Mudança cultural e reforma na lei fazem explodir as recuperações extrajudiciais

Uma recente mudança na cultura de consensualismo no Brasil fez com que os números de pedidos de recuperações extrajudiciais explodissem nos últimos três anos. Esse aumento também é um resultado da reforma da Lei de Falências, que entrou em vigor em 2021.

Impulsionado por mudanças culturais e legislativas, número de recuperações extrajudiciais disparou nos últimos 3 anos – Mteerapat/Freepik
 

Dados colhidos pelo Observatório Brasileiro de Recuperações Extrajudiciais (Obre) mostram que, entre 2006 e 2024, houve 138 pedidos desse tipo de ferramenta empresarial, sendo que 84 deles (61%) foram registrados após a mudança na lei.

 

 

 

Outro número que mostra esse crescimento é o total de pedidos por ano. Em 2021 e 2022, houve 17 pedidos em cada ano. Em 2023, esse número saltou para 40 (aumento de 135%), e em 2024 já foram feitas dez solicitações de homologação de pedido de recuperação extrajudicial  a mais ruidosa delas foi a do Grupo Casas Bahia, que tenta organizar uma dívida de mais de R$ 4 bilhões.

Somente em São Paulo foram registrados 40 pedidos desde a reforma — entre 2006 e 2021, foram apenas 27 as solicitações no estado. Os paulistas lideram o ranking de pedidos, seguidos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. Em termos de valor das causas, o Rio está à frente, com mais de R$ 2 bilhões em média por processo.

 

Reorganização financeira parcial

A recuperação extrajudicial funciona como uma espécie de reorganização financeira parcial da empresa. É menos burocrática e mais barata do que a recuperação judicial, já que não precisa de intervenção constante do Judiciário, que é o responsável pela sua homologação. O plano extrajudicial permite que as empresas negociem com os credores (ou pelo menos com os que julgam serem os mais importantes) de forma autônoma e sem determinadas amarras, sem prejuízo de uma posterior decretação de recuperação judicial ou falência.

São fortes os indícios no Judiciário de que as empresas têm preferido tentar resolver seus problemas financeiros pela via extrajudicial antes de apelar a um plano de RJ. No entanto, o instituto tem algumas limitações. Créditos trabalhistas (com algumas exceções), tributários e oriundos de cessão ou alienação fiduciária não estão sujeitos à recuperação extrajudicial. E determinados tipos de empresas, como as que operam planos de saúde, não podem requerer o instrumento.

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“Até a reforma, a gente tem um número bastante pequeno de recuperações extrajudiciais. A partir da mudança, alguns ajustes foram feitos e as extrajudiciais começaram a ficar mais interessantes, até porque a lei incentiva a autocomposição do devedor com seus credores”, comenta a advogada Juliana Biolchi, especializada no tema e diretora-geral do Obre. Ela cita a reforma de 2021 como um fator que mudou a cultura empresarial e impulsionou as recuperações extrajudiciais.

A mudança na norma promoveu certos incentivos ao instrumento, como a redução do quórum mínimo para a aprovação do plano e a simplificação dos processos, suprimindo obrigações como a de publicar o edital de convocação dos credores em jornal de grande circulação. O texto também estabeleceu a possibilidade de stay period (suspensão das ações e execuções) no instituto.

“Estamos começando a ver os resultados da reforma agora”, diz Juliana. “É uma mudança cultural. Um movimento lento, porém dentro de um conserto maior de incentivo à autocomposição que existe em todo o Direito. Um movimento paulatino e orgânico.”

Esse crescimento ocorre ao mesmo tempo em que o próprio Judiciário faz um esforço para impulsionar soluções consensuais, retirando certas responsabilidades da Justiça, que está abarrotada e onde o tempo de tramitação é relativamente alto. Segundo Juliana, a ascensão das recuperações extrajudiciais se deve a uma soma de fatores, como a tentativa de contorno dessa morosidade e um incentivo maior ao protagonismo das partes na solução de conflitos.

“O mercado está consciente de que o tempo do Judiciário, em alguns casos, não atende à celeridade necessária para que as operações sejam exitosas, e isso faz com que busquem formas alternativas de autocomposição — sem deixar de observar a segurança jurídica necessária ao cumprimento das condições de pagamento propostas”, diz a advogada Lívia Gavioli Machado, especializada em insolvência. “O que se busca é a segurança jurídica através da chancela judicial, de outro modo seria apenas um acordo privado. Contudo, o grande desafio está no equilíbrio entre a autonomia da vontade das partes e a mínima intervenção do Poder Judiciário.”

 

Negociação em foco

Está consolidado no imaginário popular que o Poder Judiciário é uma espécie de arena em que dois polos se enfrentam. Ocorre que esse embate muitas vezes é lento, caro e prejudicial para todos, incluindo a própria Justiça.

Não foi à toa que a reforma de 2021 impulsionou as negociações entre credores e devedores. Nessa esteira, já surgiram iniciativas semelhantes em outras áreas, como a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso) e o Centro Judiciário de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal Superior do Trabalho (Cejusc/TST).

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“A recuperação judicial ‘vingou’ mais em 2005 (ano de aprovação da Lei de Falências) do que a extrajudicial porque a gente nunca teve uma cultura de negociação em que pudesse ter o ganha-ganha. Essa cultura foi amadurecendo a partir da recuperação judicial. Não estamos tão maduros assim, mas já está melhor”, afirma a advogada Tatiana Flores, sócia do escritório LDCM Advogados.

Ela cita como um exemplo prático os grandes bancos, que, via de regra, são inflexíveis quando estão na posição de credores. No entanto, segundo Tatiana, as instituições financeiras começaram a perceber que estavam perdendo tempo e dinheiro em recuperações judiciais que, muitas vezes, terminavam em negociação entre as partes.

A advogada diz que o caso do Grupo Casas Bahia é um marco por causa desse movimento. “Instituições absolutamente tradicionais como o Banco do Brasil e o Bradesco (principais credores da varejista) já começaram a sua negociação. Ou seja, elas já previram que uma reestruturação organizada e bem feita vai ser melhor para elas. Isso mostra que você pode ter uma situação mais célere para o credor e para o próprio devedor.”

“Ainda que os empresários utilizem das medidas de recuperação para superar uma crise financeira, mesmo com tais remédios é necessário negociar”, afirma o advogado Bruno Boris, professor de Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. De acordo com ele, os empresários perceberam que, com a recuperação extrajudicial, há mais possibilidades de manter a atividade econômica de seus negócios.

“O devedor sabe que não pode pedir um deságio tão considerável que valha mais a pena para o credor optar pela quebra da empresa, mas também não tão insignificante que não lhe permita transpor esse momento complicado. Isso exige concessões mútuas e muito do know-how desenvolvido na cultura da mediação e conciliação é aplicado nessas situações”, diz Boris.

João Loyo de Meira Lins, sócio do Serur Advogados, é mais pragmático quanto à influência dos mecanismos de solução de conflitos no crescimento das recuperações extrajudiciais. Para ele, as vantagens do acordo para as partes ainda norteiam esse movimento, e não necessariamente a ampliação de uma cultura de consensualismo.

“Essas mudanças normativas podem, é verdade, contemplar questões ligadas à busca por autocomposição e até mesmo pela redução da intervenção judicial”, afirma Lins. “Mas, aparentemente, elas surtem efeitos concretos quando o direito posto passa a prever condições e mecanismos que sinalizam para as vantagens do acordo no caso concreto. A mera menção a valores abstratos de consensualismo, seja na lei ou na jurisprudência, ainda não parece suficiente para criar essa cultura em um Brasil tradicionalmente marcado pela litigiosidade.”

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As discussões a partir do crescimento

O crescimento das recuperações extrajudiciais trouxe consigo o aumento de questionamentos de certas práticas, tendo em vista que o instituto nunca foi tão utilizado quanto é hoje. Lívia Gavioli afirma que há a necessidade de cautela na negociação entre devedores e credores, em especial na modalidade impositiva, para evitar distorções.

“Em que pese a celeridade almejada através da composição anterior com os credores de cada espécie, não é possível deixar de observar que, na modalidade impositiva, as condições apresentadas se aplicam a todos os credores sujeitos, mesmo os não aderentes. Isso demanda atenção, não só aos requisitos formais, dispostos nos artigos 162 a 164, mas também o cuidado na análise da origem dos créditos para garantir que todos os aderentes, de fato, são credores”, alerta ela.

Segundo a advogada, o juiz deve dispor de um auxiliar para analisar os documentos, para, dessa maneira, diminuir as assimetrias e permitir “que todos os credores tenham elementos suficientes para apresentar as eventuais impugnações”.

Meira Lins, por sua vez, diz que, a despeito do nome, o instituto não deixa de ser um processo judicial. “Existe, portanto, menos controle, tanto pelo Judiciário quanto pelos demais credores, das etapas que antecedem a apresentação e a homologação do plano. Isso se reflete em discussões sobre possíveis fraudes e nulidades ou o direito de impugnação ao plano por aqueles credores que se sentirem prejudicados.”

Já Tatiana Flores aponta um questionamento em relação à doutrina que tem sido frequente: o uso do financiamento DIP (debtor-in-possession, na sigla em inglês) para os devedores em recuperação extrajudicial. O termo diz respeito à possibilidade de contratação de financiamento por empresa que tenta se reestruturar.

“Ainda há dúvida sobre o DIP em casos extrajudiciais. Tem fundamento legal, mas a questão toda é a consequência disso, que é pensar um instrumento da recuperação extrajudicial de forma finalística. Lembrando que, diferentemente da RJ, se não homologar, a empresa não vai falir.”

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