Após quase 14 anos de tramitação, concluiu-se no dia 26 de junho de 2024 o julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659/SP. A decisão mobilizou a opinião pública, a sociedade civil, os meios políticos, a ponto de se poder afirmar que, hoje, poucas pessoas não ouviram falar do tema, mesmo não tendo estudado a fundo os autos do caso ou as posições divergentes em debate.
Antes de mais nada, é necessário reconhecer a dificuldade em produzir avanços substanciais a partir da lei posta. A atual Lei de Drogas, de 2006, foi elaborada a partir da ideia da punição criminal como resposta estatal à multifacetada e complexa questão das drogas reputadas como ilícitas. Mesmo o artigo 28 da Lei Federal nº 11.343/2006, ao retirar a pena privativa de liberdade como sanção às condutas de porte de drogas para consumo próprio, permaneceu inserido no capítulo destinado aos crimes e penas, e submetido a julgamento perante os Juizados Especiais Criminais. As penas para o tráfico ilícito de drogas foram ampliadas e novas figuras puníveis foram trazidas pela lei, que não se furtou em indicar o sentido político-criminal que a inspirava.
Não se procedeu, naquele diploma, à distinção entre o usuário esporádico de drogas e o dependente químico. Tampouco foram assentados critérios claros e objetivos para a distinção entre o porte para o consumo próprio e o porte com intuito de distribuição ou de mercancia. A seletividade do sistema penal, tão demonstrada pelos dados jurimétricos presentes no voto do ministro Alexandre de Moraes, prevaleceu ante a ambiguidade do texto legal.
Uma decisão judicial, sozinha, mesmo que proveniente da Suprema Corte e dotada de repercussão geral, não consegue reverter o sentido de todo um subsistema penal. Urge discutir a questão das drogas sem o alarmismo ou o pânico moral que permeiam o senso comum, mas como uma questão de saúde pública. A resposta punitiva, do punho fechado, já se mostrou não apenas como ineficaz, mas como tão danosa quanto a questão que visa a enfrentar. Contudo, nem sequer há clareza se a posição da estreita maioria do Plenário do STF há de prevalecer, tendo em vista a tramitação acelerada da PEC 45/2023, que busca inserir, no rol dos direitos e garantias fundamentais, o porte de qualquer quantidade de drogas definidas como ilegais enquanto conduta criminosa.
Ricardo Tolomelli/Divulgação
O professor Cristiano Maronna, em artigo veiculado pela Folha de S.Paulo (aqui), resumiu bem a questão: ante a reação de setores políticos alinhados ao proibicionismo, o STF foi incapaz de avançar como deveria na análise dos problemas do encarceramento em massa de pessoas em situação de vulnerabilidade social, sob o pretexto do enfrentamento ao tráfico ilegal de drogas. Nas palavras do professor, “a maioria do Supremo acertou o diagnóstico, mas não foi capaz de oferecer uma solução eficiente para os desafios existentes no campo do processo penal, da segurança pública e da política criminal, em especial a definição de diretrizes orientadoras da atuação das forças de segurança e do próprio Judiciário”.
Por enquanto, o único documento publicado acerca do resultado do julgamento é uma “Informação à sociedade”, disponível no sítio eletrônico do STF (aqui). Nela, constam oito teses de julgamento, que supostamente refletirão o dispositivo do acórdão aprovado pela maioria. Como o julgamento produz efeitos imediatos em termos da liberdade individual dos cidadãos, é de se esperar que a invocação do precedente se dê o quanto antes, não a partir da data de publicação do acórdão.
À luz dessas oito proposições, queremos suscitar dúvidas e pensar soluções, especialmente diante da realidade concreta da vida social, das abordagens policiais, e das rotinas judiciais.
Tese 1 — Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (artigo 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (artigo 28, III).
1.a. O artigo 28 da Lei de Drogas consiste em norma penal em branco. Nele, não se menciona expressamente qualquer substância, deferindo-se a definição do que é “droga”, para fins jurídicos, a ato infralegal — a saber, a Portaria SVS/MS nº 343/1998 e as listas que a acompanham, atualizadas pela Anvisa.
Quando se examinam as razões de pedir do RE 635.659/SP, nelas se percebe o apelo ao reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas em sua totalidade, por violação aos direitos fundamentais à intimidade e à vida privada. A delimitação dos efeitos do julgado a apenas uma substância fez mudar o foco do juízo de inconstitucionalidade, da lei penal para a portaria infralegal. Pode-se dizer que, de certo modo, o julgamento foi citra petita.
A lógica formal não comporta a construção de que apenas o uso de maconha ofende o direito fundamental à intimidade e o de outras drogas não. O reconhecimento da inconstitucionalidade por ofensa ao direito à intimidade deveria abarcar todas as drogas, pois não há discriminação possível nessa seara. O lógico seria decidir que o artigo 28 da Lei de Drogas não ofende o direito à intimidade e, portanto, é constitucional para todas as drogas ou, a contrário, ofende a intimidade e é inconstitucional para todas as drogas.
Há, ainda, nítida lesão ao princípio da isonomia. O artigo 28 da Lei de Drogas, pela concepção exposta pela decisão, passa a funcionar — com o empréstimo da expressão utilizada por Silva Sánchez — em “duas velocidades”: como infração administrativa, para a cannabis, e como tipo penal, para as demais substâncias. Não é preciso muito esforço hermenêutico para perceber como isso representa uma distinção arbitrária e que, no caso das demais substâncias, fere os direitos fundamentais, em especial a liberdade, daqueles que estarão sujeitos a sanções mais gravosas.
Orientação: é preciso continuar provocando o Poder Judiciário a reconhecer, incidentalmente e em qualquer instância, a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, por violar a intimidade e a vida privada, valores plasmados como direitos fundamentais da pessoa humana (artigo 5º, inciso X, da Constituição da República) — tal como era o pedido esposado originariamente no RE nº 635.659/SP. Em caso de recusa, faz-se necessário subir até a apreciação do STF em relação ao tipo legal de crime, independentemente da substância envolvida, e empregando o resultado do RE como causa de pedir, em conjunto com os princípios da isonomia e do devido processo legal.
1.b. É pretensão jurídica que o ordenamento seja harmônico, coerente e completo. Deve haver certa lógica no Direito, comum a todos os seus ramos, de modo que um ramo do Direito não pode estabelecer regras contrárias a outro ramo. Se por um lado houve o reconhecimento de que a figura do artigo 28 da Lei de Drogas, pelo menos no tocante à cannabis, fere os direitos fundamentais à intimidade e à vida privada, resta pouca justificativa para preservar a punição, mesmo que a título de ilícito administrativo. Se criminalizar o uso de drogas ofende o direito constitucional à intimidade, o consectário lógico é que se trata de ato lícito e que, portanto, não pode ser sancionado pelo Estado a qualquer título. A solução intermédia, aceita pelo Supremo, apenas reduz a escala da ilicitude, do caráter criminal para o caráter sancionatório ordinário, mas não consagra aquilo que visava a sustentar, a saber, a licitude dos comportamentos que implicam lesão apenas ao próprio sujeito.
1.c. Em se tratando de ilícito administrativo, e não de ilícito penal, as sanções usualmente associadas aos crimes não podem mais ser impostas a quem pratica a conduta típica do artigo 28 da Lei de Drogas, portando a cannabis. Nesse sentido, é avanço o fato de estar excluída de consideração a sanção de prestação de serviços à comunidade, outrora aplicável por força do inciso II do artigo 28 da Lei de Drogas. Tampouco é admissível a existência de anotações criminais em Certidão ou Folha de Antecedentes Criminais em razão da conduta em exame.
1.d. Igualmente, a conduta de portar cannabis, para consumo pessoal, não mais pode mais ser reconhecida como falta grave na execução penal. É deveras comum encontrar cannabis dentro de unidades prisionais com detentos. A princípio, esse ato não pode mais configurar falta grave, embora as exceções da Tese 5, a serem tratadas oportunamente, possam transformar o ato em tráfico de drogas – e, portanto, ainda enquanto crime e falta grave no ambiente carcerário.
1.e. O reconhecimento da inconstitucionalidade por parte do STF se opera, em regra, ex nunc, removendo da ordem jurídica quaisquer efeitos da norma impugnada por contrariedade à Constituição. Dentre as teses de julgamento, não se percebe qualquer ressalva ou modulação acerca dos efeitos da decisão, o que conduz à conclusão lógica de que a norma penal, em relação à cannabis, deixou de existir, operando-se todos os efeitos da abolitio criminis. Note-se que não se trata, no caso, de retroatividade de novo entendimento jurídico acerca de crime, mas de extinção de conduta criminosa, o que suscita a aplicação do preceito do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal brasileiro.
Orientação: é cabível, ex officio ou mediante provocação, a revisão de todas as condutas de porte de Cannabis para consumo próprio, proferidas antes da decisão do RE 635.659/SP, a fim de se verificar se podem ser agraciadas com o novo posicionamento do STF. A quantidade de substância portada pelo sujeito há de ser tomada em consideração, nos termos da Tese 4, mas o limite de quantidade, por si só, não representa o único dado para suscitar a revisão criminal. O reconhecimento da abolitio criminis pode ser feito em qualquer momento da investigação criminal, da tramitação processual, da execução da pena, ou, excepcionalmente, como motivo para expurgo de anotações criminais referentes a fatos em que a sanção já foi cumprida.
Tese 2 — As sanções estabelecidas nos incisos I e III do artigo 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta.
2.a. A decisão do Supremo não desconhece, por óbvio, que o Juízo não opera sem provocação (artigo 2º, Código de Processo Civil). Se se afirma que as sanções administrativas cominadas ao porte de Cannabis serão impostas pelo Juízo em procedimento de natureza não penal, alguém há de provocar essa atuação, dando início ao exercício do poder jurisdicional. Contudo, a decisão é silente acerca de quem deve provocar o exercício da jurisdição.
Ao Ministério Público compete, privativamente, a promoção da ação penal de iniciativa pública, nos termos do artigo 129, inciso I, da Constituição. Entretanto, o mesmo artigo, em seu inciso IX, veda aos órgãos do Ministério Público que exerçam a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas — funções típicas da Advocacia Pública, seja ela a Advocacia da União ou a Advocacia dos estados.
A imposição da sanção administrativa não se confunde com a pretensão punitiva do Estado, em matéria penal. Deste modo, não deveria mais recair sobre os órgãos do Ministério Público, mas sim a autoridade diversa, que tenha por objetivo fazer cumprir as disposições administrativas vigentes.
Não mais subsiste o velho sistema das contravenções penais, em que a iniciativa da ação poderia ser exercida pela Autoridade Policial. Dentro de uma divisão de tarefas consentânea com a sistemática da persecução penal, à Autoridade Policial compete apurar o fato e submeter seus achados à análise do órgão do Ministério Público. Formada a opinio delicti, o Ministério Público pode oferecer a denúncia, se existirem elementos suficientes para a verificação do crime do artigo 33 da Lei de Drogas, conforme a Tese 5.
Não obstante, por diversas questões prática, acredita-se que a sistemática a ser adotada será muito similar às dos termos circunstanciados de ocorrência relativos às outras drogas que continuaram criminalizadas. Muito provavelmente não será estruturado um órgão estatal executor dessas multas. A Advocacia do Estado, órgão com atribuição para executar multas administrativas, não dispõe de capilaridade suficiente para essa tarefa e seria muito dispendioso se passasse a dispor somente por esse motivo.
A outra alternativa seria tratar o procedimento como administrativo. Dispensar autor, dispensar defesa através de advogado e proceder como na imposição de infrações administrativas, como multa de trânsito, apenas com prazo para defesa administrativa perante o juiz. Nessa hipótese, com a comunicação ao juízo, esse abriria prazo para defesa, conforme o artigo 5o, LV, da CRFB, e, não acatada a defesa, imporia a sanção administrativa. Acredita-se que, embora essa interpretação seja consentânea com a natureza administrativa da infração, tendo em vista a dificuldade de controlar através da interposição de recursos os atos judiciais, o que é importante para decisões judiciais, bem como o fato de que muito provavelmente o Ministério Público terá interesse em atuar nesses feitos, prevalecerá uma anômala atuação ministerial nesse caso, como também já determinada a anômala atuação judicial para imposição de infrações administrativas.
Orientação: acredita-se que todo o rito para análise do uso de cannabis será exatamente igual ao dos atuais termos circunstanciados de ocorrência para o uso de outras drogas. Apenas poderá ser lavrado por Delegado de Polícia; haverá uma inicial do Ministério Público; haverá o contraditório e rito do Juizado Especial; será julgado pelo Juizado Especial Criminal. Além da natureza não penal, a novidade será apenas a impossibilidade de aplicação de prestação de serviços à comunidade.
Quanto à multa, reputa-se que, por proporcionalidade, deve ser inferior às usualmente aplicadas para o uso de outras drogas, conduta mais gravosa, pois continua tratada como crime.
—
O post A decisão no RE 635.659/SP: oito teses, muitas dúvidas (parte 1) apareceu primeiro em Consultor Jurídico.