Nos autos da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 854, o ministro Flávio Dino determinou uma audiência de conciliação para debater denúncia de permanência do “orçamento secreto” no manejo de emendas parlamentares, o que, caso venha a se confirmar, implicaria descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em 19 de dezembro de 2022, que reputou o instituto inconstitucional.
O despacho do novo ministro relator sobre a matéria — que sucedeu a ministra Rosa Weber —, respondeu a pedido dos amici curiae Associação Contas Abertas, Transparência Brasil e Transparência Internacional Brasil. Tais entidades levaram ao conhecimento da Corte, conforme excertos citados pelo próprio ministro Flávio Dino,
“elementos que configuram a persistência do descumprimento da decisão adotada por esta Eg. Corte no âmbito das referidas ações, assim como dos preceitos fundamentais que a embasaram”, em função do “uso indevido das emendas do relator-geral do Orçamento para efeito de inclusão de novas despesas públicas ou programações no projeto de lei orçamentária anual da União”; “emendas individuais na modalidade transferência especial (emendas Pix: alta opacidade, baixo controle”; e “descumprimento da determinação de publicar informações relativas à autoria das emendas RP 9 e à sua aplicação.”
Foram intimadas a comparecer na audiência do dia 1º de agosto as seguintes autoridades: procurador-geral da República; presidente do Tribunal de Contas da União; ministro-chefe da Advocacia Geral da União; chefe da Advocacia do Senado; chefe da Advocacia da Câmara dos Deputados e advogado do partido autor da ADPF 854/DF (PSOL).
Diante da falta de comprovação de que teriam sido extintas as práticas abusivas nas emendas de relator (RP 9) e dado o risco de descumprimento de ordem judicial por meio da sua continuidade em outros tipos de emendas, o Ministro Flávio Dino alertou enfaticamente que “não importa a embalagem ou o rótulo (RP 2, RP 8, ’emendas pizza’ etc.)”. “A mera mudança de nomenclatura não constitucionaliza uma prática classificada como inconstitucional pelo STF, qual seja, a do “orçamento secreto.”
Como em um sistema de vasos comunicantes, os recursos anteriormente alocados em emendas de relator (RP 9) foram redistribuídos primordialmente em prol das emendas individuais impositivas (RP 6), as quais, por força da Emenda 126/2022, passaram de 1,2% da receita corrente líquida federal para 2% da RCL; bem como das emendas de comissão (RP 8), além de inicialmente haverem sido remanejados recursos para dotações supostamente discricionárias do Executivo (RP 2), mas que estavam comprometidas com as indicações feitas pelo Legislativo.
A ironia do ministro Flávio Dino em designar as emendas parlamentares como “emendas pizza” decorre desse contexto de fatiamento dos recursos públicos, de forma opaca, pouco aderente ao planejamento e fisiológica. A imagem de “emendas pizza” traz consigo uma síntese apropriada e bastante didática do polvilhamento irrefletido de recursos, tal como ocorre com a farinha jogada dispersamente sobre a massa da pizza, sem que haja clareza ou intencionalidade planejada de onde cada montante cairá. Quem distribui recursos públicos desse modo o faz mirando primordialmente ganhos de curto prazo eleitoral em conduta que, por vezes, majora o risco de enriquecimento ilícito e dano ao erário, na medida em que opera analogamente como uma espécie de execução privada de dinheiro público.
Entre os cerca de R$ 50 bilhões em emendas parlamentares previstos no orçamento geral da União de 2024, R$ 25 bilhões referem-se a emendas individuais impositivas, R$15,2 bilhões estão alocados em emendas de comissão e R$ 11,3 bilhões em emendas de bancada impositivas.
Diante da premência do calendário eleitoral municipal, já foram liberados e pagos R$ 30 bilhões das emendas parlamentares, ou seja, aproximadamente 60%. Considerando o contingenciamento que se avizinha na execução orçamentária federal, os outros R$ 20 bilhões em emendas parlamentares começaram a ser um alvo potencial de restrição fiscal, tal como se sucede com as despesas discricionárias a cargo do Executivo.
Dado o estreito calendário das eleições já em curso, tempo é o bem mais precioso do presente exercício financeiro. Todavia, a gestão do ritmo mensal da execução orçamentária é competência privativa do Executivo e ocorre no âmbito do decreto de programação financeira, para resguardar o alcance da meta de resultado primário da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).
Segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal, tal competência passa pela elaboração de metas bimestrais de arrecadação (artigo 13) e de cronograma mensal de desembolso (artigo 8º), o que deve ocorrer nos primeiros 30 dias após a promulgação da LOA. Ao longo do exercício, o monitoramento da execução orçamentária deve ser realizado mediante relatórios resumidos publicados bimestralmente (na forma do artigo 53, III da LRF).
Caso haja risco de frustração das receitas estimadas, poderão ser contingenciadas as despesas primárias que não forem obrigações legais e constitucionais (marcadas pelo identificador de resultado primário 1 e incluídas formalmente na Seção I do Anexo III da LDO/2024), para que seja cumprida a meta de resultado primário (artigo 9º da LC 101/2000).
Eis o contexto em que o Executivo anunciou que promoverá contingenciamento e bloqueios em 30 de julho de aproximadamente R$15 bilhões, montante que ultrapassa a dotação disponível de 19 ministérios do governo federal.
Diferentemente das despesas obrigatórias a que se refere o §2º do artigo 9º da LRF, as emendas parlamentares, mesmo as que têm natureza impositiva (emendas individuais e de bancada), são suscetíveis de contingenciamento, por força do §18 do artigo 166 da Constituição de 1988,
Apesar de poder vir a ser relativamente elevado o nível de contingenciamento necessário para cumprir a meta de resultado primário equilibrado (“déficit zero”) ao longo de 2024, o Congresso conseguiu antecipar a execução de 60% das suas emendas parlamentares, resguardando-as dos efeitos da incidência dos decretos de programação financeira controlados pelo Executivo.
Não é demasiado reiterar que, em ano de eleições municipais, a opção por assegurar que tais emendas fossem repassadas às bases locais de cada deputado federal e de cada senador, antes de 30 de junho, era uma questão de sobrevivência política que refutava qualquer restrição fiscal. A bem da verdade, tentou-se contornar factualmente a vedação inscrita no artigo 73, inciso VI, alínea “a” da Lei 9.504/1997. Vale lembrar que o artigo 2º da Emenda 105/2019 previra algo semelhante em relação às anteriores eleições municipais, para garantir o efetivo repasse financeiro de 60% do total das transferências especiais (“pix orçamentário”) até 30 de junho de 2020.
Ônus do Executivo
Diante do risco de não atingimento da meta de resultado primário da LDO/2024, as emendas parlamentares podem vir a ser contingenciadas na mesma proporção e na mesma velocidade das demais despesas discricionárias. Ter adiantado a execução orçamentária das emendas parlamentares para garantir sua quitação até 30 de junho foi uma controversa opção que empurrou exclusivamente para o Executivo o colossal ônus de realização do ajuste fiscal esperado para o ano em curso, o que afronta diretamente não só o já citado §18 do artigo 166 da Constituição, como também o §13 do mesmo dispositivo constitucional: “as programações orçamentárias previstas nos §§ 11 e 12 deste artigo não serão de execução obrigatória nos casos dos impedimentos de ordem técnica”.
Como o §2º do artigo 7º da Lei Complementar 200/2023 previu que “o nível mínimo de despesas discricionárias necessárias ao funcionamento regular da administração pública é de 75% do valor autorizado na respectiva lei orçamentária anual”, a margem de provável contingenciamento das demais despesas discricionárias e, por tabela, das emendas parlamentares impositivas seria de 25%.
Em um raciocínio de fronteira, caso haja risco de frustração da arrecadação (até porque o Congresso tem rejeitado os esforços do Executivo em rever determinadas renúncias fiscais) e, por conseguinte, se houver risco de não atingimento da meta de resultado primário, um quarto das emendas parlamentares individuais e de bancada poderia vir a ter sido contingenciado.
Não obstante isso, como já foram pagos R$30 bilhões de emendas parlamentares até o final de junho, em face do montante inicial previsto de R$50 bilhões, houve uma clara e deliberada preterição das despesas planejadas que o Executivo conduz. Novos contingenciamentos não poderão reverter tal fato consumado e a margem de eventual restrição que venha a incidir sobre os R$ 20 bilhões restantes é bastante menor, algo que provavelmente não virá sequer à tona na audiência do dia 1º de agosto no STF.
Além da preterição, a disparidade de regime jurídico aplicável às despesas a cargo do Poder Executivo em face das emendas parlamentares (essas controversamente mais flexíveis do que aquelas) deveria ser o principal impasse a ser debatido nos autos da ADPF 854/DF. Ilustra tal assimetria desarrazoada e inconstitucional a possibilidade de indicação do beneficiário do repasse decorrente de emendas congressuais na forma do artigo 29 da Lei 13.019/2014, sem que se cumpra o rito da dispensa e/ou inexigibilidade de licitação, o que afronta o artigo 37, XXI da CF. As “emendas pizza” também podem ser empenhadas sem prévia licença ambiental ou projeto de engenharia, além de usufruírem de prazo mínimo de três anos para a resolução de condições suspensivas.
Para tentar aprimorar o regime jurídico de tais emendas, seria necessário alterar a redação do artigo 29 da Lei 13019/2014, ao que sugerimos que lhe seja acrescentado um parágrafo único que obrigasse ao cumprimento dos seguintes comandos legais:
I – conformidade com o artigo 72 da Lei 14133/2021, para que haja processo de motivação/demonstração de economicidade da contratação direta decorrente da emenda parlamentar, em consonância com o artigo 37, XXI da Constituição;
II – vinculação substantiva ao artigo 10 da Lei 13005/2014, ao artigo 36 da Lei 8080/1990 e ao artigo 30 da Lei Complementar 141/2012, que definem parâmetros de aderência aos instrumentos de planejamento setorial dos recursos vinculados à educação e à saúde, respectivamente;
III – ônus de provar o regular emprego dos recursos públicos conforme o artigo 93 do Decreto-lei 200/1967 e artigo 2⁰, parágrafo único da Lei 12.257/2011, de modo a obrigar as entidades beneficiárias da emenda parlamentar a prestarem contas dos recursos recebidos.
Às anomalias no âmbito da despesa se soma o fato de que as emendas parlamentares aspiram, cada vez mais, influenciar direta e imediatamente o processo eleitoral. Assume-se, com isso, o risco de proliferação irrefreada de toda sorte de abuso de poder político com recursos do orçamento, na medida em que as regras foram redigidas por quem sabia exatamente o que estava fazendo para dificultar ao máximo os controles.
É incontroverso que o Congresso tem buscado fugir ao controle, evitando a rastreabilidade dos recursos públicos pulverizados nas emendas parlamentares. A bem da verdade, as emendas parlamentares, sobretudo sob a modalidade de transferências especiais (vulgarmente conhecidas como “pix orçamentário”) potencializam os riscos de apropriação privada dos recursos públicos, tanto para os que almejam apenas satisfazer ao seu curto prazo eleitoral, quanto para o que buscam, por vezes, enriquecer-se ilicitamente.
Como antídoto parcial a isso, cabe resgatar o dever universal de transparência inscrito na Lei de Acesso à Informação em relação às entidades privadas beneficiárias dos repasses, no que se incluem, por óbvio, também aqueles oriundos de emendas parlamentares:
“Art. 2º. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, às entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres.
Parágrafo único. A publicidade a que estão submetidas as entidades citadas no caput refere-se à parcela dos recursos públicos recebidos e à sua destinação, sem prejuízo das prestações de contas a que estejam legalmente obrigadas.”
A sujeição universal aos deveres da transparência e de prestar contas precisa ser resgatada, inclusive com segregação de contas bancárias nas entidades beneficiárias dos repasses, sob pena de que seja negado o próprio sentido republicano da Lei de Acesso à Informação. É urgente que exigirmos a plena sindicabilidade das emendas parlamentares, submetendo-as aos influxos constitucionais do controle que regem toda a Administração Pública.
Muito embora as emendas parlamentares, em sua concepção teórica, visassem oxigenar democraticamente o processo de elaboração da lei orçamentária, algumas delas passaram a se comportar como instrumento de captura de significativa parcela do ciclo decisório estatal.
Como divulgado aqui, o Tribunal de Contas da União já havia alertado que: “O Executivo e o Legislativo estão retirando recursos das despesas obrigatórias para cobrir as emendas dos parlamentares. Isso significa que a dívida vai aumentar e, para saldá-la, será necessário recorrer ao endividamento”.
Ora, postergar a aplicação dos recursos vinculados, parcelar o pagamento de precatórios como feito nas Emendas 113 e 114/2021, gerar fila de espera nos benefícios assistenciais e previdenciários, dar causa a passivos judicializados por deliberada omissão quanto à regulamentação e à efetiva oferta de serviços públicos essenciais que amparam a consecução dos direitos fundamentais são exemplos dessa burla à ordenação legítima de prioridades inscrita na Constituição e nas leis de planejamento setorial e orçamentário que direcionam o percurso das políticas públicas.
Quando despesas discricionárias (a exemplo das emendas parlamentares, independentemente de serem individuais — RP 6, de bancada — RP 7 ou de comissão – RP 8) passam à frente e, por isso, direta ou indiretamente implicam o inadimplemento das obrigações legais e constitucionais de fazer, isso deveria gerar uma presunção de irregularidade do gasto, que deveria demandar o ônus da prova, na forma do artigo 93 do Decreto-lei 200/1967.
O que o país tem vivido é um paulatino retorno ao regime pré-Constituição de 1988 de execução privada do orçamento público: impessoalidade, moralidade, publicidade e legalidade não têm sido referências fortes de controle, tampouco há qualquer limite fiscal ou eleitoral na distribuição subjetiva/coronelista de novas benesses em meio ao pleito.
É preciso, nesse sentido, ressituar o debate em seus pilares óbvios: sem planejamento, impera o caos de curto prazo eleitoral e o risco de apropriação privada dos recursos públicos. Até porque, sem controle e com opacidade, o diagnóstico da corrupção resta pragmaticamente impossível. Aliás, a maior corrupção é exatamente essa: o rebaixamento institucional que nega a própria possibilidade de haver controle, transparência, impessoalidade e limites da lei.
A flexibilização irrefreada do regime jurídico das emendas parlamentares ao longo dos anos não foi contida sequer pela declaração do STF de inconstitucionalidade do orçamento secreto. O problema não só persiste, como tem se agravado, já que agora envolve a expressiva cifra anual de R$ 50 bilhões.
A cada burla hermenêutica em relação às vedações eleitorais e ao dever de contingenciamento equitativo, a cada ato de fuga ao controle e de opacidade, a cada indicação do CNPJ da entidade beneficiária sem devido processo de dispensa ou inexigibilidade, a cada desprezo pelo planejamento setorial das políticas públicas, entre outras burlas, as emendas parlamentares aceleram o processo de rebaixamento da credibilidade do arcabouço constitucional e literalmente implodem a noção de “limite da lei”.
Infelizmente, porém, é improvável que esse venha a ser o diagnóstico da audiência de “conciliação” do 1º de agosto, razão pela qual o decorrente prognóstico tenderá a ser aquém do necessário para que se possa estruturalmente enfrentar o problema.
Sem respostas abrangentes e consistentes, ao fim e ao cabo, o risco é de que, mais uma vez, todo esse esforço institucional do STF venha a acabar, mais cedo ou mais tarde, em normalização dos abusos das emendas parlamentares e, com o perdão do trocadilho, em pizza… O maior indicativo de fragmentação, por ora, reside no fato de que o ministro Flávio Dino apartou, de plano, o debate do Pix orçamentário no presente exame de descumprimento do julgamento pela inconstitucionalidade do orçamento secreto.
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O post Audiência no STF debaterá se orçamento secreto persiste em ’emendas pizza’ apareceu primeiro em Consultor Jurídico.