Classificar facções como terroristas tem pouco efeito prático e cria lógica da exceção

Equiparar facções criminosas a organizações terroristas não traria alterações significativas às investigações e aos processos penais contra esses grupos. A maior diferença seria a federalização dos procedimentos, mas isso poderia esvaziar apurações estaduais, atrasar a tramitação de ações e aumentar o número de nulidades.

 

Por outro lado, a classificação desses grupos como terroristas poderia dar margem a uma maior intervenção externa, inclusive com a aplicação de sanções ao Brasil. A alteração ainda poderia levar à supressão de direitos e garantias fundamentais em nome de uma suposta preservação da segurança nacional. É o que apontam especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

A discussão sobre o endurecimento penal contra facções voltou à tona após a ação policial de 28 de outubro, no Rio de Janeiro. O número de mortos em consequência da operação policial, promovida contra o Comando Vermelho nos Complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte do Rio, é incerto — o governo fluminense diz que foram 121, incluindo quatro policiais, mas moradores alegam que a quantidade é maior. Seja como for, é certo que se trata da ação mais letal da história do estado, com mais do que o quádruplo de vítimas da incursão no Jacarezinho, em 2021, que gerou 28 mortos (de acordo com a contagem oficial).

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), chegou a culpar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, em que o Supremo Tribunal Federal homologou um plano para a redução da letalidade policial no estado, pela violência, mas os números contradizem o político.

Bolsonaristas passaram a defender a equiparação da ação de facções ao terrorismo, promovida pelo Projeto de Lei 1.283/2025. Castro entregou ao Consulado dos Estados Unidos no Rio um relatório no qual mostra o avanço do Comando Vermelho em território americano, pedindo que a organização seja considerada terrorista.

Na justificativa do PL, o deputado federal Danilo Forte (União-CE) argumenta que a atuação das facções transcende os crimes comuns, configurando grave ameaça à segurança nacional.

“Em outras palavras, a necessidade de estender a aplicação da Lei Antiterrorismo a organizações criminosas e a milícias privadas que praticam atos de terrorismo decorre da constatação de que esses grupos têm utilizado o terror como instrumento para atingir seus objetivos, seja para retaliar políticas públicas, ou para demonstrar domínio, controle social ou poder paralelo ao Estado em qualquer espaço territorial.”

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Segundo o parlamentar, a equiparação de facções a organizações terroristas possibilitaria a responsabilização dos integrantes e líderes desses grupos por atos preparatórios, tornando mais efetiva a prevenção estatal. A novidade também permitiria a decretação de medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores dos investigados, asfixiando financeiramente as facções — inclusive por cooperação internacional. Além disso, federalizaria as investigações, sem “risco de ser utilizada para perseguições políticas ou contra movimentos sociais”, conforme o deputado.

“Diante do exposto, conclamo os nobres pares pela célere aprovação deste projeto, que representa um marco fundamental na luta contra grupos criminosos organizados que recorrem a táticas de terror e fragilizam o Estado. A aprovação desta proposta legislativa é essencial para garantir a segurança da população, a estabilidade das instituições e a soberania do Estado”, sustenta Forte.

Poucas alterações

A única alteração substancial da equiparação de facções ao terrorismo é federalizar as investigações de crimes praticados por esses grupos — o que já foi determinado pelo Supremo. Na decisão da ADPF 635, a corte ordenou a instauração de um inquérito, pela Polícia Federal, para apurar indícios concretos de crimes cometidos no Rio com repercussão interestadual e internacional.

Excetuando-se a questão da competência — que pode atrasar investigações e potencializar nulidades —, nada mudaria do ponto de vista investigativo e processual penal, aponta o procurador da República Vladimir Aras, professor de Direito Processual Penal da Universidade de Brasília (UnB).

“Não haveria qualquer ganho instrumental (ampliação da caixa de ferramentas da polícia ou do MP). Não haveria melhora nos mecanismos de cooperação internacional, pois o que é possível fazer no âmbito dos tratados antiterrorismo já é possível fazer com a Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), a Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/1998) e as recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi). Essas normas formam um microssistema com a Lei do Terrorismo (Lei 13.260/2016), mediante empréstimos de força de uma lei à outra.”

Na visão de Aras, não é necessário classificar facções como organizações terroristas para intensificar o combate a elas. Em primeiro lugar, a Lei do Terrorismo teria de ser “drasticamente alterada” para suprimir a motivação que consta do atual texto (de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião).

Porém, isso não se justifica, conforme o procurador. Isso porque o enquadramento como terrorista “não muda nada na persecução penal, nos poderes da polícia e do MP, para realizar uma investigação eficiente e completa”.

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“O que essas instituições hoje podem usar, em termos de ferramentas processuais e meios de obtenção de prova, contra eventuais organizações terroristas, também já podem usar para lidar com as organizações criminosas em geral, inclusive as facções. Isso porque a Lei do Terrorismo manda aplicar à investigação do terrorismo os meios de obtenção de provas da Lei das Organizações Criminosas, a exemplo da infiltração policial, da colaboração premiada e da ação controlada. Ou seja, o Estado brasileiro não precisa da etiqueta nova para termos mais meios e poderes investigativos e de coleta de provas.”

A pena mínima para o crime de associação em organização terrorista (de cinco a oito anos) é dois anos maior do que a de organização criminosa (três a oito anos). “Mas isso é pouco para justificar um rebranding (repaginação)”, diz Aras. Ele destaca que o ato terrorista é punido com 12 a 30 anos de prisão. No entanto, esse intervalo penal pode ser alcançado com a Lei das Organizações Criminosas, com a inclusão de uma forma qualificada de organização criminosa (o crime de facção).

Efeito simbólico

Em termos penais e processuais penais no Brasil, a alteração teria efeito apenas simbólico, avalia Aury Lopes Jr., advogado e professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

“É evidente que é mais uma questão simbólica, sedante e sem sentido algum. Também não tem nenhuma relação com questões ideológicas, políticas ou de ataque ao Estado democrático. As facções entram no conceito de crime organizado, com estrutura hierárquica, formada por várias pessoas, para prática de crimes. O objetivo final é o lucro, não implantar nenhum regime político. Óbvio que é uma questão de poder, mas não na perspectiva do terrorismo, o foco é outro. Tecnicamente é um erro”, afirma o advogado.

A equiparação entre facções e organizações terroristas é “um equívoco conceitual e uma distorção do sistema jurídico brasileiro”, analisa Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim).

“O terrorismo é uma forma de violência dotada de finalidade político-ideológica, que não se confunde com a atuação de facções, voltadas ao controle de mercados ilícitos. O alargamento do conceito de terrorismo visa legitimar ações de exceção, a exemplo do extermínio de pessoa ou grupos. Se a proposta for aprovada, o Brasil teria potencialmente mais grupos terroristas que países do Oriente Médio que estão no centro das questões geopolíticas envolvendo esses grupos”, continua ele.

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Facções como Comando Vermelho já são alvos de operações policiais letais, sem investigação efetiva, sem contraditório e sem processo, destaca Melchior. “A diferença é que, ao rotulá-las como terroristas, o Estado cria um espaço jurídico de exceção em que a supressão de garantias se justificaria.”

Lógica da exceção

A Lei do Terrorismo tem uma ressalva para evitar o uso político do tipo penal contra movimentos sociais e grupos de contestação. A aplicação desse regime a facções tensionaria o sentido constitucional do termo “terrorismo”, reservado a atos motivados por preconceito, ódio ou ideologia, e não por fins econômicos ou de domínio territorial, de acordo com Luís Henrique Machado, professor de Direito Processual Penal do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

“Tal expansão interpretativa colocaria o Brasil em rota de colisão com princípios de tipicidade estrita, proporcionalidade e reserva legal, pilares do Estado de Direito. Em última análise, rotular facções como organizações terroristas significaria substituir o controle jurídico-penal pela lógica da exceção. A repressão ganharia poder simbólico e internacional, mas à custa de um perigoso precedente: o de flexibilizar o conceito de terrorismo para abarcar fenômenos criminais internos.”

Ele lembra que, nos EUA pós-atentados de 11 de setembro de 2001, diversos direitos e garantias fundamentais foram suprimidos a pretexto de manter a segurança nacional. Esse cenário, diz Machado, gera um Direito Penal menos racional e mais político, no qual a exceção ameaça se tornar a regra.

A federalização das investigações esvaziaria o protagonismo das polícias estaduais e centralizaria a resposta penal no aparato da União, em linha com a política global de combate ao terrorismo e as recomendações do Financial Action Task Force, examina o advogado.

Isso abriria margem para maior intervenção estrangeira no país. Bloqueio de bens, cooperação financeira e intercâmbio de dados passariam a funcionar sob tratados de combate ao financiamento do terrorismo, não apenas sob convenções de repressão à criminalidade transnacional, explica Machado.

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