PEC da Segurança Pública resolve a crise das polícias?

A proposta de emenda à Constituição denominada PEC da Segurança Pública, de autoria do atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, está sob análise e poderá ser encaminhada ao Congresso pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

No terreno político, trata-se de um movimento do governo federal para ocupar espaços na segurança pública, em uma tentativa de reverter as dificuldades que vem enfrentando nessa área.

Vale ressaltar que até o momento não há publicação oficial do texto da PEC, razão pela qual nos baseamos em notícias veiculadas pelos órgãos de imprensa.

Para além das reflexões sobre os possíveis tópicos da pretendida PEC, é essencial analisá-la sob a ótica da “crise de identidade vivenciada pelos órgãos da segurança pública”, traduzida no confronto com o atual conjunto de atribuições constitucionais que definem e qualificam esses órgãos.

Dito isso, analisemos os prováveis itens da PEC que podem ensejar o agravamento desse conflito:

Maior poder da União para estabelecer normas gerais

A PEC objetiva conceder à União o poder de produzir normas gerais de observância obrigatória para estados e municípios como diretrizes para uma política nacional de segurança pública ou regulamentação de atividades específicas, a exemplo do uso de câmeras corporais por agentes policiais.

Nesse caso estamos tratando de competência constitucional para legislar. Isso nos chama atenção pelo controle da iniciativa e tramitação da produção legislativa na Presidência da República, Câmara e Senado, para dispor sobre assuntos da segurança pública. A depender de como estiver redigido e do tópico de inserção desse dispositivo na Constituição, o presidente da República e os parlamentares federais terão um certo monopólio sobre a elaboração das leis de segurança pública, ao exercerem as competências legislativas:

1.1) Privativa (artigo 22 da CF), quando somente eles próprios podem criar leis ou autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas relacionadas a matéria; 1.2) Concorrente entre União, estados e Distrito Federal (artigo 24 da CF), cenário no qual a União é limitada a estabelecer normas gerais e aos estados e ao Distrito Federal, em regra, cabe exercer a competência suplementar, inclusive, inexistindo lei federal sobre normas gerais, os estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades, e havendo conflito entre uma lei estadual e uma lei federal que trate de normas gerais, a legislação federal prevalece, e a eficácia da lei estadual será suspensa na parte que for contrária.

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Ampliação das atribuições da PF

A proposta pode fixar explicitamente na Constituição que será dever da Polícia Federal combater organizações criminosas (orcrim) e milícias privadas, além de crimes ambientais em áreas específicas, como matas, florestas e unidades de conservação. Aqui também temos pontos sensíveis de intersecção ou até mesmo de colisão quanto às atribuições, sobretudo relacionadas aos demais órgãos da segurança pública. Uma das questões centrais está no futuro da investigação criminal sobre organizações criminosas.

Atualmente, compete às policias judiciárias, federal e civil, a apuração das infrações penais dessa natureza. Grosso modo, à Polícia Federal compete investigar organizações cujas práticas criminosas tenham repercussão interestadual ou transnacional, já à Polícia Civil compete investigar as Orcrim na base territorial do seu respectivo estado, ainda que as apurações alcancem desdobramentos em outro estado ou até mesmo país.

Com efeito, a partir de eventual alteração implementada pela PEC, no sentido de que o “combate” (expressão vaga, aberta e imprecisa) às Orcrim será uma atribuição da Polícia Federal, restaria esvaziado o exercício das atividades de investigação dos crimes dessa natureza pela Polícia Civil, caso não fique muito bem delineada a esfera de atuação de cada órgão nessa área.

Criação de uma nova polícia derivada da PRF

Propõe transformar a Polícia Rodoviária Federal em uma polícia com atuação ostensiva nacional. Sua atuação não estaria restrita ao patrulhamento das rodovias federais (função para a qual foi originariamente concebida), mas também ao policiamento em ferrovias e hidrovias, podendo ser solicitada para atuar mediante rondas ostensivas nas ruas, em toda extensão dos Estados solicitantes, semelhante ao que acontece com a Força Nacional.

A proposta colide principalmente com o papel desempenhado pelas Polícias Militares, às quais competem o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, subordinadas aos respectivos governadores.

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Ainda que a PEC faça uma delimitação circunstancial para atuação da nova polícia ostensiva federal quando “for solicitada”, permanece a intersecção entre atribuições, de modo que o policiamento fardado nas ruas será realizado por essa nova força, à semelhança do que já vem sendo feito também pelas guardas municipais.

De um lado, o patrulhamento das ruas poderá ser realizado pela polícia ostensiva federal, e de outro, pelas guardas municipais, resultando em uma espécie de complemento do policiamento ostensivo nos espaços de patrulhamento das polícias militares;

Inclusão do Susp na Constituição

A proposta visa inserir o Sistema Único da Segurança Pública na Constituição, atualmente previsto em uma Lei Federal (nº 13.675/2028), elevando, portanto, seu status normativo. O aspecto positivo do sistema está na determinação de que os órgãos da segurança pública atuem de forma cooperativa, sistêmica e harmônica, nos limites de suas competências. Dito de outra forma, seria o trabalho conjunto realizado pelos integrantes das forças de segurança pública, respeitando-se as atribuições previamente definidas para cada um.

Mas essa possível constitucionalização envolve desdobramentos jurídicos, operacionais e financeiros, os quais invariavelmente serão regulados por normas infraconstitucionais, inclusive, do mesmo patamar da atual Lei do Susp. Isso levanta questionamentos quanto aos resultados práticos dessa constitucionalização.

Essas possíveis alterações revelam inquietações sobre uma avaliação dos impactos futuros na distribuição de competências e atribuições, além da alocação dos recursos públicos. Isso merece bastante atenção, considerando os objetivos almejados de eficiência e otimização do sistema de segurança pública do país. Nesse sentido, visando contribuir ainda mais para o debate, pensemos em respostas para os seguintes questionamentos:

A Lei Federal do Susp, que está valendo desde 2018, não vem sendo cumprida ao ponto de termos que constitucionalizá-la? Constitucionalizar o tema fará com que os órgãos da segurança pública finalmente trabalhem de maneira integrada e com o fiel respeito aos limites das respectivas competências e atribuições? Qual o impacto financeiro dessa constitucionalização? É possível alcançar o mesmo resultado, ou seja, a integração entre as forças de segurança pública, com alterações legislativas infraconstitucionais, a exemplo da própria Lei do Susp?

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Cenário político

Outro ponto que merece destaque é a polarização política entre direita e esquerda. É evidente que há uma ausência de diálogo interinstitucional, sobretudo entre os polos da extrema direita e extrema esquerda, ocasionando a adoção de medidas isoladas, algumas das quais disfuncionais, de modo que cada lado dessa díade atua para contemplar sua respectiva parcela do eleitorado e contrapor o lado adversário. Isso reflete a falta de consensos entre os tomadores de decisões.

Para superar essas ameaças, é muito importante o diálogo entre as instâncias de poder e consolidar acordos entre os servidores afetados, mas isso deve ser orientado por diagnósticos confiáveis e pela participação de todas as partes interessadas. Essas premissas são indispensáveis para assegurar que propostas apresentadas na área da segurança pública sejam adequadas, efetivamente cumpridas e atinjam os resultados desejados.

Hora de dialogar

À luz dessas reflexões, a PEC indica uma busca por protagonismo, trazendo a sensação de que “algo está sendo feito”. Além disso, as alterações podem acrescentar desafios de ordem prática, como o enfraquecimento do já conturbado sistema de atribuições dos órgãos da segurança pública.

Assim, uma boa oportunidade para redução dos riscos à proposta está no diálogo prévio e profundo do governo federal não apenas com governadores, mas também, e principalmente, com os representantes dos servidores públicos da segurança pública (o que não tem ocorrido até o momento).

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