Luta contra a litigância predatória opõe poder de cautela do juiz e limite da lei

O polêmico e difícil tema da litigância predatória está em pauta no Superior Tribunal de Justiça. E sua resolução vai depender dos limites que o juiz, a quem a lei dá poderes para disciplinar a marcha processual, deve respeitar quando identificar indícios de abuso do direito de ação.

Ministro Moura Ribeiro é relator de repetitivo que vai discutir o tema no STJ
Gustavo Lima/STJ

A possibilidade de o magistrado obrigar as partes a apresentarem novos documentos capazes de lastrear minimamente o pedido feito em demandas repetitivas e massificadas está em discussão no Tema 1.198 dos recursos repetitivos, que será julgado pela 2ª Seção do STJ.

Para subsidiar o julgamento, o relator da matéria, ministro Moura Ribeiro, promoveu audiência pública na sede do tribunal na última terça-feira (3/10). O objetivo era ouvir associações, institutos, pesquisadores, entidades, advogados, representantes dos tribunais e a Advocacia-Geral da União.

O recurso ataca um incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) julgado pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TL-MS), que fixou a tese segundo a qual o juiz pode exigir a apresentação de novos documentos que entender pertinentes.

O enunciado cita cópias de contratos e de extratos bancários, quando a demanda for contra o consumidor; procuração atualizada; declaração de pobreza; e comprovante de residência. Isso tudo serviria para mostrar que a ação não decorre de uma aventura jurídica.

Para o TJ-MS, isso é possível porque o Código de Processo Civil confere ao juiz o poder geral de cautela, pelo qual ele tem a liberdade de conduzir o feito, determinando a adoção de diligências e providências que entender necessárias ao julgamento da demanda.

Na visão da advocacia, porém, isso é um grande problema, pois abre espaço para o julgador ultrapassar os limites da lei, com o pretexto de combater a litigância predatória, reduzindo o acesso à Justiça e impondo obstáculos processuais, especialmente a pessoas vulneráveis.

Após quatro horas de audiência pública, o ministro Moura Ribeiro destacou o alto nível do debate e disse que havia sido aberta ali uma “caixa de Pandora”, em referência ao objeto da mitologia grega responsável por liberar todos os males do mundo.

Para a juíza Vanessa Mateus, da Apamagis, poder de cautela do juiz vai atingir as fake lides predatórias, não o litigante habitual
Gustavo Lima/STJ

Poder de cautela
Defendem a tese do TJ-MS os representantes do Poder Judiciário, que se vê abarrotado de processos repetitivos e, muitas vezes, temerários, e as instituições financeiras e relacionadas a prestação de serviços, que acabam sendo os alvos preferenciais dessas ações.

READ  PEC Antidrogas pode ser invalidada com argumentos já usados pelo STF

Essa posição se baseia no poder geral de cautela conferido ao juiz pelo CPC de 2015. O artigo 319, por exemplo, permite que o magistrado convoque as partes e mande suprir pressupostos processuais. Já o artigo 142 autoriza a proferir decisão que impeça a prática de ato simulado pelas partes.

Para a juíza Vanessa Mateus, presidente da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), o poder de cautela não servirá para atingir demandas de massa ou escritórios que tenham um nicho de atuação. Ele visará às chamadas fake lides, cuja grande característica é a generalidade.

São ações repetitivas, com petições iniciais absolutamente idênticas, ajuizadas pelo mesmo advogado com pedidos genéricos — um dos relatos na audiência é de processos pedindo indenização por danos sofridos, sem qualquer especificação.

Essas ações são voltadas, não à toa, contra as pessoas jurídicas que mais geram reclamações no Judiciário, como bancos, concessionárias de serviço público e empresas de telefonia, além das causas voltadas à saúde. O pedido de documentos serviria para expor esses litigantes tóxicos.

Sofia Temer, advogada do Santander, alvo da ação julgada pelo TJ-MS, explicou que são ações infundadas, fabricadas a partir de documentos e procurações obtidos ilegalmente ou falsificados. E que, muitas vezes, as pessoas nem sabem que estão processando o banco.

André Jacques Luciano Uchôa Costa, da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), afirmou que cabe ao advogado instruir a petição inicial com a documentação necessária e, ao juiz, determinar a emenda quando necessário. “Não admitir a tese seria dizer que o juiz está impossibilitado de agir, o que seria inconstitucional.”

A exigência de procuração atualizada ganha relevo porque, muita vezes, um só documento é usado pelo advogado para ajuizar dezenas de ações. “A preocupação não é que a procuração assinada pelo cliente seja de ontem”, destacou Felipe Albertini Nani Viaro, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). “Ela precisa ser específica e não reaproveitada”.

READ  Definir quantas vezes trabalhador vai ao banheiro não gera condenação
Para Eduardo Mange, da Aasp, confirmar a tese do TJ-MS não vai resolver problema e ainda vai causar incômodos novos
Gustavo Lima/STJ

A lei é o limite
A questão da procuração é um dos pontos que seriam incontornáveis para quem defende que o STJ derrube a tese firmada pelo TJ-MS — em suma, advocacia e entidades de defesa do consumidor. Isso porque o artigo 105, parágrafo 4º, do CPC indica que a outorga feita na fase de conhecimento é eficaz para todas as fases do processo.

Assim, não poderia o juiz, com o pretexto do poder de cautela, extrapolar a lei. O mesmo vale para a hipótese de exibição de contratos. O Código de Defesa do Consumidor determina que eles sejam devidamente informados a quem faz a contratação. E como exigir sua apresentação, nos casos em que a alegação é de fraude?

A exigência de apresentação de extratos bancários, por sua vez, ofenderia o precedente do STJ no Tema 411 dos repetitivos, segundo o qual é cabível a inversão do ônus da prova em favor do consumidor para o fim de determinar aos bancos a exibição desses documentos.

Por fim, os críticos da tese destacam que o Judiciário já tem instrumentos aptos a combater a litigância predatória: a imposição de multa por litigância de má-fé, a punição quando se configurar o chamado ato atentatório à dignidade da Justiça e até persecução criminal, quando houver falsidade, apropriação indevida ou estelionato.

“É uma tese que prejudica a advocacia. Ela, como está, não resolve o problema e certamente criará outros desnecessários, aumentando o tempo do processo, o número de recursos e o congestionamento do Judiciário”, alertou Eduardo Mange, da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp).

Nicolas Santos Carvalho Gomes, da Associação dos Advogados Defensores do Consumidor Amazonense (AADCAM), destaca que não existem dados suficientes sobre ações fraudadas por advogados para permitir que se adote uma tese generalizada sobre o assunto. “Se há ajuizamento em massa de ações é porque há violação em massa de direitos.”

Procurador-Geral da União, Marcelo Eugenio Feitosa Almeida propôs método para identificação de litigância predatória
Rafael Luz/STJ

Possíveis soluções
Pesquisadores independentes e a Advocacia-Geral da União, teoricamente em posições mais neutras sobre o tema da litigância predatória, foram os responsáveis por oferecer ao ministro Moura Ribeiro algumas saídas para o problema.

O procurador-geral da União, Marcelo Eugenio Feitosa Almeida, destacou que o fato de uma demanda ser pulverizada em diversas varas locais, ou até nacionalmente, não é suficiente para configurar demanda predatória. Ele propôs uma forma de identificá-las, baseada em duas perguntas:

  • Há ajuizamento sucessivo e repetitivo de ações relacionáveis entre si?
  • Há elementos de fraude ou abusividade presentes nesse ajuizamento repetitivo que viole juízo natural ou diminua o poder de defesa da parte adversária?
READ  Educação: uma olhada em dados do censo escolar

A resposta “sim” para ambas as perguntas vai indicar a ocorrência da litigância predatória. Para atacar o problema, ele citou o jurista italiano Michelle Taruffo: “As garantias processuais não protegem e não legitimam práticas abusivas”.

Em sua análise, o juiz pode usar o poder de cautela para exigir novos documentos, desde que de forma fundamentada. Mas deve ser cuidadoso ao fazê-lo. “Propomos a regra da aplicação do princípio in dubio pro acesso à Justiça.”

Luciano Ramos de Oliveira, da Associação Brasileira de Direito Processual (ABPC), sugeriu que o STJ fixe que cabe à parte demonstrar ao juízo que o processo é abusivo, com base no artigo 139, inciso III, do CPC. E que, na decisão de pedir novos documentos, o juiz seja obrigado a descrever precisamente o vício a ser corrigido, conforme o artigo 321 do CPC.

Já o professor Guilherme Eliano Pinto sugeriu que essa exibição de documentos, se necessária, seja feita como parte de algum dos atos obrigatórios da ação — por exemplo, na audiência de conciliação. Isso serviria para impedir a paralisação do processo, além de evitar prejuízos.

Uma das principais críticas ao exercício do poder de cautela do juiz, como admitido pelo TJ-MS, é obrigar uma parte muitas vezes hipossuficiente a comparecer ao fórum para comprovar que conhece o advogado, que assinou a procuração ou que sabe pormenores da ação.

“Como estamos falando de demandas em massa, o comparecimento deixaria fóruns lotados e servidores abarrotados de trabalho. Isso não coloca o processo para frente. Pensamos que a melhor maneira é que seja colocado em audiência. Se você vai ter o custo de enviar o cliente ao fórum, já faz a determinação de que leve a documentação”, explicou o professor.

REsp 2.021.665

Fonte: Conjur