Nos últimos anos, as críticas à operação “lava jato” pautaram o noticiário jurídico e as rodas de salão. As prisões preventivas sem fundamento, o uso de conduções coercitivas, o vazamento ilegal de dados e informações para a imprensa, a execução da pena sem condenações definitivas, e outras ilegalidades, são destacadas como alguns dos excessos reprováveis de uma investigação que prometia “acabar com tudo isso que está aí” e reformular a política nacional.
Malgrado vidas e reputações destruídas, e o abalo na política nacional de conhecidos e reconhecidos resultados, há uma espécie de suspiro aliviado com o fim dos abusos, uma percepção das ilegalidades como página do passado, viradas na direção de um processo penal nos trilhos, guiado pelo respeito aos direitos fundamentais.
Mas nem tudo são flores ou garantismo
É possível que reformas legislativas, cuidados institucionais e reviravoltas na jurisprudência tenham inibido exageros do Estado policial em relação a um segmento de investigados e réus, em especial da classe política e do alto empresariado, mas para os usuais clientes da Justiça Criminal a cartilha do abuso não arrefeceu.
Buscas domiciliares sem mandato, prisões sem fundamento, revistas vexatórias, condenações com base apenas na palavra de policiais e execuções provisórias de pena, fazem parte da rotina daqueles que não integram o seleto rol dos afetados pela “lava Jato”. O mencionado alívio não alcança a parcela mais pobre da população, cuja rotina de balas perdidas e violência desmedida segue inabalada.
Há quem diga que o arbítrio nesses casos é justificado pela gravidade dos crimes, envoltos em violências ou graves ameaças, ligados ao crime organizado, e que o comedimento exigido para delitos de salão, como corrupção ou carteis, não se aplica ao tráfico de drogas e roubos que afligem a população.
É um ponto de vista. Infelizmente, tacanho e hipócrita
Gostemos ou não, há algo chamado legalidade: um princípio que submete o Estado e seus agentes ao império da lei, às regras criadas e estabelecidas por um processo democrático. Vale para todos, independente da classe social e do crime cometido.
Se a norma exige ordem judicial para a polícia entrar em domicílios, vale para ricos e pobres, para mansões ou palafitas, para suspeitas de roubo ou de corrupção. Se a Constituição prevê a presunção de inocência, não é possível executar uma pena sem condenação definitiva, seja qual for a classe social ou a repercussão do delito.
O grau de civilidade de um povo está atrelado ao respeito que confere à lei. Enquanto repudiarmos ilegalidades contra os crimes de colarinho branco, e fecharmos os olhos para o arbítrio cotidiano sobre as camadas mais pobres da população, seguiremos cúmplices de um Estado de exceção, que voltará a tomar gosto pelo exagero e aguardará na esquina aqueles que aplaudem, ostensiva ou timidamente, seus abusos.
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