O assunto de que se tratará neste breve escrito tem grande importância prática, afetando a vida de inúmeras pessoas. Há uma norma, passível de críticas, que estava no inciso III, do artigo 427, do Código Civil de 1916, e que foi repetida no Código Civil de 2002: trata-se da regra que exige autorização do juiz, em casos de tutela e curatela, para aceitação de “heranças, legados ou doações, ainda que com encargos” — o inciso II do artigo 1.748 do Código Civil em vigor. A norma indica que inclusive nas doações puras e simples seria necessária a autorização judicial (quanto a isso, a codificação anterior era mais clara em seu artigo 427, inciso III: “Acceitar por elle heranças, legados ou doações, com ou sem encargos”).
No tocante à doação em favor de pessoas absolutamente incapazes, o Código Civil, no artigo 543, estabelece uma dispensa de aceitação, “desde que se trate de doação pura”. No Código Civil de 1916 a redação era outra: “Art. 1.170. Às pessoas que não puderem contratar, é facultado, não obstante, aceitar doações puras”. Discutia-se se a norma se voltava aos absolutamente incapazes, aos relativamente incapazes, ou a ambos. [1]
O que se deseja destacar é o fato de que, neste ponto, o Código parte do pressuposto de que a doação pura e simples não pode gerar nenhum tipo de prejuízo ao donatário, como afirmavam expressamente Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda. [2] Esta presunção, embora questionável, também não será posta em causa neste breve escrito: o que se coloca em questão é a coerência do nosso sistema.
Incoerência
A incoerência pode ser demonstrada com um caso comum na prática. Imagine-se que se pretenda fazer doação pura e simples a uma pessoa relativamente incapaz em razão de curatela (segundo a literalidade da lei vigente, a incapacidade de todos os maiores de idade seria relativa). Neste caso, o artigo 1.774 do Código Civil estabelece que se aplicam à curatela as disposições concernentes à tutela. Isso atrairá a incidência do artigo 1.748, relativo à tutela, que dispõe que “compete também ao tutor, com autorização do juiz: II — aceitar por ele heranças, legados ou doações, ainda que com encargos”.
Como se pode notar, o artigo indica que a aceitação de doação, ainda que pura e simples, por parte de pessoas curateladas, dependeria não apenas da assistência de um curador, mas também de autorização judicial. Chega-se ao ápice da incoerência: se há doação em favor de absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação; porém, havendo tutela ou curatela, o relativamente incapaz não poderia aceitar uma doação pura e simples, nem mesmo com a assistência de seu tutor ou curador — exigir-se-ia, ainda, autorização judicial. Neste caso, supõe-se tanta possibilidade de prejuízo, que não bastam os juízos do relativamente incapaz e do seu curador: impõe-se, mais, a análise de um juiz, movimentando-se o nosso já tão assoberbado Poder Judiciário. E o pior: onera-se, sobremaneira, o incapaz.
Embora a norma pareça merecer urgente reparo, não houve proposta para a sua modificação no relatório final apresentado pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Pergunta-se: qual a razão para se exigir a aceitação expressa, mais a assistência do curador, mais a autorização judicial, quando, para o absolutamente incapaz, a própria aceitação é dispensada?
No estado do Rio Grande do Sul, a Corregedoria Geral de Justiça editou uma norma interessante, a pretexto de conciliar os artigos 1.748 e 543 do Código Civil, estabelecendo no artigo 547 de sua Consolidação Normativa Notarial e Registral (CNNR-RS):
“§1º. É dispensada a prova de aceitação nas doações puras feitas em benefício de absolutamente incapazes. Os relativamente incapazes poderão aceitá-las. Em qualquer caso, porém, não consistirá óbice ao registro a inexistência de representação ou assistência destas pessoas no título apresentado. (…) §3º. Não se exigirá alvará judicial para a realização de doação pura e simples para menores, na forma do artigo 543 do Código Civil.”
Acredita-se que o artigo 1.748 deve ser reformado, passando a exigir autorização judicial apenas quando houver encargo. Aliás, a atividade dos notários poderia ser mais bem aproveitada, deixando-se ao Tabelião de Notas a incumbência de aferir se há risco de prejuízo ao incapaz: assim, exigir-se-ia em tais casos a escritura pública e, havendo verdadeira contraprestação, disfarçada de encargo, o Tabelião recusaria a prática do ato.
Este breve escrito não poderia ser finalizado sem uma análise, ainda que superficial, da origem da norma que exige a autorização judicial para aceitação de heranças, legados ou doações. Pontes de Miranda [3] indica como fonte desta regra uma lição do Conselheiro Lafayette, sobre a norma do Direito anterior ao Código Civil, de que compete ao tutor, com dependência de autorização do juiz, “5. Aceitar herança a benefício de inventário”. Comentava Lafayette, em nota de rodapé: [4]
A addição da herança é um quase contracto que póde trazer e ordinariamente traz onus, ainda quando a herança é deferida sem imposição de condições. (Cfr. Mourlon cit., n. 1.190)
A liquidação do activo e passivo importa trabalhos e despezas que talvez o restante dos bens não compense.
Note-se, porém, que a crítica de Lafayette era voltada à herança, não tendo relação com a doação. Os melhores comentários críticos que este estudante conseguiu encontrar, quanto ao tema, foram os de Estevam de Almeida, no volume VI da célebre coleção Manual do Código Civil, coordenada por Paulo de Lacerda, que, depois de destacar que o artigo 506 do projeto primitivo só tratava da aceitação de “doação e legados sujeitos a encargos”, ensinava: [5]
Pelo projecto primitivo, no seu nº 7, a acceitação de legados e doações, pelo pupillo, dependia de autorização judicial, si eram sujeitos a encargo. A revisão extra-parlamentar e a da Camara exigem a autorização judicial na acceitação de heranças, doações e legados, ainda que não sujeitos a encargo. Dir-se-á que é a lição de Lafayette (…). Mas Lafayette refere-se á acceitação de herança, não podendo importar em onus, embora deferida sem imposição de encargo. O mesmo não parece se possa dizer do legado não gravado, da doação pura. Um luxo de cautela, tal exigencia.
Em conclusão, parece contraditório considerar, no regramento da tutela e da curatela, que a doação — ainda que pura e simples — é tão perigosa para o donatário, a exigir intervenção judicial, enquanto no regramento do contrato de doação o mesmo ato se presume inofensivo. Acredita-se que este “luxo de cautela” deveria ser removido do Código Civil, por configurar um obstáculo excessivo para os incapazes, especialmente para as pessoas com deficiência.
* esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
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[1] Para Pontes de Miranda, não importava se a incapacidade era absoluta ou relativa: em qualquer dos casos, o ato-fato de recepção da coisa doada importava aceitação (Tratado de Direito Privado. Tomo XLVI. 3. Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, §5.016, 2, p. 225-228 – neste local, chega a defender que a desnecessidade de assentimento dos pais, tutor ou curador do relativamente incapaz, quando não há encargo, seria “comum aos sistemas jurídicos”, embora afirme que não haveria contradição entre os artigos 427, III e 1.170). Ainda segundo o tratadista, esta regra adveio do art. 626 do Código Civil espanhol (Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 286-287). Porém, este artigo só exige a intervenção de “representantes” em caso de doações “condicionais ou onerosas”.
[2] PONTES DE MIRANDA, Fontes e Evolução…, cit., p. 287; BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. Vol. IV. 6. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1942, p. 335 e p. 336, n. 2).
[3] Tratado de Direito Privado. Tomo IX. 2. Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, [s.d.], p. 294 (§1.021, 5).
[4] PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Typ. da Tribuna Liberal, 1889, p. 284 e nota 4 (§ 153 – em outras edições, nota 103).
[5] ALMEIDA, Estevam de. In. Manual do Código Civil Brasileiro: Direito de Família (Arts. 330-484) – Vol. VI. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1925, p. 457 (transcrito como consta no livro).
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