Interpretação de textos normativos tributários: quebra-cabeça ou caixa de Lego?

Ao longo deste semestre letivo, no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tive uma alegria especial: dividir a matéria com o professor Marco Aurélio Greco. Foram aulas fantásticas, nas quais os alunos e alunas da Uerj — e vários convidados e convidadas, inclusive de fora do Rio de Janeiro — tiveram a rara felicidade de ter o Marco como professor.

Logo no primeiro dia, Greco fez uma pergunta para a turma que trazemos agora para reflexão de nossos leitores e leitoras: os textos normativos — no caso, os textos normativos tributários — são quebra-cabeças ou caixas de Lego?

A teoria tributária tradicional se desenvolveu, em larga medida, tendo como ponto de partida a compreensão de que textos normativos são quebra-cabeças. Em outras palavras, por mais complexa que seja a interpretação de um determinado texto, ao final haverá apenas uma imagem que aquele conjunto de peças é capaz de formar.

Esta posição sobre a natureza da interpretação de textos normativos redunda na visão de que cada texto ou cada conjunto de textos normativos encerra uma única norma que seria revelada pelo intérprete.

Partindo deste modelo de textos normativos como quebra-cabeças, o intérprete não teria qualquer possibilidade de interferência sobre a determinação da imagem final. Na verdade, a imagem do quebra-cabeça teria sido integral e absolutamente definida por seu criador.

Percebe-se que é possível traçar uma comparação entre a figura do quebra-cabeça e certas interpretações sobre os princípios da legalidade e da tipicidade, que pautaram e, em grande medida, ainda pautam, parcela relevante da doutrina tributária.

Origens

O Direito Tributário brasileiro se estruturou sobre uma forma de deificação do papel do “criador do quebra-cabeça”, o legislador. As origens dessa teoria no Brasil podem ser traçadas desde a publicação do livro “Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação”, de Alberto Xavier [1], mas as lições do saudoso professor proliferaram e foram amplamente absorvidas pela doutrina tributária pátria, repercutindo, inclusive, em decisões dos tribunais superiores.

Esta abordagem teórica focada na atuação do “criador do quebra-cabeça” resultou numa específica visão do princípio da segurança jurídica, que se realizaria, essencialmente, no exercício da função legislativa, o que teve como consequência — ou como ponto de partida — uma grande desconfiança dos órgãos de aplicação do Direito, a quem somente seria dado montar o quebra-cabeça, sem jamais interferir na imagem pré-definida pelo legislador. [2]

Feliz ou infelizmente, contudo, textos normativos não são como quebra-cabeças. Como nos alerta Marco Aurélio Greco, eles são caixas de Lego. Ou seja, eles não permitem a construção de uma única imagem ou forma, absolutamente pré-determinada. Textos normativos podem admitir uma variedade de imagens ou formas que são criadas a partir de suas peças.

Consequência

Uma primeira consequência de admitirmos que textos normativos são como peças de Lego é estabelecermos que, ao contrário do que afirmam alguns autores, eles jamais possibilitarão “qualquer” interpretação. Mesmo que uma caixa de peças de Lego possibilite a criação de uma, duas, três, ou mais formas, haverá sempre um número finito de possibilidades de combinações, sendo certo que as peças são, em si, uma limitação à atuação do montador — o intérprete.

Consequentemente, ao reconhecermos que textos normativos são como caixas de Lego, somos forçados a aceitar que o criador do Lego, ao contrário do criador do quebra-cabeça, não estabeleceu exatamente, nem forma absoluta, a imagem final. O montador, ou seja, o intérprete, interfere no processo de criação de formas a partir de peças, em outras palavras, no processo de criação de normas jurídicas a partir de textos normativos.

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Se nós, como intérpretes, nos deparamos com um texto ou um conjunto de textos normativos que se aplicam a determinada situação de fato, mesmo que haja uma variedade de normas que possam ser criadas, considerando valores, finalidades, questões históricas, etc., haverá alguma margem de conformação atribuída ao intérprete, mas ela não será ilimitada.

Essa forma de considerar o processo de interpretação dá outra relevância ao intérprete, em especial ao órgão de aplicação do Direito. Enquanto no modelo do quebra-cabeça cabe ao órgão de aplicação apenas revelar a imagem que já estava lá, no modelo da caixa de Lego o órgão de aplicação passa a ter uma função criativa, possuindo uma liberdade de conformação que pode ser ainda maior dependendo do tipo de Lego que se encontre na caixa — tipos, conceitos mais ou menos indeterminados, etc.

Não é por outra razão que Greco afirma que “na relação entre intérprete e texto, o que se interpreta efetivamente e o que se descreve não é o ‘mundo do texto’ nem um mundo ‘atrás do texto’, mas o ‘mundo diante do texto’. Interpretação é, em última análise, a expressão de como o intérprete, através do texto, vê e constrói seu próprio mundo, seu ambiente num determinado contexto. Em semiótica, estaríamos no nível pragmático”. [3] (destaque nosso)

Note-se que ao reconhecermos que textos normativos são como caixas de Lego, não estamos renunciando à segurança jurídica. De maneira alguma. Como já apontamos, verificar que o órgão de aplicação tem alguma margem de conformação — inclusive em campos como o Direito Tributário e o Direito Penal — não equivale a estabelecer que o intérprete não está vinculado ao texto constitucional ou à lei — ou limitado pelas combinações possíveis da caixa de Lego.

Por outro lado, não nos parece que a crença ingênua na noção de que os textos normativos seriam quebra-cabeças aumente a segurança jurídica, contribuindo, isso sim, para que os contribuintes tenham expectativas que não possam ser cumpridas pela lei.

Forma

Um aspecto importante que tem que ser ressaltado é que compreender textos normativos como uma caixa de Lego não significa que, em algum momento, mesmo que a sua interpretação tenha gerado diversas “formas”, não seja possível estabelecer uma “forma” ou “imagem” específica bem definida. Esta é, de fato, a função do órgão de aplicação do Direito, determinar a forma específica que será considerada a representação válida de um determinado texto ou conjunto de textos normativos.

Nada obstante, essa forma específica não será, necessariamente imutável. Afinal, o texto ou os textos interpretados seguem contendo diversas “formas” em potência que podem ser criadas pelo intérprete. Consequentemente, não deve causar espanto quando o órgão de aplicação do Direito, após ter montado determinada forma com aquelas peças disponíveis, volta à caixa e constrói outra forma.

Assim sendo, é possível que, após fixar a norma construída a partir de um texto ou conjunto de textos, o órgão de aplicação do Direito volte a estes e, desta vez, arranjando de forma diversa os vários blocos de construção, chegue a uma segunda interpretação, diversa da primeira.

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Vejamos, por exemplo, o caso do conceito de serviços para fins da interpretação da regra constitucional que atribui competência para os municípios instituírem o ISS.

Até 2001, o Supremo Tribunal Federal tinha, em algumas oportunidades, decidido que a locação seria tributável pelo ISS, pois o conceito de serviços seria “econômico”, [4] posição que remontava à doutrina de Bernardo Ribeiro de Moraes. [5]

Como sabemos, pela maioria simples de seis votos a cinco, em 2001, [6] o STF passou a definir serviço como obrigação de fazer, em contraposição à obrigação de dar. Em anos seguintes, o Tribunal começou a mitigar a aplicação dessa definição, em casos não diretamente relacionados à pura e simples locação de bens, como o referente à tributação de franquias, de planos de saúde [7] e de licenciamento de software, [8] trazendo conceitos como o de “atividades mistas”. [9]

Quando o Supremo muda de posição sobre a interpretação de certos dispositivos, ou sobre a definição de determinados termos, muitas vezes vemos reações, como se a Corte estivesse atuando fora dos limites da Constituição. Essa é uma percepção que nos parece equivocada. Afinal, os textos normativos são caixas de Lego, que permitem mais de uma combinação, todas elas legítimas.

Reitere-se que o reconhecimento de que textos normativos seriam como caixas de Lego não atribuem ao intérprete um poder arbitrário e ilimitado para criar “formas” com as peças disponíveis. Ademais, a legitimidade da interpretação do órgão de aplicação do Direito vai exigir uma motivação que justifique, à luz do texto, dos valores, dos princípios, dos fins, do contexto, das demais normas, da história, etc. a maneira como as peças foram montadas. [10]

É interessante observarmos que não há uma novidade nesses comentários. De fato, vamos encontrar uma imagem semelhante à da caixa de Lego na moldura de Hans Kelsen.

Em verdade, aspecto importantíssimo da teoria da interpretação kelseniana é a indeterminação dos textos normativos, da qual decorre a ideia de que estes são molduras, dentro das quais podem ser identificadas mais de uma norma jurídica. Em suas palavras:

“Se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que — na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar — têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito — no ato do Tribunal, especialmente. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa — não significa que ela é a norma individual, mas apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral.” [11]

Ao afirmar que o texto legal é apenas uma moldura dentro da qual se encontram diversas normas jurídicas passíveis de serem criadas pelo órgão de aplicação do Direito, Kelsen rejeita a possibilidade de que se desenvolva qualquer método jurídico capaz de definir qual seria a “norma jurídica correta” extraível do texto. [12]

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Essas reflexões, mesmo que não tragam uma novidade ou uma abordagem essencialmente nova do tema, são importantes para chamar nossa atenção para o fato de que é ingênua a pretensão de que haja uma única norma extraível a partir de textos normativos. Consequentemente, a segurança jurídica não está exclusivamente no texto constitucional ou legal, mas igualmente na sua interpretação/aplicação pelos órgãos de aplicação do Direito.

Ademais, a flutuação de interpretações é natural e, em certa medida, até esperada — ou desejada —, inclusive para que elas considerem mudanças ocorridas no contexto fático. Por fim, deve-se reconhecer que a atuação do órgão de aplicação, criando formas com as peças da caixa de Lego, não é ilegal nem inconstitucional. Estará dentro das possibilidades legitimamente postas pelo ordenamento jurídico.

Naturalmente, essas transições de interpretação devem ter em conta a proteção da segurança jurídica, do Estado e do contribuinte. Consequentemente, é imprescindível que mudanças interpretativas dentro da moldura sejam consideradas alterações que atraiam a aplicação de regras como a irretroatividade e, a depender do caso concreto, até mesmo da anterioridade, que devem passar por uma releitura a partir de suas finalidades — e não apenas de aspectos meramente formais.

Que este breve texto sirva de singela homenagem ao professor Marco Aurélio Greco e agradecimento pela generosidade com que compartilhou seus conhecimentos conosco neste semestre.

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[1] XAVIER, Alberto. Os Princípios da Legalidade e da Tipicidade da Tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. Sobre a relevância da obra do Professor Alberto Xavier no desenvolvimento do princípio da tipicidade no Brasil, ver: ROCHA, Sergio André. A Origem do Princípio da Tipicidade no Direito Tributário Brasileiro. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 50, 1º quadrimestre 2022, p. 399-430.

[2] Para uma crítica a esta visão que exacerba, segundo vemos, o papel do Poder Legislativo como assegurador da segurança jurídica, ver: ROCHA, Sergio André. Da lei à decisão: a segurança jurídica tributária possível na pós-modernidade. Revista Fórum de Direito Tributário, Belo Horizonte, n. 127, jan./fev. 2024, p. 51-78.

[3] GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 507.

[4] Ver, por exemplo, as decisões proferidas nos Recursos Extraordinários nº 112.947 e nº 115.103.

[5] MORAES, Bernardo Ribeiro de. Doutrina e Prática do Imposto Sobre Serviços. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. p. 42.

[6] Ver a decisão proferida no Recurso Extraordinário nº 116.121 e a Súmula Vinculante nº 31.

[7] Ver a decisão no Recurso Extraordinário nº 651.703.

[8] Ver, por exemplo, as decisões nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 1.945 e 5.659, e no Recurso Extraordinário nº 688.223.

[9] Ver a decisão no Recurso Extraordinário nº 603.136.

[10] Sobre a função de legitimação da interpretação, ver: ROCHA, Sergio André. Interpretação dos Tratados para Evitar a Dupla Tributação da Renda. 2 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2013. p. 124-130.

[11] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. Coimbra: Arménio Amado, 1984. p. 467.

[12] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. Coimbra: Arménio Amado, 1984. p. 468.

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