Aprovado pelo Senado no final de agosto, o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital) busca proteger menores de 18 anos da exposição indevida na internet com a adoção de regras para a retirada de conteúdo das plataformas.
O texto, que aguarda sanção presidencial, é elogiado pelo advogado Rubens Naves, ex-presidente da Fundação Abrinq e coautor de um livro sobre os desafios para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente no Brasil.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ele avalia que o ECA Digital é um complemento necessário ao ECA “analógico”, que está em vigor há 35 anos, mas diz que as novas regras só terão efeito se forem acompanhadas de políticas públicas eficientes.
“A lei por si só não resolve. Será preciso o envolvimento de todas as instituições criadas pelo próprio ECA, como os conselhos, e a integração com as escolas, que terão um papel fundamental no controle sobre o uso de celulares, por exemplo. Tudo isso vai depender de políticas públicas e da capacitação dos agentes que efetivamente forem trabalhar na implementação dessa legislação.”
Naves falou à ConJur por ocasião de ter recebido, no final do mês passado, o Jubileu de Ouro do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), que marcou seus 50 anos como associado da entidade. Além de tratar do ECA Digital, o advogado comentou na entrevista as transformações do Direito nas últimas cinco décadas e os atuais desafios à democracia e ao equilíbrio entre os poderes.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Qual sua avaliação sobre o ECA Digital, recentemente aprovado no Senado?
Rubens Naves — É uma legislação extremamente adequada, do meu ponto de vista. Ela atualiza alguns mecanismos de proteção e complementa o ECA, na medida em que uniformiza conceitos pertinentes ao mundo virtual.
A lei esclarece o que é serviço de monitoramento infantil (ferramenta que permite aos pais acompanhar a atividade dos filhos nas redes), o que é rede social, o que é perfilamento, o que é caixa de recompensa (mecanismo em jogos eletrônicos que dá vantagens ao jogador mediante pagamento). Ou seja, existe toda uma linguagem que precisa ser atualizada e uniformizada nos mecanismos legais.
Essa legislação traz isso. Ela prevê a criação de um mecanismo central, uma espécie de agência reguladora que vai baixar normas complementares, e dá mais clareza à responsabilização das grandes empresas de tecnologia, uma discussão que já alcançou o Supremo Tribunal Federal.
Em suma, eu acredito que essa lei traz uma grande contribuição. Mas às vezes nós temos, como reflexo da nossa cultura, a impressão de que a legislação soluciona os problemas sozinha, e naturalmente isso não funciona assim.
ConJur — Quais são os empecilhos?
Rubens Naves — A lei, por si só, não resolve. Será preciso o envolvimento de todas as instituições criadas pelo próprio ECA, como os conselhos, e a integração com as escolas, que terão um papel fundamental no controle sobre o uso de celulares, por exemplo.
Tudo isso vai depender de políticas públicas e da capacitação dos agentes que efetivamente forem trabalhar na implementação dessa legislação. Isso vai exigir uma união de esforços da área educacional, da área de saúde e da área de segurança pública. Não adianta você caracterizar um ilícito, por exemplo, se não houver uma persecução penal adequada.
ConJur — O senhor acredita que as instituições estão preparadas para esse desafio?
Rubens Naves — O Judiciário, ao meu ver, tem agido com competência e sensibilidade nesse ponto. O Conselho Nacional de Justiça tem apoiado a capacitação dos magistrados, o que é fundamental, porque vamos depender de capacitação e de debate constantes.
É preciso lembrar o artigo 227 da Constituição, que estabelece que a proteção da criança e do adolescente é um dever compartilhado entre família, sociedade e Estado. Esse tripé sempre foi essencial para assegurar a efetividade do ECA, e será igualmente fundamental na efetivação do ECA Digital.
ConJur — O senhor completou 50 anos como advogado associado ao Iasp. Como avalia o papel da entidade?
Rubens Naves — O Iasp tem uma tradição muito grande na área jurídica, tem mais de 150 anos. Ele, inclusive, precede a Ordem dos Advogados do Brasil, e foi fundamental na sua formação.
Lembro da minha experiência pessoal, nas décadas de 1970 e 1980. O Iasp tinha uma bancada que fazia parte do Conselho da OAB, na seccional de São Paulo, da qual eu pude participar. Essa bancada se destacava por ter uma visão do Direito extremamente científica e desenvolvida. Eram profissionais experientes e técnicos, alguns, inclusive, com vivência acadêmica.
O Iasp trouxe para a advocacia a capacidade de dialogar no ambiente do contraditório, em que se permitia a expressão livre e dotada de urbanidade. No tempo que vivíamos, sob a ditadura, aquilo foi salutar. Foi um momento em que a Ordem, apoiada pelo Iasp, trabalhou no aperfeiçoamento da nossa legislação, colhendo as várias sugestões que desembocaram na Constituinte.
Ao lado de outras instituições, o Iasp foi fundamental nesse período de transição para que tivéssemos uma Constituição moderna, que assegura direitos fundamentais a uma vida humana digna.
ConJur — Como o senhor vê as condições institucionais de hoje para o exercício da advocacia no Brasil?
Rubens Naves — A advocacia é um segmento essencial à promoção da Justiça em nosso país. Ela só tem condição de ser exercida na sua plenitude se a gente estiver vivendo um Estado democrático de Direito.
É o que está acontecendo agora, por exemplo, com o julgamento no Supremo que envolve o ex-presidente Bolsonaro e ministros importantes de seu governo, inclusive generais. Eles estão tendo acesso a uma defesa competente e justa porque nós vivemos no Estado democrático de Direito e, com isso, vamos poder responsabilizar quem promoveu danos materiais e morais à nossa democracia.
A meu ver, essa tentativa de golpe de Estado só não foi concretizada porque as nossas instituições agiram rapidamente e defenderam o sistema democrático, com as providências necessárias para fazer cessar aquela conspiração. Não é o que foi visto, por exemplo, nos Estados Unidos.
ConJur — O que significam as recentes interferências dos EUA na democracia brasileira?
Rubens Naves — Infelizmente, as instituições americanas não conseguiram responsabilizar, na integralidade, os responsáveis por aquela invasão ao Capitólio, em 2021. Aqui no Brasil, estamos vivendo um momento histórico: o Poder Judiciário está demonstrando que todos são iguais perante a lei. Ou seja, serão julgados e terão todos os seus direitos de defesa preservados e lastreados no devido processo legal.
Portanto, as nossas instituições avançaram em relação às americanas, que não tiveram esse mesmo desfecho lá. As instituições dos EUA hoje estão ameaçadas por um comportamento completamente atípico, desprovido de qualquer sutileza do governo americano, em especial do presidente Donald Trump.
Veja o paradoxo que nós temos: estamos assegurando, por meio desse julgamento no Supremo Tribunal Federal, todas as garantias constitucionais a um grupo que tinha como intenção eliminar essas mesmas garantias. É preciso uma ampla coalizão das instituições do Direito para fazer frente a isso.
ConJur — Como o senhor avalia as recentes articulações por anistia, que partem do Congresso e de governadores da oposição?
Rubens Naves — Eu acredito que se trata de um processo orientado por oportunismo político. Já estamos observando todo um conjunto de ações para viabilizar as candidaturas no ano que vem. Nesse movimento, todos os grandes líderes da oposição tentam buscar apoio do chamado bolsonarismo, de um segmento radicalizado da direita.
Esse movimento, vale lembrar, é destituído de razoável suporte técnico e constitucional. Eu entendo que não é possível, como se pretende, anistiar qualquer grupo de pessoas que conspiraram contra o Estado democrático de Direito. O próprio Supremo Tribunal Federal já estabeleceu que um indulto dessa natureza seria atentatório a uma cláusula pétrea.
Uma pessoa que não reconhece a democracia como um valor da nossa sociedade, um valor amparado pela nossa Constituição, não pode se beneficiar de uma anistia dessa natureza. Não é razoável que o Congresso se preste a esse papel.
ConJur — Sobre o Congresso: qual sua opinião sobre o crescimento das emendas impositivas?
Rubens Naves — Há uma evidente hipertrofia dessas emendas parlamentares nos últimos anos. Isso se verifica diante da inexistência de uma maioria partidária suficiente para garantir um apoio constante a um governante, no caso, o presidente da República.
E isso não é de hoje. Há mais de uma década essas emendas têm desvirtuado a forma de gerir o orçamento público. Elas passaram a ser uma espécie de moeda de troca, implementada sem qualquer vínculo com as políticas públicas que são planejadas em âmbito federal.
Aos pouquinhos, essa tendência vem contaminando também as Assembleias Legislativas e até mesmo as Câmaras Municipais. Com isso, prejudica todo o funcionamento da federação brasileira, em seus três níveis. Os repasses de recursos começam a ser desvirtuados, já não obedecem à lógica do planejamento de longo prazo.
E aí voltamos à questão da criança e do adolescente no Brasil. A essência do próprio ECA está sujeita a um planejamento de longo prazo: o município conta com essas transferências para implementar sua política nas áreas da saúde, da educação, da segurança pública e da cultura.
Se a destinação desses recursos passa a obedecer à vontade de um único legislador, a distorção resultante ameaça as garantias de desenvolvimento e de vida digna que o ECA se propõe a oferecer.
O post Sucesso do ECA Digital dependerá de políticas públicas, afirma Rubens Naves apareceu primeiro em Consultor Jurídico.