1. O inusitado acórdão do TJ-ES — querella nullitatis como revisão criminal pro societate — mais um ornitorrinco jurídico
O caso: O Tribunal de Justiça do Espírito Santo (processo 0004495-50.2022.8.08.0024), por maioria, deu provimento a ação de querella nullitatis ajuizada pelo MP-ES e desconstituiu coisa julgada alegadamente eivada de fraude. Anulou a sentença e mandou submeter o réu a novo júri.
Alegações do Ministério Público: Em primeiro grau o MP-ES foi derrotado. O júri havia absolvido o réu. Segundo o MP-ES, o suporte fático-probatório estaria sustentado em procedimentos investigatórios que, por meio de interceptações telefônicas autorizadas judicialmente, descobriram que a defensora do réu teria simulado mal-estar e, com isso, acabou conseguindo a dissolução do Conselho de Sentença. E, após novo júri, o réu acabou por ser absolvido.
Fundamentos do voto vencedor:
- a defesa do réu agiu de má-fé contrariando preceitos e princípios constitucionais e processuais penais ao, de forma fraudulenta, simular mal-estar, logo após a apresentação da acusação, para, assim, conseguir dissolução do Conselho de Sentença e uma nova data de julgamento;
- estaria, pois, configurado vício insanável e a nulidade dos atos processuais;
- violado o princípio do devido processo legal, que destina-se a todos aqueles que participam dos autos, e o princípio da íntima convicção dos jurados, pois a atitude da defesa no primeiro júri e a mudança dos argumentos no segundo júri, tendo em vista que tinha conhecimento fundamentações acusatórias, acabaram influenciando diretamente na decisão que absolveu o réu;
- também houve supressão da paridade de armas, pois a defesa por meio da fraude deu azo a dissolução do conselho de sentença depois que teve conhecimento de toda sua argumentação acusatória apresentada pelo promotor;
- assim, a defesa usou o tempo até o segundo julgamento para alterar suas teses defensivas e conseguir a absolvição do acusado;
- evidenciado, pois, prejuízo à acusação e presente a relativização da coisa julgada.
Fundamentos do voto divergente: i) a sentença recorrida entendeu que a questão da fraude se relaciona com a validade do ato, não com sua existência; ii) por isso, naquela ocasião, entendeu a magistrada pela inépcia da inicial da ação de querela nullitatis, visto que essa ação se presta a rescindir atos inexistentes, entendimento este, inclusive, respaldado pelo entendimento do STJ; iii) a fraude processual poderia tornar o julgamento existente nulo ou anulável, mas a rescisão das ações penais não é permitida pelo CPP em favor da acusação diante da vedação de revisão criminal pro societate; iv) a ação de querela nullitatis posposta pelo MP, embora procure lhe dar contornos diversos, assemelha-se à revisão criminal pro societate, situação que é vedada expressamente pela jurisprudência do STJ e STF.
2. E o TJ-ES errou — uma anamnese da decisão
Confusão conceitual
A decisão está equivocada. E abriria um perigoso precedente. Houve uma confusão acerca do conceito de coisa julgada e querella nullitatis. A decisão do TJ-ES viola diversos princípios constitucionais, sobretudo a soberania dos vereditos. Trata-se da criação de um novo tipo processual: a revisão criminal pro societate.
O que me chama a atenção, contudo, é o motivo pelo qual o TJ-ES não aplicou a teoria do prejuízo (tão aplicada em todos os tribunais — não há nulidade sem prejuízo). Se formos seguir essa lógica, qual teria sido o prejuízo da acusação se o júri foi efetivamente realizado meses depois? Esse acórdão subverte o processo penal constitucional, mas, para além disso, também ignora a jurisprudência que somente admite nulidade se há prejuízo. E, no caso concreto, muito mais grave. Tudo é usado contra o réu, não importando as circunstâncias de que lado estaria o “maior” prejuízo.
Perigosa distorção no processo penal: um ‘precedente’ inconstitucional
A decisão majoritária, para além de um simples ato decisório, configura uma perigosíssima distorção do processo penal. Não é o Ministério Público que é o sujeito hipossuficiente dessa relação. É o acusado. Por isso, as garantias constitucionais devem sempre ser lidas contra o Estado. A seguir lógica outra, imagine essa situação: como é normal em muitos municípios pequenos, o promotor de justiça costuma ser o responsável por mais de uma comarca. Digamos, então, que em dada ocasião, um juízo criminal realiza uma audiência sem a presença da acusação.
Colhem-se depoimentos das testemunhas arroladas na denúncia e o magistrado imediatamente passa a palavra para a defesa (já que o MP não se encontra presente) e essa, por sua vez, tece uma ou duas perguntas. O juiz, ao argumento de que estaria a complementar, produz a prova que seria incumbência do ausente promotor.
Qual é a resposta judicial adequada para esse hipotético caso? Por violação ao artigo 212 do Código de Processo Penal, assim como também pela ofensa ao devido processo legal, o ato seria nulo. O que é, entretanto, comum de se ver em tribunais pelo país afora: a violação do referido artigo demanda prejuízo. Para o acusado, ora, é implícito: qual seria o maior prejuízo do que ser condenado à margem da lei?
Por que não pode existir agir estratégico do Ministério Público
Onde quero chegar é: o que é prejuízo para a acusação? O argumento de que a defesa tomou conhecimento das teses acusatórias é improcedente. Não existe agir estratégico do Ministério Público. Desde o início da persecução penal, as suas teses devem estar plenamente dispostas de modo a conferir ao acusado a possibilidade de exercer o amplo direito de defesa.
Desvantagem do Ministério Público?
Mesmo que seja possível afirmar existir um “prejuízo à acusação” (que, lembremos, sequer precisa atender aos seus prazos, como o oferecimento de denúncia em 15 dias que dispõe o artigo 46 do CPP. Ou alguém já viu o MP perder o direito de impulsionar uma ação penal porque falhou com o prazo?), no caso do TJ-ES é impossível enxergar qualquer tipo de desvantagem. O júri ocorreu novamente. O conselho de sentença decidiu pela absolvição. O que mudaria se tivesse sido realizado meses antes? Simplesmente sentido algum há.
Por que o voto vencido está correto e bem fundamentado
Correto o voto vencido. Uma coisa é a existência do ato; outra é a sua validade. Mas nem seria necessário ingressar nessa discussão um tanto quanto criterialista. Basta que se tenha em mente a impossibilidade de se passar por cima da coisa julgada com base nesse tipo de argumento. Coisa julgada é matéria constitucional. Garantia contra tudo e contra todos. Não está à disposição do Estado. E nem do Judiciário.
Por que não existe hipótese de revisão criminal pro societate (assim como não existe in dubio pro societate)
E esse é o busílis: o cabimento ou não da ação pelo MP sequer merece uma discussão mais aprofundada. Promover uma revisão criminal pro societate simplesmente não comporta asilo na Constituição. E, para ser direto, nem mesmo o in dubio pro societate possui qualquer compatibilidade com a Carta Constitucional de 1988. Isso é (ou deveria ser) uma obviedade.
Mas equívocos dos votos vencedores
Os votos vencedores incidem ainda em outros equívocos, como que estaria violado o devido processo legal. Em que sentido? E por qual razão a íntima convicção estaria conspurcada? Por que o júri que foi cancelado por desmaio do advogado traria prejuízo à intima convicção dos jurados quando do segundo julgamento? O que uma coisa tem a ver com a outra? Absolutamente nada. O que existe, a bem da verdade, é um descontentamento com o resultado. Nada mais que isso.
Em síntese, se houve fraude por ocasião do cancelamento do julgamento inicial, no que isso macula o segundo julgamento? O segundo julgamento é que deveria estar em jogo no plano da discussão processual. Houve nulidades no segundo julgamento? Se sim, não seria em querella nulitattis. Seria no devido processo legal que isso deveria ser discutido.
3. Qual é o papel das garantias constitucionais? Por que insistimos em retroceder?
Portanto, uma sucessão de equívocos, que deverão ser corrigidos no STJ. Ou no próprio TJ-ES, em sede recursal própria (se ainda houver prazo).
Temos muito a aprender em termos de garantias processuais. Ainda estamos há centenas de anos atrasados. Não nos damos conta do que é isto — o Estado democrático de Direito. Há mais de uma década esta coluna é trincheira para esse empreendimento — a busca dessa resposta.
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O post ‘Não há o que não haja’: agora já há ‘revisão criminal’ <i>pro societate</i> apareceu primeiro em Consultor Jurídico.