Disparidade de armas digital no processo penal híbrido

A questão que governa o título é: as teorias de processo foram estruturadas em momento histórico distinto, com suporte na lógica mecanicista [relação causa-efeito], alheias às atualizações teóricas e metodológicas, especialmente em face do contexto tecnológico que invadiu os instrumentos de investigação e julgamento e dos achados da psicologia cognitiva, psicologia social, economia comportamental, neurociência, economia, física, ciência de dados, dentre outros domínios da ciência, em geral, ignorados ou não integrados adequadamente ao domínio do processo penal.

Os impactos da Era da Informação [Castells; Floridi], dos avanços tecnológicos [Internet, Web, computadores, processo digital, prova eletrônica-digital, inteligência artificial, big data, dentre outras entidades] e das contribuições dos domínios adjacentes simplesmente não existiam à época. Em consequência, ao mesmo tempo que é inválido criticar os teóricos do Saber Convencional do Processo Penal pelos recursos então inexistentes e/ou indisponíveis, também é inválido continuar aplicando modelo em parte obsoleto e incapaz de responder ao contexto atual, situado em três domínios com fronteiras difusas: Mundo Analógico, Mundo Digital e Mundo Híbrido.

O Mundo Analógico é o que se refere aos eventos penais sem qualquer conexão ao contexto digital, quer como ambiente ou prova, restringindo-se à coleta de provas analógicas [documentos físicos; depoimentos e perícias materiais], em número cada vez menor. No extremo oposto estão os crimes genericamente designados de Digitais, realizados no ambiente digital, em franco crescimento [Scott Sydow]. No entremeio estão os crimes híbridos, em que tanto a realização da conduta, quanto as provas, conectam-se direta ou indiretamente ao contexto digital, atualmente em maior número.

Ainda que assumamos a autonomia do Direito e, por consequência, da especificidade do campo jurídico, também é verdade que o contexto analógico se alterou substancialmente em face contexto digital [Virada Digital, diz Dierle Nunes], exigindo a aquisição de competências [conhecimentos; habilidades; experiencias; atitudes] ausentes na formação convencional do agente penal [qualquer humano que interage nos procedimentos penais].

A transformação do contexto analógico em digital promoveu a modificação das coordenadas do cotidiano e, por consequência, do processo penal, especialmente a imensa produção de dados por meio de dispositivos [sensores, smartphones, câmeras etc.], com a ampliação da produção de prova eletrônico-digital.

Segue-se que a ausência de conhecimentos mínimos quanto aos novos temas e artefatos amplia a disparidade de armas digitais [confira os escritos de Luiz Eduardo Cani]. A atualização teórica e operacional de cada agente depende da disposição individual quanto ao prévio reconhecimento das fraquezas, associada à aquisição de novas competências digitais [conhecimentos, habilidades; experiências; atitudes].

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Distância entre recursos

Diferentemente da Polícia e do Ministério Público que realizam constantes treinamentos e são providos de unidades de inteligência [muitas vezes às sombras], os defensores públicos e advogados privados contam somente com o esforço individual, em geral, com orçamentos limitados e preconceitos limitadores das mais variadas ordens quanto à incorporação de tecnologia defensiva.

A distância entre os recursos tecnológicos disponíveis entre acusação e defesa tende a aumentar, salvo quanto aos profissionais que se derem conta das limitações digitais e, por si, avançarem no sentido de adquirirem novas competências necessárias à redução da disparidade de armas digitais.

De minha parte foi necessário um longo letramento digital porque formado em 1996, desde então, embora tenha acompanhado a criação e evolução dos computadores, da Internet e da Web, não tinha a compreensão adequada da estrutura, do funcionamento e das oportunidades [desconhecidas].

Reconhecer os limites e abandonar a arrogância analógica é um ato de coragem, talvez de sobrevivência profissional. Embora tenha iniciado o letramento digital, o esforço para compreender o universo digital é imenso, impondo a necessária e constante atualização, porque a cada dia surgem novidades.

O maior obstáculo é o de que a maioria dos agentes penais conta apenas com papel, caneta e um editor de texto para gerenciar o caso penal. A metodologia se resume em anotar o que se julga importante, com riscos e rabiscos, associando o material selecionado às competências [conhecimentos; habilidades; experiência; atitude], além da pesquisa parcial na doutrina e, principalmente, na jurisprudência, com imensas dificuldades de identificar, diante do excesso de fontes [abundância digital], o que é compatível e útil do que é incompatível e inútil. Aloca-se tempo e recursos em atividades redundantes, ineficientes e repetitivas.

O amadorismo metodológico tende a ampliar a exposição ao risco de erros [perigos; catástrofes]. O pior é que muitos sequer se dão conta do contexto de risco, por desconhecerem a existência de instrumentos e ferramentas ágeis à melhoria do desempenho. No entanto, desde a passagem da máquina de escrever para os computadores, com a criação da Internet [a estrutura física] e as infinitas possibilidades da Web [a conexão de conteúdo; rede; aplicações], Open Source Intelligence [Osint; Rodrigo Camargo; Wanderson Castilho], a incorporação de recursos tecnológicos às práticas jurídicas, especialmente à gestão de caso penal, é condição necessária à competitividade [Isabela Ferrari; Fernanda Lage].

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Do contrário, a defasagem aumenta a exposição aos riscos decorrentes da lentidão de acesso, localização e processamento do imenso volume de dados e de informações produzidos em um caso penal, ainda que aparentemente simples.

Por isso a importância das Tecnologias de Informação e Comunicação [TICs], os achados da Gestão do Conhecimento e as novas oportunidades de aquisição e de tratamento de dados. Até porque a proteção de dados pessoais, especialmente o conceito de “autodeterminação informacional”, é inerente ao processo penal, motivo pelo qual se deve avaliar o impacto, dentre outras normativas, da Emenda Constitucional 115, do Marco Civil da Internet, da Lei Geral de Proteção de Dados e da Convenção de Budapeste.

Ainda que não tenhamos, ainda, a LGPD-Penal, os princípios e regras gerais incidem no processo penal. Do contrário, estaríamos em Zona de Exceção, situação incompatível com o regime democrático. Então, do ponto de vista da Administração Pública, lugar da investigação criminal, as exigências mínimas são exigíveis. Quem sabe você tenha ficado curioso e possa ler o acórdão da Ação Direta de Constitucionalidade 51, proferido pelo Supremo Tribunal Federal.

Denomina-se de Tecnologias da Informação e Comunicação [TICs] o conjunto de dispositivos [meios: dispositivos; ferramentas; instrumentos] aptos à otimização do armazenamento, do acesso, do processamento e da troca de dados e de informações com finalidades múltiplas. Os avanços tecnológicos propiciaram o aumento do potencial das máquinas, inserindo-se no cotidiano pessoal e profissional, especialmente por meio de computadores, da internet e da web (www).

A consequência foi a aceleração e a ampliação do volume das trocas de informações no contexto. No domínio do Direito e do Processo Penal o impacto das TICs é imenso, em geral, pouco integrado às atividades defensivas, embora amplamente utilizadas nas atividades de investigação e de inteligência.

Em consequência, a adoção de estratégias de integração dos achados das ciências de dados mostra-se como condição de possibilidade às atividades relacionadas à gestão de caso penal concreto. Ao mesmo tempo que confere ampla possibilidade de obtenção de dados e de informações, promove a disparidade de armas procedimentais em diversos campos.

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Além da gestão do caso penal, o acesso, a aquisição e o processamento do imenso volume de dados disponível tornam-se privilégio de quem adquiriu dispositivos e competências relacionadas à implementação do devido processamento. Os demais esperam impávidos um milagre.

Dentre as diversas possibilidades, encontra-se a alegação da Perda de Uma Chance Probatória Digital, consistente na omissão quanto à aquisição ou produção de prova por parte do Estado Investigador e/ou acusador, reduzindo as chances defensivas de modo tangível, objetivo e mensurável. Se existem sensores disponíveis no cotidiano, a ausência de levantamento das câmeras públicas, privadas ou bodycam podem significar, a depender do caso, a alteração da valoração do conjunto probatório.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do AgRg. HC 213387, voto ministro Gilmar Mendes [2ª Turma, PV; 05-12/05/2023], deixou assentado:

“Embora em julho a de 2020, os agentes policiais insistem em realizar a diligência sem uso de câmeras corporais, aquisição de imagens de câmeras da região ou mesmo da viatura, confiando na sobrevalorização da força das declarações que se mostra inválida no contexto digital atual. Em consequência, a omissão dos agentes estatais retira a tração cognitiva das declarações dos policiais analisadas no contexto dos autos, principalmente quanto às premissas adotadas pela decisão monocrática.”

Há um longo caminho a ser construído, incompatível com a inércia analógica de muitos agentes penais. Se, em geral, os currículos do curso de direito são insuficientes à aquisição de competências [conhecimentos; habilidades; experiências; atitudes] associadas ao mundo digital e/ou híbrido, vinculados às novas oportunidades com dados, então a formação adequada dependerá da motivação e do esforço pessoal.

O letramento digital autodidata pode ocorrer com pesquisas aleatórias no Google ou supervisionada por alguém com mais tempo de estrada e que, por isso, sinaliza previamente as armadilhas e de erros evitáveis. Os desafios são imensos porque ninguém se torna profissional de elite sem esforço pessoal, alocação de tempo e de recursos orientados à melhoria do desempenho. Essa parte é com você. Mas conte conosco.

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