A comunidade jurídica do Brasil está atenta à deliberação sobre a paridade de gênero para acesso de magistrados aos tribunais de segundo grau.
Em tempos de constitucionalismo freestyle, a feição de constitucionalidade – ou não— dos atos e normas parece ser realizada a la volonté. Cada um acha o que quiser, sem se preocupar em buscar fundamentos. O “eu acho” é a pedra angular da pós-verdade.
Os insurgentes à resolução alegam, justamente, a inconstitucionalidade da implementação da paridade ao enunciado-regra da antiguidade de magistrados para fins de promoção, na forma do artigo 93, II, alíneas b, c e d, da Constituição.
As promoções dos magistrados se dão por duas formas, alternadamente: por antiguidade (observada estritamente a lista de antiguidade da carreira) e por merecimento (quando a promoção decorre da escolha objetiva dos membros da corte, entre os inscritos na concorrência).
O enunciado-regra da antiguidade, grosso modo, prescreve que o magistrado mais antigo será promovido por ser o mais antigo da lista de antiguidade; e, em caso de promoção por merecimento, poderão concorrer os magistrados que estejam na primeira quinta parte da lista de antiguidade na carreira. A lista de antiguidade é o que a palavra significa: o mais velho na carreira, o que tem mais tempo de carreira. Não confundir antiguidade de carreira com antiguidade geriátrica.
O sofisma da inconstitucionalidade da resolução não é sobre competência do CNJ para implementar a paridade de gênero, nessa situação concreta, mas se o conceito do critério de antiguidade, na forma disposta no artigo 93 da CF, admite complementariedade.
Antes de entrar no núcleo da questão, importante deixar claro: o voto da conselheira Salise Sanchotene é técnico, substancioso e com expressivo senso de realidade.
A implementação da paridade de gênero, por meio de resolução do CNJ, no enunciado-regra que prescreve o critério de antiguidade como veeiro das promoções de magistrados aos tribunais de segundo grau, é constitucional.
Explico o porquê me socorrendo dos ensinamentos de Humberto Ávila [1], no que tudo que ora defendo faço referência total.
Tal princípio (imbuído de caráter prescritivo), pode ser complementado por norma infraconstitucional que descreva como e de que maneira será aplicado o critério de antiguidade para as promoções de magistrados, não o afrontando de maneira alguma.
No caso, cabe a vírgula constitucional: a promoção de magistrados deve obedecer aos critérios de antiguidade e merecimento, observada a paridade de gênero na composição dos tribunais.
Como informa Humberto Ávila, o princípio constitucional é enunciado que estabelece uma finalidade sem prescrever o meio necessário para atingi-la. Ou seja, o critério de antiguidade não pode ser concretizado meramente com uma lista da ordem cronológica de ingresso dos membros de determinado tribunal. Ao contrário, este princípio deve efetivar o espírito da Constituição, impregnado por todo o bloco de constitucionalidade, ampliando o paradigma da equidade entre indivíduos, para obtenção da qual não se pode olvidar a paridade de gênero.
Seria um raciocínio curto cogitar como se há três décadas tivéssemos a mesma consciência e percepção de mundo que hoje, e a Constituição fosse um veículo com farol na traseira, com o qual não se pode olhar para frente.
A norma constitucional nem sempre irá descrever em minúcias como seu comando deve ser efetivado – como se fosse um fim em si mesma. Muitas vezes, apenas cumpre o encargo de dispor qual o conceito deve orientar a sua efetivação. A implementação de paridade de gênero harmoniza o interesse da magistratura (ascensão funcional) ao interesse da sociedade (uma sociedade mais fraterna e mais igualitária).
Inclusive, esse o ponto que merece aparte no voto da relatora: a criação de duas listas (uma de homens e outra de mulheres) fere o princípio do critério de antiguidade, visto que alargará as duas listas para além da primeira quinta parte dos magistrados mais antigos na carreira.
A forma de conciliar esses dois pontos (concretização da paridade de gênero e observância do critério de antiguidade) é que a lista seja mantida como única (ou mista, como nominada), mas que, sempre que a vaga seja destinada apenas para mulheres, concorrerão apenas as magistradas que compõem a primeira quinta parte da lista de antiguidade da carreira (lista única). Não importa quantas mulheres estejam figurando nessa primeira quinta parte, apenas estas podem concorrer à vaga, seja promoção por antiguidade ou merecimento.
Como solução ao extraordinário, caso nenhuma mulher figure a primeira quinta parte da lista de antiguidade, que seja a vaga preenchida pela primeira mulher mais antiga na segunda parte da lista de antiguidade, se preencher os demais requisitos para tanto.
O critério de antiguidade não pode ser encarado como mera conta cartesiana de cabeças em fila indiana. Assim, por suposto, cabe em si a implementação de ações afirmativas de otimização da sociedade.
Mudar o status quo é missão hercúlea, sempre. Dessa vez, não seria diferente.
As contrarrazões da resolução sob exame é que criará privilégio (favorecimento) para mulheres, em detrimento dos homens, na carreira da magistratura. Contudo, a observância do contexto histórico mostra outra realidade. Em verdade, a estrutura histórica das cortes e decorrente sistematização dessas carreiras favoreceram os homens, para além de todos os motivos evidenciados no voto.
Falo do que há de mais comezinho: as empatias do ser humano.
Os homens sempre foram maioria nas carreiras de magistratura, máxime na composição das cortes. Apenas com o maior acesso das mulheres às carreiras jurídicas as cortes deixaram de ser unanimidade masculina, passando a ser maioria absoluta. A maioria deixou de ser absoluta para qualificada, e de qualificada para relativa.
Por serem os magistrados seres humanos, eles se empatizam, também, em razão de gênero, criando vínculos e formatando representatividades. Homens tendem a criar mais laços de intimidade e empatia com homens, e mulheres criar tais laços com mulheres. Por consequência, uma corte composta majoritariamente por homens tende a eleger mais homens que mulheres para as promoções por merecimento.
Essa instrumentalização do critério de antiguidade é obviamente informal, não previsto em norma – e mesmo inconfessável –, mas é verdadeiro, efetivo e concretizador da realidade.
Existem costumes que mudam normas, e existem normas feitas para mudar costumes.
A sociedade brasileira pode escolher aguardar que as mulheres ocupem majoritariamente as cortes para que se comece a ter mais promoções por merecimento de mulheres. Mas também pode – e é constitucional – uma norma impor (e acelerar) esse processo de equiparação nos espaços das cortes, aproximando o Judiciário da realidade.
Victor Hugo disse que “não há nada como o sonho para criar o futuro; a utopia de hoje, é carne e osso amanhã”.
Existe um sem-número de mulheres que, ao longo do tempo, ajudaram a construir a magistratura brasileira, e foram preteridas nos espaços de exercício de poder em razão de gênero. E, inspiradas nelas, muitas outras mulheres ousaram romper esse paradigma obstaculizante. Ousaram sonhar.
Ainda orientado por Victor Hugo, sempre me vem à mente que “nada é mais poderoso do que uma ideia que chegou no tempo certo”. O amanhã da paridade de gênero é hoje, e este momento é tão preciso quanto um trem suíço. Deixá-lo passar é um equívoco, atrasar a viagem é um retrocesso.
O tempo é agora.
[1] ÁVILA, Humberto. Competências tributárias: um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito. São Paulo: Malheiros, 2018.
Fonte: Conjur – Por Jorge Bezerra Ewerton Martins