Afinal, as músicas do MC Poze do Rodo e do gênero NSBM (Nazi Black Metal) estão no contexto legítimo da garantia constitucional da liberdade de expressão?
A última coluna [1] terminou com essa pergunta, que agora retomo. Passeando também pela condenação do humorista Léo Lins.
A livre manifestação do pensamento e da atividade artística são garantias constitucionais (artigo 5°, IV e IX). Não são garantias absolutas. Creio que, até aqui, estamos de acordo, não? Pois bem, parece, então, que o problema reside no limite dessas garantias.
Vamos falar de preconceito e discriminação. Existem diversos modos de aproximação teórica a esses valores. Eu irei usar o conceito de poder simbólico proposto por Pierre Bourdieu [2]. Ele entende a ideologia como um instrumento de dominação por meio de produções simbólicas hegemônicas assimétricas. A característica necessária do exercício de todo poder simbólico é a sua invisibilidade, ou seja, só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem [3].
Este juízo de valor acerca da clandestinidade do poder simbólico, dito por Bourdieu, permite denominar a relação de sujeição oriunda de seu exercício como violência simbólica, ou seja, a imposição da apreensão de uma ordem estabelecida como natural (ortodoxia) por meio da imposição mascarada de sistemas de classificação e de estruturas mentais objetivamente ajustadas às estruturas sociais.
Bourdieu considera o sistema jurídico como um sistema simbólico de regulação e transformação social: a coação formal oriunda do direito possui uma eficácia simbólica capaz de levar ao reconhecimento social da vigência de algumas normas [4]. Nesse sentido, o direito, instrumento de normalização por excelência, enquanto discurso intrinsecamente poderoso e provido dos meios físicos com que se faz respeitar, acha-se em condições de passar, ‘com o tempo’, do estado de ortodoxia, crença correta explicitamente enunciada como dever-ser, ao estado de doxa, adesão imediata ao que é evidente, ao normal, como realização da norma que se anula enquanto tal na sua realização [5].
Isso é bem amplo. Interessa-me apenas a tomada de posição no sentido de que o direito (norma e/ou pena?) comunica. É um sistema simbólico de reafirmação de valores culturalmente consagrados. Na minha visão pessoal, uma comunicação voltada ao passado [6] que assume uma função de desmascarar a invisibilidade do poder simbólico assimétrico que pode ser desempenhado por uma conduta criminosa.
A maior parte dos crimes possui uma representação de desvalor bem visível (um roubo ou um estupro, por exemplo). Mas os valores que o direito penal seleciona como bens jurídicos carentes de proteção possuem uma dinâmica cultural peculiar. Variam com o tempo. Amoldam-se às necessidades de uma dada sociedade. Por isso é que o direito penal possui legitimidade, sim, para criar bens jurídicos que não necessariamente contam com um desvalor ético-social de amplo reconhecimento. É que sustentava Max Ernst Mayer em 1903 [7].
Preconceito e discriminação talvez sejam dois ótimos exemplos dessa invisibilidade que vem sendo cultural e gradualmente descortinada. Minorias ou grupos carentes de proteção institucional – sob as rubricas de raça, cor, etnia, nacionalidade, procedência nacional, deficiências físicas ou psíquicas, orientação sexual e idade – vêm, há muitas décadas, recebendo atenção criminal especializada. Apenas para citar alguns exemplos: Leis n° 7.716/89, 10.741/03, 13.146/15, 14.532/23 etc. Isso sem falar-se na (questionável quanto ao meio; legítima quanto ao fim) decisão do STF na ADO n° 26 e MI n° 4.733, reconhecendo que a homofobia e a transfobia também são alcançadas pela Lei n° 7.716/89.
Há, portanto, um claro movimento legislativo e judicial transmitindo o recado à sociedade de que o preconceito e a discriminação não serão mais tolerados. As coisas mudaram. A violência simbólica que decorre do preconceito, outrora invisível, é posta sob um holofote. Uma sociedade que pretenda ser democrática tem de se adaptar a isso, queira ou não queira. Não há mais espaço para o “mas” que antecede a fala de um racista qualquer. Portanto, um dos limites da livre manifestação do pensamento e da produção artística reside naquela área onde se inicia a tutela contra a discriminação.
Antissemitismo
Antissemitismo é o preconceito contra povos de línguas semíticas, de raiz afro-asiáticas, como o hebraico, o árabe, o maltês etc. São línguas faladas por qualquer pessoa de origem semita (árabes, etíopes, assírios, judeus etc.).
A narrativa do século 20, especialmente fomentada pela Segunda Guerra Mundial, apropriou-se da expressão para representar apenas o preconceito contra o povo que segue a religião judaica, excluindo do seu alcance outros povos. E pior: transformou a religião judaica automaticamente na nacionalidade israelense.
Seja a rubrica que for, certo é que, no Brasil e em boa parte do mundo, qualquer etnia, nacionalidade ou religião estão juridicamente protegidas contra a discriminação. Não há espaço para distinção entre preconceito contra judeus ou árabes, inclusive palestinos.
Siegfried Ellwanger escreveu um livro (Holocausto: Judeu ou Alemão?) em que sustentava que as atrocidades contra judeus eram legítimas. Os alemães é que estariam se defendendo de uma violência pretérita (impossível não pensar numa analogia, né?!). Ele tentou sustentar que isso seria uma opinião. Não é. É uma fala preconceituosa porque nega um evento histórico. Há quem diga que não existem fatos; apenas versões. Sim, mas isso tem um limite. E a humanidade conheceu esse limite quando o exército russo libertou Auschwitz-Birkenau. Negar isso publicamente é incitar o preconceito. Por isso é que o autor do livro foi corretamente condenado pela prática do crime definido no artigo 20 da Lei n° 7.716/89 (v. HC n° 82.424-STF).
É o mesmo que ocorre quando o Nokturnal Mortum, grupo de NSBM, canta Heiled be the Heroes:
“White race would be the highest goal
The warriors of Galychina
Is an? Avaging? Blade in strong Slavonic hands
You were stoped one step before the victory
Now it’s our turn to realize your dreams
Betrayal stood upon your way
Red butchers destroyed our land
And now Jewisk pest dominates”
Não está no alcance da liberdade de expressão cantarolar uma música enaltecendo a raça branca e a peste judaica. São versos que incrementam assimetrias. O conceito kantiano de liberdade interna, descrito no Metafísica dos Costumes, até permite aceitar que alguém possa pensar isso. Mas não é livre para falar o que pensa. Aqui inicia algo chamado liberdade externa, uma manifestação concreta de poder simbólico outrora assimétrico e invisível que, atualmente, não tem mais espaço democrático. Daí a legitimidade da operação policial ocorrida em Almirante Tamandaré (PR), em 2023, contra quem disseminava material (inclusive discos) de conteúdo nazista [8].
Humor
Eu comecei a lecionar em 1997. Minhas aulas eram bastante divertidas, segundo lembram alguns alunos da época. Aos poucos, foram ficando sérias. Essa mudança de postura é o resultado de um processo inacabado de constante revisão do humor como instrumento de adesão. Algumas brincadeiras, algumas piadas que antigamente seriam tratadas como “normais” perderam gradualmente espaço à medida em que o riso foi percebido como uma forma de violência simbólica. Há quem use os dedinhos em forma de aspas para reclamar que isso é politicamente correto. Não, meu caro. Só quem está sempre alerta para se desgarrar dos grilhões do preconceito que permeou nossa educação é que se dá conta de como é difícil tomar cuidado-com-o-outro. Esse processo muitas vezes falha inclusive para quem está comprometido com alteridade. Daí a necessidade de estarmos sempre atentos à comunicação de nossas ações e falas.
Numa cena antiga dos Trapalhões, Dedé Santana e Zacarias consertavam a suspensão de um carro quando gritam procurando o macaco. Mussum saiu de baixo do veículo dizendo que ele estaria ali, mas “macaco é a tua mãe” [9].
Quem tem cabelo branco deve lembrar do clássico Banzé no Oeste (1974), de Mel Brooks. Uma sátira do velho oeste que se passa numa cidade atordoada porque um negro assumiu como xerife. “Você não vê que ele é crioulo?”, pergunta um dos personagens.
Temos aí dois bons exemplos de um humor datado. Obras artísticas épicas que usavam o humor como adesão a um processo de violência simbólica (por isso, assimétrica) pelo preconceito então invisível. A diferença entre o riso de antigamente e o de hoje é que agora ele tem de trazer consigo algum constrangimento. Estamos passando por um processo cultural de faxina escravagista, que é sofrido, gradual e que merece constante atenção.
Léo Lins foi condenado a mais de oito anos [10] por dizer em apresentações de stand up frases como: nordestinos tem “aparência primitiva” e parecem “caranguejo”; “velho gordo, gay e negro!”; “Sou gordo, adoro comer e não gosto de fazer exercício. Como vou emagrecer? Pegando AIDS! (…) Essa piada pode parecer um pouco preconceituosa. Porque é”; “O negro não consegue arrumar emprego!. Mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim! Aí difícil ajudar!. Aliás, se o Dia da Consciência Negra é feriado pelos negros, Quarta-Feira de Cinzas devia ser judeu!” Uma metralhadora giratória que vomita preconceito por todos os lados. O público ri? Sim. Muitos vão lá para ouvir isso. Porque desejam que Léo Lins fale exatamente aquilo que eles pensam e, às vezes, até repetem. Pode ser engraçado? Para quem se dá conta dessa cultura preconceituosa que assombra nosso crescimento, a resposta é não. Mesmo que nosso constrangimento muitas vezes não seja automático. E assim o é porque não estamos prontos.
A imensa maioria dos humoristas criticou a condenação. Feriria a liberdade de expressão, dizem.
Hélio de la Peña fez um vídeo dizendo ser um absurdo prender Leo Lins enquanto os fraudadores do INSS estão livres. O que uma coisa tem a ver com outra?
Rodrigo Marques publicou no Instagram um corte do seu show em que diz que a fala de Leo Lins é arte. Quem não quiser ouvir, não vá ao show. Ele, o comediante, estaria livre para fazer qualquer tipo de humor, mas o público, não. O público não pode dizer qualquer coisa.
Só quem deseja um alvará de soltura em branco pode pensar assim. Qual a diferença entre uma piada contada num show de stand up e outra numa sala de aula ou num grupo de WhatsApp? Só no primeiro caso a arte é livre? Então arte pressupõe remuneração? Bem, se é assim, então eu posso vender uma revista em quadrinhos com imagens de abuso sexual contra crianças, não? Ou então vender fotos de estupro. Seria o mesmo que dizer: não gostou do que Siegfried Ellwanger escreveu? Não compre o livro.
Ora, esse crachá de liberdade irrestrita que a galera do stand up pretende obter tem o objetivo de não os obrigar a (re)pensar o seu trabalho dentro dos limites de nossa cultura atual. Especialmente quando avançam naquelas áreas sensíveis em que minorias ou grupos de pessoas seguem violentadas pelo preconceito. Essas pessoas muitas vezes riem sem se dar conta de que estão sendo agredidas ou de que estão agredindo. Sim, é isso que quer dizer poder simbólico, de que nos fala Bordieu.
É certo que o humor muitas vezes flerta com o preconceito. Mas é possível que esse flerte esteja no limite do aceitável. Uma dica: se gerar dúvida sobre a repercussão da fala, talvez a corda esteja esticada demais. Conheço muitos humoristas que fazem um humor inteligente sem precisar violentar parte de seu público. Vejam as piadas de Marcito Castro no Instagram: ele brinca com pobres, velhos, gaúchos etc. sem ser preconceituoso.
Também é possível que o humor passeie por temas sensíveis, porém exercendo uma crítica legítima. Uma piada debochando de padres pedófilos ou de nazistas certamente não causará indignação, pois estará instrumentalizando o humor para redução de assimetrias. No fundo, o humor estará transmitindo uma mensagem contra o preconceito.
Eu sei que esses limites estão num terreno pantanoso a ser explorado. Adensar corretamente a legitimidade de manifestações públicas (artísticas ou não) é um processo complexo e ainda a ser explorado. Mas se alguém deseja comunicar-se nessa área sensível, é melhor tomar cuidado redobrado para que sua fala não vire discriminação. Tatá Werneck contratou uma consultoria especializada “para não errar mais” [11]. Uma solução simples e viável para esse pessoal que fatura bem com seus shows. A questão é que isso depende de alguém querer não escorregar. Quem deseja seguir sendo preconceituoso relutará em tomar uma precaução. Por tudo isso, é sempre bom lembrar que os crimes de preconceito, assim como qualquer outro delito, muitas vezes são praticados dolosamente, ainda que possam ser um inopino tropeço de seu autor.
[1] https://www.conjur.com.br/2025-jun-10/prisao-de-mc-poze-do-rodo-e-as-novas-presepadas-do-poder-punitivo/
[2] BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 5 ed. Trad. por Fernando Tomaz. Rio : Bertrand Brasil, 2002.
[3] BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, cit., pp. 7-8.
[4] BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, cit., pp. 239-240.
[5] BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, cit., p. 249.
[6] Tratei disso em: Direito Penal Econômico – Parte Geral. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, cap. 2.3.1 e 5.2.
[7] Também tratei desse assunto em: Direito Penal Econômico, cit., cap. 2.3.3.
[8] https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2024/12/pf-combate-disseminacao-de-ideologias-nazistas
[9] https://www.youtube.com/watch?v=6IbMszBC6r8
[10] V. https://www.conjur.com.br/2025-jun-03/humorista-leo-lins-e-condenado-a-prisao-por-discriminar-minorias-em-show-de-stand-up/
[11] https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2025/06/internautas-resgatam-declaracao-e-atitude-de-tata-werneck-contra-piadas-preconceituosas.shtml
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