Criminalistas repudiam possível limitação de quesito genérico do Júri

Instituído no Brasil há 200 anos e recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o Tribunal do Júri pode ter um dos seus pilares modificados pelo Supremo Tribunal Federal no próximo dia 1º de agosto. Na ocasião, o STF irá começar a analisar e julgar o Tema 1087, que trata da possibilidade do tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos do processo.

Criminalistas repudiam possibilidade de limitar quesito genérico do JúriTJ-RJ

Criminalistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico são uníssonos em repelir a possibilidade. O jurista Lenio Streck, por exemplo, é enfático: “Enquanto o júri mantiver a íntima convicção e esse tipo de quesitação, é impossível questionar as razões pelas quais os jurados absolvem. A íntima convicção não se questiona. Filosoficamente impossível. Mas penso que o STF dirá o contrário. Aliás, se há soberania dos veredictos, como questionar um veredicto ditado pela íntima convicção dos jurados? Seria uma contradição lógica”, sustenta.

O experiente criminalista Mário de Oliveira Filho entoa o coro contra a possibilidade. “O Tribunal do Júri vem sofrendo incontáveis ataques contra a sua soberania e contra a sua própria existência. São necessárias algumas modificações na sua estrutura e na sua ritualística. Faz parte da soberania dos veredictos a possibilidade dos jurados absolverem o acusado até mesmo por clemência”, defende.

Ele explica que, na sistemática do júri brasileiro, o jurado vota conforme sua consciência e faz o juramento de assim votar.

“Tribunal do júri é um tribunal diferente onde há um sentimento de justiça diferenciado, porque manifestado na experiência pessoal de cada um dos componentes do corpo de jurados. Tolher essa liberdade consagrada pela própria Constituição Federal ao Conselho de jurados é macular a essência de um tribunal popular”, defende.

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Autor do livro “Manual do Tribunal do Júri”, o pós-doutor em Direito e advogado criminalista Rodrigo Faucz explica que a soberania das decisões absolutórias do Júri está bem sedimentada internacionalmente, pois viola o princípio do ne bis in idem — do Direito Romano, preconiza não julgar duas vezes alguém pela mesma falta.

“Considerando a primazia aos princípios da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença e da plenitude de defesa, bem como ao modelo da íntima convicção dos jurados e da sigilosidade das votações, entendemos que não deve ser sequer conhecida a apelação interposta pela acusação, quando atrelada ao disposto no art. 593, III, ‘d’, do CPP”, sustenta.

Instituto questionado
Apesar da defesa veemente de criminalistas, o Tribunal do Júri vem sendo cada vez mais questionado no Brasil. Durante julgamento no STF que declarou que a tese da legítima defesa da honra, ainda usada por acusados de feminicídio, não é, tecnicamente, legítima defesa, o ministro Dias Toffoli fez um apelo ao Congresso para acabar com o instituto no Brasil.

“A frente parlamentar feminina deveria propor uma Emenda Constitucional para extinguir o tribunal do júri. Já é chegada a hora do Congresso Nacional extinguir o júri. Eu tenho dito isso na turma e no plenário, e aqui tomo a liberdade de dizer às senadoras e deputadas: tomem a frente disso, proponham a extinção do tribunal do júri”, disse o ministro na ocasião.

declaração foi repudiada por meio de nota assinada por entidades, associações e núcleos de pesquisa. “O  júri está previsto no art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, constituindo, portanto, um direito e garantia fundamental do cidadão, verdadeira cláusula pétrea, insuscetível de exclusão por emenda constitucional, conforme disposição expressa do art. 60, § 4º, IV da Carta Magna”, diz trecho da nota.

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Fato é que, do modo em que está previsto no nosso ordenamento jurídico, a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri deve prevalecer. Ao menos na opinião do advogado e professor de Direito Penal do IDP, Luís Henrique Machado.

“A soberania do júri deve prevalecer ante a formulação de quesito genérico, mesmo na hipótese de decisão contrária à prova dos autos. O quesito é genérico justamente com o fim de ampliar o campo decisório do jurado para que ele possa levar em consideração toda a matéria fática e probatória no momento do julgamento, ou seja, sem imposição de restrições.”

“Não faz qualquer sentido o legislador ampliar a moldura da norma delegando ao jurado um campo maior de análise e o magistrado togado adentrar nesta esfera avaliativa, mormente em caso de absolvição do acusado. Caso prevaleça o entendimento de realização de novo júri, toda a razão da lei estará, infelizmente, comprometida”, argumenta.

Garantia do acusado
O criminalista Welington Arruda explica que o veredicto proferido por um Conselho de Sentença imparcial, independente e livre representa a mais ampla garantia fundamental do acusado.

“Isso não significa que o veredicto do Conselho de Sentença é absoluto ou definitivo. Por trás dele tem um sistema constitucional que assegura a harmonia das regras jurídicas em consonância com a presunção de inocência e com o direito de recurso, sendo a sentença proveniente do Tribunal do Júri cindível do ponto de vista recursal e, em última análise, possível de ser modificada até o trânsito em julgado”, explica.

Arruda aponta que o artigo 593, inciso III, alínea “d” do Código de Processo Penal, que faz alusão à decisão manifestamente contrária à prova dos autos, é uma hipótese reservada apenas à decisão condenatória contra prova dos autos.

“Isso acontece porque o Código de Processo Penal, no âmbito do Júri, tem o quesito obrigatório genérico de absolvição após quesitos sobre autoria e materialidade. Logo, se o quesito absolutório é obrigatório, devendo ser respondido mesmo após o reconhecimento da autoria e materialidade delitivas, demonstra-se que o jurado está autorizado a responder positivamente ao questionamento, independentemente de suas motivações e mesmo em contradição à prova dos autos. Ou seja, o que o direito condenaria, pode o jurado absolver. Por outro lado, resta evidente que aquilo que o direito absolveria, não pode o jurado condenar”, argumenta.

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O  professor da FGV-SP e sócio da área penal do Mattos Filho, Rogério Fernando Taffarello, lembra que o quesito genérico foi tema de alteração recente na reforma do CPP de 2008, com a edição da Lei 11.689 que alterou alguns procedimentos, entre eles o do Tribunal do Júri. “O legislador fez isso para dar mais segurança jurídica na quesitação, que sempre foi um tema de muita discussão e controvérsia nos tribunais. A ideia era simplificar o procedimento em relação ao fato de os jurados condenarem ou absolverem o acusado”, explica.

Nesse contexto, a fundamentação do veredicto nada mais é do que a íntima convicção do acusado. “O quesito textual da lei sobre condenação ou absolvição do acusado não faz menção a nenhuma prova. Ele diz respeito ao sentimento do jurado que vai decidir com base no que ele viu no julgamento.”

Por fim, o advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS, Aury Lopes Jr., explica que, após a reforma de 2008, o Ministério Público não pode recorrer contra a decisão.

“No momento que o legislador autoriza que o jurado pode absolver com base no quesito genérico contra a prova dos autos. Isso está legitimado pela opção do legislador que permite absolvição por motivos humanitários, clemência etc”, finaliza.

Fonte: Conjur