Um caso real
Joana conheceu Mateus em uma festa. Ela, uma alta executiva de uma construtora, conhecida por supostamente ser “dura na queda”, de “difícil trato”, “intragável”, dizia parte da equipe quase totalmente masculina liderada por ela, em uma das empresas com maior contratação de homens no país.
Mateus sabia identificar mulheres bem-posicionadas e em busca de um amor. Joana era uma dessas mulheres, capa de inúmeras revistas de negócios, inspiração no mercado, mas há muitos anos sem engatar um relacionamento bem-sucedido. O motivo, segundo ela, era que os homens se sentiam castrados por seu poder e competência.
Joana desejava viver um amor, ela realmente estava empenhada. E foi por essa vulnerabilidade específica, da vontade de amar e ser amada, que Mateus entrou em sua vida.
O romance evoluiu rapidamente. Ele sabia como agir, estava sempre melancólico porque seus projetos profissionais eram um “fracasso”, mas ao mesmo tempo era o companheiro “perfeito” para Joana: carinhoso, apaixonado, envolvente.
E foi nesse contexto que Joana passou a investir nos negócios do amado, afinal, queria vê-lo mais feliz e carregava a culpa de ser bem-sucedida em seu trabalho enquanto Mateus parecia não alcançar o sucesso por falta de oportunidades.
Ao longo dos anos, Joana emprestou cerca de 20 milhões para investimentos nas empresas de Mateus, sempre com promessas de ser reembolsada. Segundo ele, a fortuna havia sido perdida porque o mercado oscilava. Ele seguia pedindo mais. Ela nunca recebeu um centavo investido.
Nessa altura, Joana já vinha limitando o dinheiro e Mateus apresentava comportamento violento quando as negativas aconteciam, chegando a dizer que “a falta de dinheiro na conta tirava a sua libido”.
Foi durante a exibição de uma matéria jornalística sobre violência doméstica, que Joana percebeu que havia algo muito errado em seu relacionamento e decidiu buscar ajuda com uma advogada especialista.
O caso narrado é verídico e foi atendido no escritório de uma das subscritoras desse texto, com alteração da identidade das partes a fim de preservar o sigilo do caso.
A vítima, acreditando que o companheiro seria mais feliz e se entregaria mais ao relacionamento se fosse bem-sucedido em seus negócios, transacionou valores multimilionários e foi agredida, inclusive mediante enforcamento e socos, ao negar novas transferências bancárias para o companheiro.
O estelionato sentimental na legislação brasileira
Casos como esse sempre existiram, contudo, a maior problematização dessas situações e a identificação de consequências jurídicas, têm tornado essa uma discussão pública.
Para a configuração de um crime de estelionato, é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: (i) obtenção de vantagem ilícita, em prejuízo alheio; (ii) emprego de artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento; (iii) induzimento ou manutenção da vítima em erro.
A vantagem ilícita é compreendida como todo e qualquer proveito ou benefício não justificado no ordenamento jurídico, enquanto o prejuízo alheio se configura pela perda de patrimônio ou lucro, e o meio fraudulento consiste no método adotado para alcançar a confiança da vítima que, por sua vez, é levada a uma falsa compreensão da situação vivenciada.
No estelionato sentimental há um vício de consentimento. A vítima, envolvida emocionalmente, age com base em seus sentimentos, mas é ludibriada a sentir a partir de uma falsa realidade.
Vale ressaltar que toda e qualquer mulher pode ser vítima de estelionato sentimental. Não há uma “vítima ideal” e esse tipo de golpe tem acontecido de múltiplas formas. Apesar disso, mulheres bem-sucedidas financeiramente costumam ser alvos preferenciais dos oportunistas que buscam enriquecimento indevido, aproveitando-se da confiança estabelecida, levando as vítimas a crer na reciprocidade dos sentimentos.
Para além das possíveis indenizações cíveis, a conduta também repercute na justiça criminal, já que a relação amorosa se constitui como o meio ardil com a qual se pratica o estelionato.
O raciocínio apresentado busca aplicar a norma penal a condutas reais em casos concretos, por meio da subsunção penal, que pressupõe a comparação de determinada situação fática com a descrição do crime na legislação.
Debates no Judiciário
Recentemente, esta ConJur noticiou a aplicação desse entendimento pela 2ª Turma Recursal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao tratar do caso de uma mulher que foi levada a erro por um homem que se passava por integrante da Polícia Rodoviária Federal com fins de aumentar sua credibilidade, alegando a vítima, em relacionamento amoroso, que precisava de dinheiro para quitar dívidas, pagar a pensão da filha e comprar remédios para a mãe [1].
A decisão judicial reconheceu a ocorrência estelionato sentimental ao narrar que, no caso, “o agente se utiliza de ardil para obter vantagem econômica ilícita da companheira, aproveitando-se de relação afetuosa”.
Em outro caso emblemático, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo, via apelação criminal 0051215-23.2014.8.08.0035, manteve condenação criminal por estelionato sentimental, afastando a incidência do artigo 181 do Código Penal, que isenta de pena quem comete crimes contra o patrimônio em prejuízo de cônjuge ou na “constância da sociedade conjugal”.
O entendimento do TJ-ES se baseou no fato de o réu ter mantido “a vítima em erro quanto à sua pessoa, utilizando-se de seus conhecimentos jurídicos para concretizar o intento criminoso.”, além de que “não se deve admitir que o agente se beneficie da própria torpeza, beneficiando-se da isenção de pena quando agiu de maneira premeditada e calculista, antes mesmo de contrair matrimônio, antevendo todos os atos necessários para obter a vantagem patrimonial indevida em detrimento do sentimento e finanças da esposa,”
Nesta coluna [2], já tratamos, em meados de 2020, sobre a importância de analisarmos a isenção de pena disposta no artigo 181 do Código Penal à luz da perspectiva de gênero, por compreendermos que o próprio artigo penal 183 traz rol excludente da aplicação da isenção de pena, como, por exemplo, “quando haja emprego de grave ameaça ou violência à pessoa”.
De modo geral, a prática da violência patrimonial na constância do casamento, por si só, afastaria a aplicação da isenção penal do artigo 181, por configurar a exceção de “violência à pessoa”, que cumularia abalos emocionais como resultado e, em casos mais graves, possível estresse pós-traumático, uma espécie de distúrbio caracterizado por sintomas físicos, emocionais e psíquicos em decorrência da gravidade da violência sofrida.
Estelionato e a perspectiva de gênero
Analisar o estelionato pela perspectiva de gênero amplia as possibilidades de proteção à mulher, que pode contar com a concessão de medidas protetivas de urgência mais específicas para fazer cessar a violência patrimonial. Esse debate é urgente e trataremos de outras especificidades do estelionato sentimental em uma segunda rodada de texto, na próxima semana.
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[1] Disponível em https://www.conjur.com.br/2024-jan-02/vitima-de-estelionato-sentimental-nas-maos-de-falso-policial-sofre-dano-moral/ (acessado em 4/3/24).
[2] Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-set-30/escritos-mulher-critica-imunidade-penal-agressor-violencia-patrimonial/ (acessado em 4/3/24).
Fonte: Conjur