Roubos, incêndios e danos: os museus são mesmo (mais) seguros?

Você confiaria seu dinheiro a um banco que foi roubado repetidas vezes? Ou a um que perdeu tudo em um incêndio? Talvez a um banco com histórico de danificar o patrimônio de seus clientes? Vivemos sob o mito de que os museus são a nossa melhor aposta para garantir a sobrevivência do patrimônio cultural da humanidade — como se fossem uma espécie de hospital de inválidos, capaz de manter os problemas do mundo fora de suas instalações e assegurar a preservação de todos os sobreviventes que lhes foram confiados. Talvez isso tenha sido um consenso em algum momento, mas será que continua sendo verdade?

Historicamente, os museus surgiram como espaços dedicados à celebração e à proteção de itens de grande valor simbólico e material [1]. Com o tempo, essas instituições se profissionalizaram: instalações modernas, equipes especializadas, protocolos rígidos, sistemas de segurança de última geração e investimentos milionários contínuos. Pelo menos, é o que diz a teoria.

No entanto, nos últimos anos temos testemunhado uma onda de tragédias que coloca essa narrativa em xeque — uma onda que, nos últimos meses, tem se mostrado bastante democrática: atinge instituições nacionais e internacionais, publicas e privadas, grandes e pequenas, de uma forma ou de outra.

Exemplos não faltam.

Nesta semana, veio à tona que a Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, foi alvo de um roubo no domingo, 7 de dezembro [2]. Dois criminosos levaram obras de Candido Portinari e Henri Matisse, incluindo uma peça que já havia sido furtada da instituição paulista na década de 1990 [3].

E como esquecer o caso do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, outrora um dos mais importantes museus da América Latina, que em 2018 perdeu cerca de 90% de seu acervo após um incêndio causado por falhas na instalação elétrica [4]?

No cenário internacional, é impossível não mencionar o Museu do Louvre, em Paris, que sozinho já preencheria um artigo exclusivo. Um século após o desaparecimento da Mona Lisa, em novembro deste ano, um novo escândalo abalou a instituição: 88 milhões de euros em joias roubadas [5]. Um grupo de ladrões conseguiu, em plena luz do dia, burlar a segurança do museu mais visitado do mundo em menos de oito minutos. Como se não bastasse, nesta semana o Louvre voltou a ser notícia após um vazamento de água danificar centenas de livros sob os seus cuidados [6].

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No British Museum, em Londres, um procedimento interno de manutenção nos Mármores do Parthenon causou danos permanentes às relíquias milenares [7]. O excesso de fricção e polimento não apenas eliminou detalhes das esculturas, como também alterou sua forma original, fazendo com que se perdessem características morfológicas essenciais para sua identificação.

Não se trata de negar que imprevistos acontecem: sabemos que eles fazem parte da vida. No entanto, para que um episódio seja verdadeiramente considerado uma tragédia, e não apenas resultado de negligência, é necessário que todos os esforços tenham sido feitos para evitá-lo. Não é do interesse de ninguém declarar uma guerra aos museus, mas isso não pode se traduzir em um salvo-conduto para “imprevistos evitáveis.”

O debate se torna ainda mais delicado quando considerado vis a vis o movimento mundial contemporâneo pela restituição de bens culturais. Nas últimas décadas, países, comunidades, famílias e instituições têm buscado recuperar fragmentos de suas identidades que lhes foram arrancados em períodos de guerra, colonização, saques ou exploração.

Embora o movimento seja relativamente recente e bastante casuístico, observa-se um padrão nas respostas institucionais: a premissa de que os artefatos estariam mais seguros nas instituições que hoje os retêm — curiosamente, quase sempre situadas em Estados imperialistas do Norte Global, como EUA, França, Alemanha, Bélgica ou Inglaterra. Vale destacar que a premissa constitui o cerne da defesa do British Museum na disputa secular com a Grécia pela restituição dos supracitados Mármores do Parthenon: “Nós danificamos o seu patrimônio, but we still do it better!” [8]. E, como eles, tantos outros.

Entre os diferentes argumentos apresentados em casos de restituição, esse talvez seja o mais traiçoeiro, pois se apresenta revestido de um discurso paternalista — o alegado “melhor interesse da cultura.” Por trás dessa máscara, porém, esconde-se um antigo viés de hierarquia cultural: “Nós sabemos cuidar melhor das coisas que vocês produziram; por isso, não podemos devolvê-las. E isso, aliás, é para o bem de vocês.”

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Desafiar o consenso

O caso recente da repatriação do primeiro Manto Tupinambá ao Brasil ilustra bem essa dinâmica. A comunidade indígena Tupinambá de Olivença, descendentes da etnia que deu origem ao manto, solicitou ao Museu Nacional da Dinamarca, então seu custodiante, que a peça retornasse ao sul da Bahia, onde poderia permanecer acessível ao seu povo [9].

Segundo as instituições dinamarquesas e brasileiras responsáveis pelo processo de repatriação, isso não seria possível devido às condições exigidas para a preservação da relíquia. No fim, o manto foi destinado ao novo Museu Nacional, no Rio de Janeiro — sim, o mesmo que perdeu quase todo o seu acervo em um incêndio. O episódio denuncia não apenas uma presunção de superioridade museológica em âmbito internacional, mas também dentro do próprio território nacional.

E então eu me pergunto: os museus são mesmo mais seguros? Podemos realmente confiar que nossos testemunhos estarão melhor protegidos em instituições que, repetidas vezes, se mostraram tão falhas quanto nós? Depois de tantos exemplos, como o mito da superioridade protetiva museológica continua sendo tratado como absoluto frente aos próprios autores e herdeiros? O monopólio da cultura não pode se sustentar apenas sobre uma promessa.

Marcílio Franca e Izabel Nóbrega apontam um caminho importante ao denunciar fragilidades na gestão museológica e sugerir que os Tribunais de Contas assumam um papel mais ativo, para que, conjuntamente com os museus, passem a “fazer do cuidado invisível — a gestão, a prevenção e a preservação silenciosa — uma autêntica prioridade pública” [10]. Sem mecanismos de controle externo, a narrativa da segurança absoluta tende a se manter intocada — e injustificada.

O presente artigo, contudo, levanta a hipótese de que a resposta pode estar um passo atrás. Antes de avançarmos para soluções, talvez seja necessário desmontar a crença original: o consenso da superioridade museológica na preservação de nosso patrimônio cultural. Seja em âmbito internacional – entre instituições do Norte e do Sul Global –, seja em âmbito nacional – entre instituições e comunidades. Pelo “melhor interesse do patrimônio cultural”, proponho que abandonemos esse mito em favor de uma abordagem mais honesta — ainda que menos prática — que, infelizmente, recai sobre um jargão clássico jurídico:

Depende.
Depende do bem.
Depende da instituição.
Depende do acordo.
Depende do orçamento.
Depende da comunidade.
Depende da transparência.
Depende do investimento.

Se quisermos realmente proteger nosso patrimônio, talvez devamos parar de fingir que existe uma regra universal e começar a admitir que a segurança cultural é sempre contextual, praticada e, sobretudo, compartilhada.

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[1] DUARTE CÂNDIDO, Manuelina Maria. “Pensar a história dos museus em um mundo em transformação” in ARTEREVISTA, v.2, n.2, jun/dez 2013. São Paulo: Faculdade Paulista de Artes (FAPA), p. 101-108, ISSN: 2317-613X.

[2] Obras roubadas da Biblioteca Mário de Andrade são de Henri Matisse e Candido Portinari; exposição terminava neste domingo. G1, São Paulo, 2025. Disponível aqui.

[3] ‘Jazz’ de Matisse volta para Biblioteca Mário de Andrade. O Globo, 2015. Disponível aqui.

[4] Incêndio que destruiu Museu Nacional começou em aparelho de ar-condicionado, afirma PF. G1, 2020. Disponível aqui.

[5] Passo a passo, como ladrões do Louvre realizaram o roubo mais chocante da França. BBC News Brasil, 2025. Disponível aqui.

[6] Após roubo, Louvre tem livros raros danificados em enchente e funcionários anunciam greve. Veja, 2025. Disponível aqui.

[7]  British damage to Elgin marbles ‘irreparable’. The Guardian, 1999. Disponível aqui.

[8] Para uma maior compreensão do caso, vide: HERMAN, Alexander. The Parthenon Marbles Dispute. Londres: Institute of Art & Law, 2023.

[9] Voltar para onde? JOTA, 2025. Disponível aqui.

[10] Um novo alarme soou no Museu do Louvre. Consultor Jurídico, 2025. Disponível aqui.

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