Importância dos aspectos subjetivo, temporal e causal no seguro D&O

O seguro de responsabilidade civil para diretores e conselheiros (seguro RC D&O, no jargão empregado pela Susep) é, sem dúvida, um importante instrumento ao exercício dos atos de gestão das sociedades, que enfrentam uma crescente necessidade de proteção financeira contra eventuais reclamações decorrentes de suas ações e/ou omissões.

A complexidade do ambiente empresarial, aliada à variedade de situações que podem dar origem a essas reclamações, demandam uma análise meticulosa do escopo da cobertura comumente oferecida pelas apólices D&O.

A fim de, didaticamente, estruturar o que deve ser examinado pelo intérprete a fim de conhecer o alcance da cobertura contratada, três aspectos se afiguram de fundamental importância, quais sejam: o subjetivo, o temporal e o causal.

Os dois primeiros usualmente serão de solução mais fácil, por assim dizer, considerando que a análise será mais pragmática. Pelo primeiro — o vetor subjetivo —, deseja-se saber se a pessoa em xeque é ou não uma administradora (diretora, conselheira, CEO, CFO, COO, entre outras nomenclaturas possíveis).

O que se deseja conhecer quando se investiga esse primeiro vetor é se a pessoa implicada está em posição de exercer um ato de gestão em nome da sociedade, se a representa, para os fins de direito. Veja-se que o administrador poderá ser regulamente eleito (um diretor estatutário, por exemplo), ou, até mesmo, um diretor de fato, tudo a depender, nesse particular, dos termos da apólice convencionada.

Ainda com relação ao primeiro vetor, é importante ter em mente que o seguro D&O é, usualmente, contratado por uma empresa (tomador) por conta de seus administradores (os segurados). Não se trata, como o próprio nome do seguro explicita, de um seguro concebido para a tutela do patrimônio da pessoa jurídica (tomador), mas da pessoa física dos administradores — em inglês, directors and officers liability insurance. Há possibilidade jurídica de contratação diretamente pela física do administrador, nos termos da regulação em vigor (Circular Susep nº 637/2021), mas, na prática, essa modalidade quase não ocorre.

Sob uma perspectiva cronológica, o exame assertivo quanto à existência de cobertura passará, em primeiro lugar, pela análise de quem está a requerer a cobertura respectiva. Se for um administrador, de direito ou de fato (aqui, a depender do conteúdo do contrato), deverá haver cobertura, o que autoriza o intérprete a passar para o segundo vetor, qual seja, o temporal.

Vetor temporal

Também dispondo de uma considerável dose de pragmatismo, o vetor temporal decorre da modalidade de contratação comumente adotada pelo mercado segurador, tanto no Brasil quanto no exterior, para comercializar essas apólices.

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Fazendo aqui um breve percurso histórico, os seguros, em geral, sempre foram contratados à base de ocorrência. Nesta forma de contratação, se o sinistro (um incêndio, por exemplo) ocorresse durante o período de vigência da apólice, sob a perspectiva temporal, haveria cobertura. Esse mesmo raciocínio se afigurava perfeito para sinistros em ramos como automóvel, vida, entre outras espécies dos chamados ramos elementares, e isto por uma razão singela: a identificação do fato gerador de cobertura, no tempo, afigurava-se objetiva.

Nos anos 50/60 do século passado, especialmente nos Estados Unidos, o escândalo a propósito do uso da talidomida (medicamento que, tempos mais tarde, gerou o nascimento de fetos com má formação congênita), e também o uso do amianto na construção civil, forçaram uma mudança radical em termos de exposição do mercado segurador, uma vez que os sinistros se materializavam muito tempo depois de esgotada a vigência dos seguros respectivos.

Diante de uma exposição enorme e descontrolada, as seguradoras, então, introduziram, em adição à contratação à base de ocorrência, a contratação à base de reclamação. Ao invés de examinar o fato gerador (o incêndio, anteriormente mencionado), agora a análise passaria a concentrar-se na data em que o terceiro formulasse a reclamação contra o segurado. Se ela ocorresse durante o período de vigência, ou, também, no período adicional (complementar ou suplementar), o sinistro estaria coberto.

A finalidade da introdução da contratação à base de reclamação foi mesmo delimitar no tempo a exposição das seguradoras, considerando que, principalmente nos seguros de responsabilidades (D&O, E&O, cyber, RC geral, entre outros), reconheceu-se a dificuldade de identificar quando e se os terceiros apresentariam as suas reclamações. Além dos períodos adicionais, voltados ao futuro, isto é, depois de esgotada a vigência da apólice, há também de considerar o período de retroatividade da apólice e a data de conhecimento dos fatos geradores pelo segurado, dirigidos ao passado, isto é, antes de concluída a contratação.

Após a introdução da contratação à base de reclamação, surgiu uma modalidade ainda mais refinada, qual seja, a contratação à base de reclamação com notificação. A finalidade da notificação foi, diante de expectativas de sinistro (e não sinistros propriamente ditos), possibilitar que os segurados as avisassem às seguradoras, vinculando as apólices em questão mesmo se os sinistros respectivos fossem reclamados em apólices posteriores. Trata-se de um ferramental criado a fim de gerar ainda mais informações pelas seguradoras a respeito da sinistralidade que se avizinha e gerar proteção aos segurados conscientes de seus possíveis fatos geradores.

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A identificação das expectativas de sinistros e dos sinistros, no tempo, nem sempre é fácil, considerando que, em não raras vezes, os fatos são complexos, afigurando-se difícil precisar, com exatidão, quando ocorreram e se tornaram de conhecimento dos segurados. Seja como for, ainda se nota uma carga considerável de pragmatismo nesta análise.

Vetor mais complexo

O terceiro vetor, depois de cumprido o exame dos dois primeiros — subjetivo e temporal — é o causal, possivelmente o mais complexo de todos. A doutrina societária, de maneira uníssona, reputa difícil a definição do que seja um ato de gestão. Veja-se, a propósito, a lição de Marcelo Vieira von Adamek[1]:

“Logo, a irresponsabilidade do administrador tem como pressuposto a prática de ‘ato regular de gestão’, impondo a necessidade de definir essa expressão, cujo alcance não foi expressamente posto na atual lei acionária nem na anterior (DL n. 2.627 I 40, artigo 121).

A noção antagônica da expressão ‘ato regular de gestão’ deve compreender-se logicamente na expressão antitética ‘ato irregular de gestão’, como verso e reverso da mesma moeda. E, como necessariamente os únicos parâmetros válidos para a aferição da regularidade do ato do administrador devem ser encontrados na lei ou no estatuto (ato-norma), segue-se que irregular será o ato de gestão praticado com violação da lei ou do estatuto; também o será o ato praticado fora dos limites das atribuições de seu cargo, já que semelhante atuação, por evidente, contrastará igualmente com a lei e com o estatuto.”

Ora, se os seguros D&O são voltados à cobertura dos atos de gestão, a dificuldade para defini-los acaba, consequentemente, também gerando dificuldade para entender o que esse seguro verdadeiramente cobre. E, nessa toada, cabe ao estudioso aprofundar o seu exame não em questões próprias do direito dos seguros, mas do direito societário, mais especificamente numa disciplina que, pelos comercialistas, é reputada uma das mais instigantes nesse ramo do direito, qual seja, a responsabilidade dos administradores.

A Susep, por intermédio da Circular 637/2021, em seu artigo 12[2], ilumina a questão em torno da cobertura para o ato de gestão, mas padece da dificuldade referida ao não o conceituar. Gerir uma empresa pode compreender uma miríade de afazeres os mais diversos e, às vezes, até mesmo certas obrigações de não fazer, como, e.g., abster-se da prática de uma conduta anticoncorrencial.

Nessa altura, todo o capítulo dedicado à responsabilidade dos administradores, previsto nos artigos 153 a 159 da Lei nº 6.404/1976 (lei das S.A.) deve ser trazido à baila. Para facilidade de análise, e respeitando os estreitos limites dessa coluna, dois são os principais deveres a serem observados pelos administradores, quais sejam, diligência (LSA, artigo 153) e lealdade (artigo 155).

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Contratos de seguro D&O, sob a perspectiva causal (o terceiro vetor), estarão voltados a violações ao dever de diligência porque a sua antítese é a negligência que, no direito civil, remete à conduta culposa. E é justamente porque nós, seres humanos, cometemos erros (culpa), que contratamos os seguros de responsabilidades (entre eles, os seguros D&O).

Já se vê mecânica completamente diferente quando se tem em mente o dever de lealdade (LSA, artigo 155), cuja antítese é a deslealdade e, no direito civil, o dolo, este, reconhecidamente, o inimigo número um dos seguros — leia-se, a propósito, o artigo 762 do CC[3].

Exemplificando, violações ao dever de lealdade são materializadas pelo insider trading, um dos pecados capitais no âmbito do mercado de bolsa de valores, por representar uma traição à confiança depositada pela sociedade no administrador que, a um só tempo, também viola a fidúcia de investidores e de acionistas como um todo.

Os três vetores referidos — subjetivo, temporal e causal — são fundamentais à análise de cobertura nos seguros D&O.


[1] ADAMEK, Marcelo Vieira von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A (e as ações correlatas). São Paulo: Saraiva, 2009, p. 212.

[2] Art. 12 da Circular Susep 637/2021. “Além de outras exclusões previstas em lei, o seguro de RC D&O não cobre os riscos de responsabilização civil dos segurados em decorrência de danos causados a terceiros, quando fora do exercício de seus cargos no tomador, em suas subsidiárias ou em suas coligadas. Parágrafo único. Devem ser enquadrados no ramo de seguro de Responsabilidade Civil Geral, os seguros destinados a garantir apenas o interesse específico das pessoas jurídicas responsabilizadas pelos danos causados a terceiros, em consequência de atos ilícitos culposos praticados por pessoa física, que exerça ou tenha exercido cargos executivos de administração ou de gestão”.

[3] Art. 762 do CC. “Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro.”

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