O número de novos casos de feminicídio e violência doméstica contra a mulher cresceu cerca de 40% nos tribunais estaduais em 2022. Já os casos pendentes na Justiça, ou seja, aqueles que permanecem em tramitação sem que tenham sido totalmente encerrados (arquivados, transferidos ou transitado em julgado) cresceram 15%.
Os dados estão disponíveis no relatório “Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha”, divulgado na última semana pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os números dizem respeito ao ano passado, e as comparações foram feitas em relação ao mesmo relatório produzido em 2018, com números de 2017.
Enquanto em 2017 houve registro de 455.641 novos casos de femincídio e violência doméstica contra a mulher nos tribunais estaduais, em 2022 este número subiu para 640.867; em relação aos processos pendentes, em 2017 havia 919.346 ações sobre o tema, enquanto em 2022 o número aumentou para 1.062.457 processos.
No ranking dos tribunais, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) é o com o maior volume de casos pendentes, com 164.383 casos. Na sequência vem o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), com 110.791 casos.
“Esses processos pendentes englobam todos os casos em andamento no Sistema de Justiça incluindo os que estão em fase de instrução processual, aguardando julgamento, em tramitação ou aguardando recursos. É um indicador importante para medir a eficiência do Judiciário, pois um grande número de processos pendentes pode indicar possíveis gargalos ou atrasos na tramitação dos casos”, diz o relatório.
Para as advogadas entrevistadas pela revista eletrônica Consultor Jurídico, algumas circunstâncias ajudam a explicar os números registrados. A primeira delas é a pandemia, que acabou influenciando no crescimento da violência doméstica; em segundo lugar, o acesso à informação também faz com que mais denúncias sejam registradas e, consequentemente, mais processos sejam ajuizados.
“Isso se dá especialmente porque está havendo maior conscientização sobre o assunto, e as mulheres estão conhecendo mais seus direitos”, diz a advogada Ana Paula Braga, do Braga & Ruzzi Advogadas.
“No tocante ao feminicídio, o aumento do número de registros pode ser explicado pelo fato desses casos estarem sendo registrados da forma correta, especialmente após o advento da Lei do Feminicídio. Antes, muitas mortes violentas de mulheres eram tratadas como homicídios simples, dificultando o conhecimento sobre a real dimensão do problema.”
Outro ponto que corrobora os números é o próprio crescimento da violência contra a mulher. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública no último mês, houve acréscimo no número absoluto feminicídios no país em 2022. Especificamente em relação à tipificação, houve aumento de 6,1% entre 2021 e 2022.
“Vejo uma evolução no Judiciário, às vezes não motivada por intenção de preservação de direitos e de combate ao machismo, e mais por uma vontade de não parecer machista, uma intenção de não incorrer em condutas recriminadas pelo recente protocolo de julgamento com perspectiva de gênero”, diz a advogada Maira Pinheiro, especializada em violência contra a mulher.
Segundo Pinheiro, o Poder Judiciário tem encontrado consensos no sentido de que o “tratamento revitimizador é inadequado, indesejável e contraria normas de como os agentes públicos devem agir perante à violência doméstica”.
Em suma, a incapacidade, a falta de preparo e a própria cultura sexista das instituições que deveriam zelar pelo ordenamento jurídico (delegacias, varas criminais, etc) afastam as mulheres de denunciar crimes de violência, o que impacta também nos números.
“Eu colocaria como problematizador o preparo das polícias em adequar a classificação jurídica que era antes de homicídio de mulheres e agora tem uma classificação própria do crime de feminicídio”, diz a promotora Fabíola Sucasas Negrão Covas, do Ministério Público de São Paulo.
“A gente ainda tem uma alta subnotificação. Por outro lado, teve um aumento de registros. Então aqueles casos eventualmente silenciados passaram a ser cadastrados. Mas ainda subnotificados, porque há um silenciamento das mulheres. Ou seja, a gente ainda está correndo atrás do prejuízo”, diz a promotora.
Varas especializadas
Ponto fundamental nas discussões sobre a violência contra a mulher no país, as varas especializadas cresceram nos estados em comparação ao último relatório produzido pelo CNJ. Os números, todavia, ainda são tímidos, tendo em vista que a orientação do órgão para criação desses institutos no Judiciário é de 2007. No último documento, publicado em 2018, foram constatadas 109 varas exclusivas; hoje, esse número subiu para 153.
A despeito do crescimento, a quantidade é insuficiente, dizem advogadas consultadas pela ConJur. Isso porque o contingente de violência é maior que a capacidade de absorção dessas varas, ou seja, desde sua criação elas estão sobrecarregadas. Há tribunais como os de Alagoas, Amapá e Santa Catarina, que possuem apenas uma vara especializada em violência contra a mulher.
Por outro lado, o TJ-SP e o TJ-DF são os que mais contabilizam varas exclusivas, com 18 e 17 unidades, respectivamente.
A sobrecarga gera distorções nos números. Por conta do baixo número de varas exclusivas, as varas comuns acabam registrando mais casos novos, mais casos pendentes, mais sentenças e menor tempo médio de julgamento para casos pendentes na maioria dos estados da federação.
Até os tribunais que possuem número absoluto relativamente alto de varas, como o TJ-SP, tem mais casos registrados em varas não-exclusivas e andamento mais céleres dos processos nessas varas.
“A previsão da Lei Maria da Penha é de que essas varas tenham competência híbrida, ou seja, atuem nas demandas criminais e cíveis geradas a partir do episódio de violência. Então, em tese, uma mesma vara deveria analisar o pedido de medidas protetivas, julgar o crime cometido e também decidir sobre o divórcio, guarda de filhos, pensão alimentícia, etc.”, diz Braga.
“Na prática esses juizados não conseguem absorver essa competência híbrida e acabam julgando apenas a parte criminal, obrigando essa vítima a procurar a vara cível ou da família para ter seu problema resolvido.”
Morosidade processual
Na média brasileira, o tempo para análise de um processo pendente de violência doméstica e/ou feminicídio é idêntico: 2 anos e 11 meses. Ainda assim, os números chamam a atenção. No TJ-SP, por exemplo, a média de tempo para um processo pendente é de 5 anos e 3 meses nas varas exclusivas e 4 anos e 5 meses nas varas comuns. TJ-PI e TJ-PB vêm logo em seguida, com demoras de 4 anos e 6 meses para sentença em processo nas varas exclusivas.
Segundo o relatório, o esse valor de tempo diz respeito ao “tempo médio decorrido entre a data do início do processo de conhecimento (excluídas as cautelares) e a data do primeiro julgamento nos processos de violência doméstica e feminicídio por Tribunal de Justiça”.
Em relação à chamada taxa de congestionamento, os tribunais de Acre (79,8%) e Piauí (79,1%), conforme o relatório do CNJ, figuram no topo da lista de processos relacionados à feminicídio e violência doméstica contra a mulher.
O indicador, segundo o próprio CNJ, mede a taxa de vazão desses processos. Ou seja, quanto maior o percentual da taxa de congestionamento, maior o estoque de processos e menor o índice de resolução.
A falta de estrutura do Judiciário é um dos pontos citados pelas advogadas especialistas à reportagem para justificar a morosidade de tramitação de processos envolvendo violência contra a mulher.
“Existem poucos Juizados Especiais de Violência Doméstica (JVD), que contam com poucos servidores, e que acabam ficando muito sobrecarregados. Em São Paulo, a explicação que se dá é que a prioridade é para a concessão de medidas protetivas, já que são urgentes. Além disso, muitas vezes há demora na localização do agressor para a intimação sobre o processo, falta de agenda para designar audiências, entre outras”, argumenta Braga.
Para a promotora Fabíola Sucasas, não há necessariamente uma morosidade, mas traços específicos desses casos que muitas vezes fazem com que o processo demore um pouco mais: “Temos que considerar que [a maioria] são casos de réus soltos, e por isso são os prazos não são tão curtos como os de réus presos, então existe uma maior liberdade dos juízes marcarem audiência.”
“Mas a gente tem alguns sinais. Sinais de, no mínimo, impunidade. A Lei Maria da Penha precisa encontrar mecanismos de uma justiça mais rápida, então a gente sabe na nossa vivência que muitos casos acabam prescrevendo, as varas especializadas abarrotadas de processos, os juízes não conseguem dar conta de julgar com maior celeridade, o que por sua vez acarreta em prescrição e impunidade.”
Fonte: Conjur