De acordo com a Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul, as históricas enchentes já afetaram mais de 94% de toda a atividade econômica do estado [2]. Ainda, nove a cada dez indústrias gaúchas foram impactadas, totalizando aproximadamente 48 mil indústrias prejudicadas na região pelo desastre climático [3].
Considerando a magnitude dos impactos à atividade econômica, é natural que cresçam os debates sobre as consequências jurídicas decorrentes das enchentes, principalmente diante do “descumprimento” de inúmeros contratos empresariais em vigor. Assim, surgem questionamentos como a possibilidade de que determinada parte de um contrato, afetada pelas enchentes, não ter a possibilidade/capacidade de cumprir suas obrigações previamente acordadas. Neste caso, caberiam pleitos de indenizações e multas previstas nos contratos?
A resposta dependerá da definição de até que ponto o evento e efeitos decorrentes de enchentes estariam incluídos no regramento do artigo 393 do Código Civil Brasileiro (CCB) que regula os institutos de caso fortuito e força maior. Embora a resposta seja intuitivamente sim, a análise pressupõe compreender não só os conceitos e requisitos da regra jurídica contida no art. 393, mas também entender se os elementos do caso concreto preenchem o suporte fático necessário para a incidência dos efeitos do artigo 393.
O que é caso fortuito ou força maior?
A expressão “caso fortuito ou força maior”, majoritariamente tidas como sinônimas [4] por produzirem os mesmos efeitos [5], engloba acontecimentos naturais e ações humanas que gerem uma impossibilidade superveniente de cumprir obrigações, não imputáveis à parte inicialmente obrigada [6]. Assim, traduz-se em caso fortuito ou força maior o acontecimento que escapa da diligência do indivíduo, sendo completamente estranho à sua vontade [7].
Caso verificada a ocorrência de caso fortuito e força maior, o devedor fica eximido de cumprir a obrigação acordada ou de responder pelos prejuízos, ou seja, desaparece o direito do credor à indenização [8]. Assim, o caso fortuito e a força maior possuem o condão de afastar a incidência da responsabilidade civil contratual [9].
Os requisitos para configuração do caso fortuito ou da força maior podem ser divididos em dois, a saber: (1) a necessariedade do fato ocorrido; e (2) a inevitabilidade dos efeitos sobre o adimplemento do contrato [10].
A necessariedade do fato ocorrido traduz-se em fato não originado ou causado pelo devedor, isto é, que não esteja em sua esfera de controle [11]. Dentro do conceito de fato necessário está, portanto, a ausência de culpa do devedor, já que o fato não deve ter sido causado por ele [12].
A inevitabilidade dos efeitos, por sua vez, não quer dizer que o evento de força maior ou caso fortuito deva ser inevitável, mas refere-se ao fato que impossibilite, inevitavelmente, o cumprimento do contrato [13]. Portanto, caso o devedor pudesse evitar os efeitos relacionados ao fato necessário e não o fez, isso afasta a incidência da norma do artigo 393 do CCB [14].
Deve-se ter cuidado, contudo, com a análise sobre a inevitabilidade. Isso porque caso as consequências do fato sejam evitáveis, segundo parâmetros de razoabilidade, o devedor não poderá deixar de cumprir o contrato alegando impossibilidade de cumprimento por caso fortuito ou força maior [15]. Pode-se falar, portanto, em uma inevitabilidade razoável dos efeitos sobre o adimplemento do contrato, o que inclusive encontra eco em decisões dos tribunais brasileiros, como veremos mais abaixo.
Uma vez delineado o conceito, poderiam as enchentes serem consideradas, em tese, um evento que atraia a aplicação das regras sobre caso fortuito ou força maior? A resposta é afirmativa: não só dos doutrinadores da matéria [16], mas também dos magistrados brasileiros reconhecem que as enchentes configuram hipótese de “caso fortuito ou força maior”.
As enchentes como caso fortuito e força maior
Como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, inundações podem ser classificadas como eventos de força maior, pois constituem desastres naturais marcados principalmente por sua inevitabilidade, similares a terremotos, furacões e ciclones [17].
Os demais tribunais brasileiros, além disso, utilizam-se dos mais variados argumentos para classificar alagamentos como eventos de caso fortuito ou força maior, notadamente quando as enchentes (1) ultrapassarem o limite do previsível, sendo absolutamente excepcionais [18]; (2) forem não só imprevisíveis, mas também inevitáveis [19]; (3) mesmo previsíveis, possuírem consequências inevitáveis [20]; e (4) não pudessem ser impedidas por nenhum esforço das partes [21].
Por outro lado, as enchentes podem não ser eventos qualificáveis como caso fortuito ou força maior. A jurisprudência, nesse sentido, lista diversas hipóteses, quais sejam, (1) quando as enchentes forem eventos recorrentes em determinado local [22], mesmo quando há um maior volume de chuva [23]; (2) quando as enchentes forem previsíveis, por exemplo, em razão da época do ano, como ocorrem com as fortes “chuvas de verão” [24]; (3) quando for possível empregar esforços necessários para prevenir os efeitos negativos das enchentes [25]; e (4) quando as enchentes forem ocasionadas por culpa de uma das partes [26].
Constata-se que a “previsibilidade” das enchentes é vista por muitos magistrados como um dos requisitos para enquadrar o evento como caso fortuito ou força maior. Se a enchente era imprevisível, aplica-se o artigo 393 do CCB; se previsível, não há caso fortuito ou força maior.
O tema, contudo, deve ser visto com cautela. Mesmo sendo previsível, se o evento surgiu como força inarredável e indomável, e impediu o cumprimento da obrigação, logicamente o devedor não deveria responder pelo prejuízo [27]. O foco, portanto, deve residir nos requisitos já mencionados acima sobre a necessariedade e inevitabilidade, notadamente quando não é possível empregar esforços razoáveis para prevenir os efeitos negativos das enchentes.
Não obstante, mesmo as enchentes preenchendo os requisitos do caso fortuito ou força maior, existem cenários que podem ainda assim exigir do devedor a responsabilidade pelo não cumprimento da obrigação [28]. Dentro da autonomia da vontade das partes, é possível que afastem a regra do artigo 393 do CCB [29].
Por fim, importante mencionar que o caso fortuito ou força maior pode ter efeitos definitivos ou temporários sobre a vida do contrato.
Por um lado, os efeitos serão definitivos quando, em virtude de caso fortuito ou força maior, uma das partes fique impedida definitivamente de cumprir a prestação acordada, hipótese na qual a obrigação será resolvida [30]. Por outro lado, os efeitos poderão ser temporários sobre a vida do contrato, tema especialmente relevante em contratos de execução continuada ou sucessiva. Nesses casos, as obrigações ficariam suspensas durante o período em que persistir a impossibilidade ocasionada pela enchente, isto é, as obrigações contratuais ficariam em estado latente, recobrando seu vigor (caso não se tornem inúteis) tão logo cesse o caso fortuito ou a força maior [31]. Afinal, as partes não podem se escusar de cumprir suas obrigações com base em eventos que já não mais influenciam na vida do contrato. Importante referir que no caso de suspensão do contrato, esta pode ser total ou parcial, permitindo que as partes entreguem parte do objeto, por exemplo, e em relação ao cumprimento restante este dever ficaria suspenso ou até teria seu prazo prorrogado, conforme o caso.
Conclusão
Em suma, não é possível afirmar categoriamente que enchentes automaticamente serão classificadas como eventos de caso fortuito ou força maior para fins de eximir o devedor de sua responsabilidade por deixar de cumprir a obrigação acordada.
Em casos de enchentes, além da necessidade de assegurar o cumprimento dos requisitos para a aplicação do artigo 393 do CCB, é crucial avaliar as atitudes das partes envolvidas diante dos alagamentos (p.e., se era possível empregar esforços necessários para prevenir os efeitos negativos das enchentes), bem como levar em conta as regras próprias trazidas no contrato sobre eventos de caso fortuito ou força maior.
De toda forma, são as condições de cada caso, individualmente analisado, que determinarão se a ocorrência de uma enchente pode ser enquadrada como um caso fortuito ou força maior, não podendo ser generalizada ou presumida sua aplicação.
[1] Veja artigo disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/sos-rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/09/tragedia-do-rs-entra-para-as-maiores-do-brasil-relembre-principais-desastres-causados-pelas-chuvas.ghtml#
[2] Disponível em: https://www.fiergs.org.br/noticia/estudo-da-fiergs-mostra-que-sobe-para-943-o-percentual-da-atividade-economica-no-estado. Acesso em 31 maio 2024.
[3] Disponível em: https://www.terra.com.br/economia/chuvas-no-rs-nove-em-cada-dez-industrias-gauchas-foram-afetadas-pelas-enchentes,23201f042465b3983d607f004d524957hdvxb6wk.html. Acesso em 31 maio 2024.
[4] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXIII. Rio de janeiro: Borsoi, 1959, § 2.792; CORRÊA, André Rodrigues. Solidariedade e Responsabilidade: o tratamento jurídico dos efeitos da criminalidade violenta no transporte público de pessoas no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2009; NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 659-662; MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. V. Tomo II. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 198; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – V. II. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 339.
[5] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1958, tomo XXIII, § 2.792, p. 79.
[6] MARTINS-COSTA, Judith; SILVA, Paula Costa e. Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 116.
[7] Cavalieri Filho, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 16. ed. Barueri [SP]: Atlas, 2023, p. 89.
[8] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – V. II. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 342; FACHIN, Luiz Edson. Fato de Força Maior e o Adimplemento Contratual. In: Soluções Práticas, vol. 1, p. 231 – 276, Jan. 2012, § 2.1.1.
[9] CARNACCHIONI, Daniel Eduardo Branco. As teorias das da cláusula penal e das arras: conceito e introdução. In: ANDRIGHI, Fátima Nancy (Coord.). Responsabilidade civil e inadimplemento no direito brasileiro. São Paulo: Atlas, 2014, p. 131 – 177, p. 141.
[10] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. V. Tomo II. 1ª ed. Rio de janeiro: Forense, 2002, p. 199 e ss.; MARTINS-COSTA, Judith; SILVA, Paula Costa e. Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 123.
[11] MARTINS-COSTA, Judith; SILVA, Paula Costa e. Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 123.
[12] CESA, Jorge. Caso fortuito e força maior: o papel da culpa para a sua caracterização. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/331569/caso-fortuito-e-forca-maior–o-papel-da-culpa-para-a-sua-caracterizacao. Acesso em 27 maio 2024.
[13] MARTINS-COSTA, Judith; SILVA, Paula Costa e. Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 124; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo XXIII. Rio de janeiro: Borsói, 1958, § 2.792.
[14] CESA, Jorge. Caso fortuito e força maior: o papel da culpa para a sua caracterização. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/331569/caso-fortuito-e-forca-maior–o-papel-da-culpa-para-a-sua-caracterizacao. Acesso em 27 maio 2024.
[15] MARTINS-COSTA, Judith; SILVA, Paula Costa e. Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 124.
[16] CESA, Jorge. Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos. Disponível em : Caso fortuito e força maior: as questões em torno dos conceitos – JOTA. Acesso em 27 maio 2024; MARTINS-COSTA, Judith; SILVA, Paula Costa e. Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 116; MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. V. Tomo II. 1ª ed. Rio de janeiro: Forense, 2002, p. 201.
[17] Veja, por exemplo: STJ. 4ª Turma. Resp nº. 1217701/TO. Relator Ministro Luis Felipe Salomão. Julgado em 07/06/2016; STJ. 1ª Turma. AgRg no Ag nº. 387643/SP. Relator Ministro José Delgado. Julgado em 14/08/2001.
[18] TJ-SP. 12ª Câmara de Direito Público. Processo nº. 0007008-65.2007.8.26.0072. Relator Souza Nery. Julgado em 02/05/2018; TJRS. 9ª Câmara Cível. AC nº. 70077364628 RS. Relator: Eugênio Facchini Neto. Julgado em 30/05/2018; TJSP. 31ª Câmara de Direito Privado. APL nº. 1001052-30.2016.8.26.0268. Relator Carlos Nunes. Julgado em 18/12/2018; TJSP. 11ª Câmara de Direito Público. AC nº. 1007029-13.2019.8.26.0554. Relator Marcelo L. Theodósio. Julgado em 26/04/2022.
[19] TJ-SP. 9ª Câmara de Direito Público. AC nº. 0073723-31.2005.8.26.0114. Relator Décio Notarangeli. Julgado em 03/02/2020; TJMG. 9ª Câmara Cível. AC nº.10000160945937001. Relator Amorim Siqueira. Julgado em 21/02/2017.
[20] TJ-SP. 8ª Câmara de Direito Público. AC nº. 1022170-53.2023.8.26.0224. Relator Leonel Costa. Julgado em 17/04/2024.
[21] STJ. 2º Turma. AgInt no AREsp nº. 1547421/MS. Relator Ministro Francisco Falcão. Julgado em 18/05/2020.
[22] TJ-SP. 10ª Câmara de Direito Público. AC nº. 1005164-23.2016.8.26.0048. Relator Marcelo Semer. Julgado em 15/12/2020; TJMG. AC nº. 10878110012555001. Relator José Eustáquio Lucas Pereira. Julgado em 04/07/2019.
[23] TJ-SP. 3ª Câmara de Direito Público. AC nº. 1028041-34.2019.8.26.0053. Relator Camargo Pereira. Julgado em 17/02/2021.
[24] TJ-SP. 2ª Turma Cível. RI nº. 1002255-41.2017.8.26.0058. Relator André Luís Bicalho Buchignani. Julgado em 27/02/2020.
[25] TJ-SP. 8ª Câmara de Direito Público. AC nº. 0012942-72.2007.8.26.0405. Relator Jarbas Gomes. Julgado em 11/02/2015; TJSC. APL nº. 03034014120178240018. Relatora Cláudia Lambert de Faria. Julgado em 15/12/2020.
[26] TJ-SP. 10ª Câmara de Direito Público. APL nº. 0008853-06.2007.8.26.0405. Relator Antonio Carlos Villen. Julgado em 09/09/2013.
[27] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – V. II. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 340.
[28] Sobre o tema, ver: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – V. II. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 342 – 343; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSELVAD, Nelson. Obrigações 9. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 492.
[29] MARTINS-COSTA, Judith; SILVA, Paula Costa e. Crise e Perturbações no Cumprimento da Prestação. Estudo de Direito Comparado Luso-Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 119. Sobre o tema, ver também: SILVA, Joaquim Marcelo Barbosa da. As Cláusulas Excludentes e Limitadoras da Responsabilidade Contratual. Caso Fortuito e Força Maior. In: Revista de Direito Privado, vol. 6/2001, p. 96 – 123, Abr./Jun. 2001.
[30] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. V. Tomo II. 1ª ed. Rio de janeiro: Forense, 2002, p. 209.
[31] MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Vol. V. Tomo II. 1ª ed. Rio de janeiro: Forense, 2002, p. 208 – 209.
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