveriam participar dos processos decisórios, mesmo custeando o fundo de corte de ponto que permitiu a longa mobilização da categoria? Que os filiados aposentados não deveriam ter direito à reposição de, ao menos, uma parte das grandes perdas salariais que lhes foram impostas desde 2016, mesmo pagando 15% de contribuição previdenciária até o dia de sua morte?
Preferimos crer que seja apenas desconhecimento do colega a respeito do protagonismo que tiveram os hoje aposentados na história do fisco brasileiro, em benefício da sociedade. Seria lamentável que o autor, gerando polêmicas descabidas, pretendesse tumultuar o pleno cumprimento do acordo firmado com a categoria, uma vez que isso depende de um projeto de lei a ser enviado pelo governo ao Congresso Nacional.
O autor também foi infeliz ao contrapor a valorização dos auditores-fiscais à elevação de tributos que incidem sobre os extratos sociais mais ricos. Por esse equivocado caminho, fez a defesa da suspensão, pelo Legislativo, dos efeitos do Decreto 12.499/2025, que alterava alíquotas do IOF.
Além disso, arremeteu contra as medidas de tributação de aplicações financeiras e ativos virtuais, previstas na MP 1303/2025. Nenhum auditor deveria ter dúvidas sobre atingirem contribuintes que efetivamente dispõem de grande capacidade contributiva.
Segundo ele, o Congresso estaria “exausto de aumentos emergenciais” para solucionar o “crescente rombo fiscal” e, o governo, em vez de atacar as “verdadeiras causas estruturais”, sob o pretexto de arrecadar dos rentistas, estaria impondo um “custo social altíssimo”. O IOF seria um imposto tóxico ao crescimento. Com essa afirmativa, reproduz o pensamento de economistas neoliberais, conhecidos por defender que o “Estado brasileiro não cabe no orçamento”, formulação que opera no sentido inverso aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme pactuado pela sociedade brasileira em 1988.
Dois dias antes da publicação do artigo, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, havia validado as majorações de alíquotas do IOF, com base no disposto no § 1º, do artigo 153 da CF, que todo auditor deve conhecer, fazendo constar que “o decreto impugnado não destoou de anteriores edições de decretos presidenciais, cuja validade foi referendada diversas vezes por essa Suprema Corte”.
Em sentido contrário à posição do autor do artigo, o ministro afirmou ser o IOF um “importantíssimo instrumento de regulação do mercado financeiro e da política monetária”. No artigo criticado, o auditor mais parecia um entusiasmado opositor governista, querendo fazer crer que o objetivo da derrubada do decreto presidencial pelo Congresso teve mais a ver com a proteção da economia popular e menos com o interesse da banca financeira.
Tratando-se de matéria tributária, poucos têm dúvidas de que as mudanças propostas pelo atual governo têm natureza progressiva e miram o andar de cima da sociedade. Por isso, gozam de legitimidade social, exceto na visão política conservadora no parlamento que patrocina o festival de benefícios fiscais aos setores mais privilegiados do ponto de vista econômico.
No debate fiscal, o autor do texto preferiu pegar o atalho fácil de repetir o mantra preferido da oposição neoliberal de que o governo é gastador e só pensa em aumentar impostos, ignorando por completo a injusta distribuição da carga tributária.
Nada pior para uma boa causa do que um mau argumento. Levantar a bandeira da redução dos gastos sociais (implicando num Estado mínimo) não é caminho para resolver o problema central do sistema tributário do país, e muito menos tem qualquer relação com a necessidade da valorização da fiscalização e dos auditores-fiscais.
As experiências históricas bem-sucedidas de construção dos Estados de bem-estar social em países desenvolvidos apontam no sentido oposto, pois basearam-se em tributação fortemente progressiva combinada com gastos sociais bem orientados. Esse arranjo fortalece o fisco e os auditores.
O acordo fechado com o governo não atendeu totalmente as justas reivindicações da categoria, não obstante tenha resultado em avanços significativos considerado o contexto conjuntural.
Porém, o autor passa a ideia de que, resolvido isso, nada mais haveria a fazer no sentido de se objetivar um sistema tributário mais justo. Pois, em tudo permanecendo igual (apenas com melhora na fiscalização), o resultado significaria perpetuar – quiçá agravar – o atual sistema tributário que penaliza o andar de baixo, pela excessiva tributação do consumo e salários, ao mesmo tempo em que isenta do imposto de renda os lucros e dividendos recebidos pelos segmentos mais abastados.
O autor do artigo não compreendeu a potencial importância social das funções dos auditores-fiscais. Somente isso explica sua adesão ao que há de mais atrasado na teoria econômica: o enfoque neoclássico, na sua versão neoliberal.
A valorização do cargo de auditor-fiscal e da Receita Federal são plenamente compatíveis com a justiça tributária. Mais do que isto, a tributação progressiva requer verdadeiramente uma Receita Federal forte e transparente e auditores-fiscais muito bem-preparados e valorizados. Essa será a condição de eficácia de um sistema tributário mais justo, um instrumento fundamental de redistribuição de renda e riqueza num país que precisa resgatar sua enorme dívida social.
Fonte: Jota