Projetos antifacção do governo acertam ao mirar finanças, mas ameaçam direitos de réus

Os projetos de lei do governo Lula (PT) para combater facções têm pontos positivos, como dar maior ênfase ao asfixiamento financeiro e promover a centralização da segurança pública. No entanto, podem gerar intimidação de moradores de favelas e colocar bens de investigados em risco sem respeitar seus direitos e garantias. É o que apontam especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

A discussão sobre o endurecimento penal contra facções voltou à tona após a ação policial que deixou pelo menos 121 mortos no Rio de Janeiro — estes são os números do governo fluminense, mas moradores alegam que a quantidade é maior.

 

O governador do Rio, Cláudio Castro (PL), chegou a culpar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, em que o Supremo Tribunal Federal homologou um plano para a redução da letalidade policial no estado, pela violência, mas os números contradizem o político.

Bolsonaristas passaram a defender a equiparação da ação de facções ao terrorismo, promovida pelo Projeto de Lei 1.283/2025. Castro entregou ao Consulado dos Estados Unidos no Rio um relatório no qual mostra o avanço do Comando Vermelho em território americano, pedindo que a organização seja considerada terrorista.

A ideia é criticada pelo governo Lula e por especialistas em segurança pública. Eles afirmam que classificar facções como grupos terroristas não só é tecnicamente incorreto, já que trata-se de grupos com estruturas e objetivos diversos, como teria pouco efeito no combate ao crime e tornaria o Brasil mais vulnerável a intervenções estrangeiras.

PL Antifacção

A resposta imediata do governo à ação policial no Rio foi apresentar ao Congresso o Projeto de Lei Antifacção (PL 5.582/2025). A proposta atualiza a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013) e cria a figura da “facção criminosa” — uma organização criminosa qualificada que visa controlar territórios ou atividades econômicas, mediante o uso de violência, coação, ameaça ou outro meio intimidatório. Quem a integrar pode receber pena de oito a 15 anos de prisão. Homicídios cometidos por ordem ou em benefício de facções criminosas poderão levar a penas de 12 a 30 anos, passando a ser enquadrados como crimes hediondos.

O projeto prevê aumento de pena caso haja evidências de que a facção mantém conexão com outras organizações criminosas independentes e se houver transnacionalidade da organização, domínio territorial ou prisional pela organização criminosa e morte ou lesão corporal de agente de segurança pública.

Outro eixo da proposta é facilitar o uso de técnicas especiais de investigação, com a possibilidade de infiltração de policiais e de colaboradores premiados em facções. O texto prevê que juiz possa determinar que provedores de internet, telefonia e empresas de tecnologia viabilizem acesso a dados de geolocalização em casos de ameaça à vida ou integridade de pessoas. Também autoriza que o Executivo crie o Banco Nacional de Facções Criminosas.

Quando houver indícios de envolvimento com facção criminosa, agente público pode ser afastado do cargo, por decisão judicial. O réu condenado por integrar facção ficará impedido de contratar com o Estado ou receber incentivos fiscais pelo prazo de 14 anos.

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O projeto de lei também quer estrangular o poder econômico das facções. Para isso, visa facilitar a apreensão de bens em favor da União, a intervenção judicial em empresas utilizadas para crimes e o bloqueio de operações financeiras, bem como a suspensão de contratos com o poder público.

Além disso, a proposta busca reduzir a capacidade de comunicação entre membros de facções e a cooperação policial internacional.

PEC da Segurança Pública

Principal medida do governo Lula na área, a PEC da Segurança Pública (PEC 18/2025) teve seus debates intensificados após a ação policial no Rio. O projeto voltou a ser analisado nesta segunda-feira (3/11) por uma comissão especial da Câmara dos Deputados.

A PEC da Segurança Pública permite que o governo federal atue em conjunto com estados e municípios no combate à criminalidade. Também cria um Conselho Nacional formado pelos três entes federativos que será encarregado de estabelecer normas gerais para as forças de segurança.

A proposição busca incorporar ao texto constitucional o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), instituído pela Lei 13.675/2018.

O texto também atualiza as competências da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal. A PF, segundo o governo, sofre de uma série de limitações ao enfrentamento do crime organizado, que tem ficado sob responsabilidade dos órgãos de segurança estaduais.

As novas atribuições da PF permitiriam que ela atuasse tanto na investigação como na repressão dos crimes cometidos por esses grupos que tivessem repercussão interestadual ou internacional. A corporação também passaria a ter competência para atuar no combate a crimes que afetem bens da União ou que sejam de seu interesse como matas, florestas e áreas de preservação.

A PRF, por sua vez, passaria a realizar policiamento ostensivo sob a batuta do Executivo federal. Para justificar a mudança, o governo alega que a corporação já tem sido cada vez mais requisitada para prestar auxílio emergencial às demais forças federais e estaduais, além de ter participado recentemente de operações de caráter ostensivo que extrapolam suas atribuições constitucionais atuais.

A PEC da Segurança Pública também prevê a criação de um Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária, cujos recursos serão destinados a projetos, atividades e ações previstas nos planos pertinentes à área.

Repercussão mista

Especialistas ouvidos pela ConJur elogiam as práticas de combate às facções por meio do asfixiamento financeiro e a centralização da segurança pública. Porém, levantam questões quanto a técnicas para investigar tais grupos.

Luís Henrique Machado, professor de Direito Processual Penal do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), elogia a prioridade conferida pelo PL Antifacção ao enfrentamento patrimonial das facções, mediante o confisco e a alienação célere de bens ilícitos. Segundo ele, é uma versão constitucionalmente aprimorada do civil forfeiture norte-americano. A diferença é que a proposta do governo só permite o confisco com contraditório e decisão judicial fundamentada, enquanto nos EUA a medida pode ser decretada com base em juízo civil de probabilidade.

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“O deslocamento da ênfase repressiva para o eixo econômico-financeiro reflete uma evolução teórica importante porque combate o crime organizado não apenas como política penal, mas como política de integridade sistêmica do Estado, integrando Direito Penal, Administrativo e Financeiro”, avalia o advogado.

A PEC da Segurança Pública, aponta, reforça essa racionalidade ao constitucionalizar a coordenação federativa da segurança.

“O PL Antifacção representa um movimento de maturação institucional: substitui o punitivismo simbólico por planejamento estatal, racionalidade federativa e ataque sistêmico às fontes econômicas do crime. É um avanço civilizatório, compatível com o Estado Democrático de Direito, e digno de ser lido como tentativa de refundar a política de segurança pública em bases constitucionais e comparadamente sofisticadas”, na visão de Machado.

As duas propostas acertam a partir partem da preocupação com a violência e estabelecer a integração entre as polícias, analisa Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim). No entanto, têm equívocos, o que demonstra “a dificuldade do Estado em lidar com o fenômeno sem recorrer à ampliação arbitrária do poder punitivo”.

De acordo com o advogado, o chamado PL Antifacção contém dispositivos que geram retrocesso democrático da Justiça Criminal. Um exemplo é a criminalização da conduta de “embaraçar investigação de organização criminosa”. “Prevejo que seja utilizada como instrumento de intimidação de moradores, até mesmo contra juízes que defiram direitos de acusados por este crime — o que já vem ocorrendo”.

A previsão de infiltração de colaborador premiado em facções é outro equívoco. “Não é adequado que o agente público seja substituído por um cidadão, instrumentalizado no interesse da persecução”, destaca Melchior.

Ele ainda tem preocupação com a disciplina das medidas cautelares especiais. “O texto aposta na asfixia financeira do acusado, afastando garantias constitucionais básicas; confunde sequestro com arresto; admite confisco sem condenação; inverte o ônus da prova e, ainda, prevê o monitoramento de advogados, com ressalvas frágeis”.

Adotar soluções simplistas, fundamentadas no emprego de mais violência direta, não reduziu a criminalidade violenta e dificultou a aplicação de soluções mais racionais e eficazes, afirma o ex-professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro Geraldo Prado, hoje investigador integrado ao Instituto Ratio Legis da Universidade Autônoma de Lisboa e consultor sênior do Justicia Latinoamérica (Chile).

“O episódio da semana passada é grave porque dificilmente escapará da tendência de funcionar como gatilho para acirramento da violência urbana. É necessário recobrar a confiança na racionalidade e no emprego da inteligência não somente para reverter as situações concretas e sérias de violência, que são reais e estão à vista de todos, como para impedir o ‘efeito rebote’ do que me parece, sem dúvida, uma má escolha de política criminal, dificilmente justificável à luz da legalidade vigente”, ressaltas Prado.

Mais atribuições

O procurador da República Vladimir Aras, professor de Direito Processual Penal da Universidade de Brasília (UnB), considera o texto do PL Antifacção bom, mas apresenta sugestões para melhorá-lo.

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Ele recomenda suprimir a forma privilegiada do crime de organização criminosa; incluir como causa de aumento de pena o ataque a infraestruturas críticas; simplificar a cooperação internacional, para aceleração da obtenção da prova no exterior; dar ao perdimento extraordinário o rito de uma ação civil de rito especial (extinção de domínio); criar uma agência nacional de gestão de ativos, a partir da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad); e atualizar o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) para dar mais atribuições ao Ministério Público e à polícia quanto ao acesso a metadados, com controle judicial posterior.

Com relação à PEC da Segurança Pública, Aras propões que o texto preveja o ciclo completo de polícia, novas polícias com competência investigativa para além da PF e da Polícia Civil; uma nova PRF, com competência abrangente; autonomia à Polícia Científica; medidas de natureza patrimonial, como a ação cível de extinção de domínio; ⁠responsabilidade penal de pessoas jurídicas por atos de corrupção, crimes econômico-financeiros e criminalidade organizada; e  prisão após a condenação criminal em segunda instância.

Em fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal mudou de entendimento e passou a permitir a execução da pena após condenação em segundo grau. A decisão foi muito elogiada por Moro e pelos demais integrantes da força-tarefa da operação “lava jato”, mas severamente criticada por constitucionalistas e criminalistas.

Nesta novembro de 2019, porém, a corte resgatou o entendimentofirmado em 2009 e declarou a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, proibindo a execução provisória da pena.

Após a decisão do Supremo de 2019, o então ministro da Justiça, Sergio Moro, e parlamentares passaram a defender a aprovação de emenda constitucional para permitir a prisão após condenação em segunda instância.

Constitucionalistas consultados pela ConJur afirmam que a prisão após segundo grau só poderia ser estabelecida com uma nova Constituição. Na atual, o inciso LVII do artigo 5º diz que ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. É o princípio da presunção de inocência, uma cláusula pétrea, que não pode ser relativizada por nenhuma lei ou emenda à Carta Magna.

Bandeira do terrorismo

Equiparar facções criminosas a organizações terroristas, como Cláudio Castro e outros bolsonaristas vêm defendendo, não traria alterações significativas às investigações e aos processos penais contra esses grupos. A maior diferença seria a federalização dos procedimentos, mas isso poderia esvaziar apurações estaduais, atrasar a tramitação de ações e aumentar o número de nulidades.

Por outro lado, a classificação desses grupos como terroristas poderia dar margem a uma maior intervenção externa, inclusive com a aplicação de sanções ao Brasil. A alteração ainda poderia levar à supressão de direitos e garantias fundamentais em nome de uma suposta preservação da segurança nacional. É o que apontam especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

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