A redação final da interpretação do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de extinção da punibilidade de uma pessoa condenada que não tem condições de pagar a pena de multa pode levar a um retrocesso na forma como o tema é tratado.
A preocupação é levantada por membros das Defensorias Públicas brasileiras com atuação nos tribunais superiores, após o julgamento da ADI 7.032. O acórdão foi publicado na sexta-feira (12/4).
A ação foi ajuizada pelo Solidariedade para dar interpretação conforme a Constituição ao artigo 51 do Código Penal, que trata do tema, e foi julgada no Plenário Virtual do Supremo.
Por unanimidade de votos, o STF concluiu que o não pagamento da multa impede a extinção da punibilidade, exceto se comprovada impossibilidade, ainda que de forma parcelada.
O tribunal ainda acrescentou que o juiz da execução penal pode extinguir a punibilidade mesmo sem o pagamento da pena de multa quando concluir, com base em elementos de prova, que o condenado realmente não tem condições.
Essa posição não é exatamente ruim para os presos brasileiros, mas é menos benéfica do que a tese fixada pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça semanas antes de o tema ser analisado pelo Supremo.
Em 27 de fevereiro, o STJ decidiu que a mera declaração de pobreza do apenado basta para que sua punibilidade seja extinta mesmo sem o pagamento da pena de multa.
Essa presunção de pobreza é relativa e pode ser afastada se Ministério Público ou o próprio magistrado identificarem elementos que indiquem que o condenado tem condições de fazer o pagamento da multa.
A diferença entre as posições de STF e STJ é sutil, mas faz toda a diferença para os condenados assistidos pelas Defensorias Públicas, porque abre a possibilidade de que se imponha a eles a obrigação de fazer prova de fato negativo: da inexistência de recursos que permitiriam o pagamento da multa.
Compare as teses:
STF: Pedido provido parcialmente para conferir, ao artigo 51 do Código Penal, interpretação conforme à Constituição da República, no sentido de que, cominada conjuntamente com a pena privativa de liberdade, o inadimplemento da pena de multa obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade, salvo comprovada impossibilidade de seu pagamento, ainda que de forma parcelada.
STJ: O inadimplemento da pena de multa, após cumprida a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, não obsta a extinção da punibilidade ante a alegada hipossuficiência do condenado, salvo se, diversamente, entender o juiz competente, em decisão suficientemente motivada que indique concretamente a possibilidade de pagamento da sanção pecuniária.
Questão de redação
A questão se baseia apenas na redação escolhida pelo STF para dar interpretação conforme ao artigo 51 do Código Penal, que trata do tema.
Inicialmente, o voto do relator, ministro Flávio Dino, limitava-se a dizer que a pena de multa impede a extinção da punibilidade, exceto se comprovada a impossibilidade de pagamento (clique aqui para ler o voto original).
O ministro Cristiano Zanin divergiu parcialmente para ampliar a interpretação, com menção expressa à tese do STJ, a qual considerou “mais consentânea com o objetivo da ressocialização e com a realidade da população carcerária brasileira” (clique aqui para ler).
A mais recente revisão do tema no STJ foi citada em memoriais entregues aos ministros do Supremo pela Defensoria Pública da União, que atuou como amicus curiae (amiga da corte).
Dino acolheu a manifestação, o que fez com que a votação no STF se desse por unanimidade. O problema é que essa presunção de veracidade dada à declaração de pobreza do apenado não apareceu no texto final do voto do relator (clique aqui para ler), nem no acórdão (clique aqui para ler).
E, sem isso, o temor dos defensores públicos é de que juízes e tribunais estaduais continuem exigindo do apenado a prova de que ele não tem condições de pagar a pena de multa.
Retrocesso interpretativo
Essa interpretação pode ser considerada um retrocesso porque restabeleceria a posição adotada pelo STJ antes da revisão mais recente da tese.
De 2021 a 2024, o tribunal entendeu que o não pagamento da pena de multa não impede a extinção da punibilidade do condenado, desde que ele próprio comprove que não tem condições financeiras.
“Isso é tudo que a gente não queria, porque essa prova é difícil demais”, explica Flavio Wandeck, defensor público por Minas Gerais e integrante do Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores (Gaets).
Há relatos de juízes que entendem, por exemplo, que o fato de o apenado ser desempregado não comprova que ele não pode pagar a pena de multa. Essa lógica se repete quando ele não tem endereço fixo, conta corrente, bens móveis ou imóveis, entre outros. A dificuldade reside em provar um fato negativo.
Wandeck defende que o ônus de comprovar que o condenado pode pagar a pena de multa seja do Ministério Público ou do próprio juiz, que têm condições de verificar em sistemas a existência de contas bancárias, investimentos e bens móveis ou imóveis.
“É muito mais inteligente e justo estabelecer uma presunção de hipossuficiência com base na declaração do apenado. Se efetivamente isso não for realidade, os órgãos estatais têm acesso aos meios para verificar”, afirma.
Tatiana Bianchini, da DPU, que enviou sustentação oral e memoriais na condição de amicus curiae, avalia que a posição do STF acaba tirando a força do que decidiu o STJ. “Os juízes vão se atentar ao fato de que o STF tem uma posição diferente.”
Para Wandeck, a miserabilidade da população carcerária é quase um fato notório. A imensa maioria é atendida pela Defensoria Pública. Mesmo aqueles que durante a ação penal têm condições de pagar advogado particular, na execução acabam recorrendo ao órgão.
Outras reviravoltas
Não seria a primeira vez que um julgamento do Supremo Tribunal Federal impacta negativamente a forma como a pena de multa é tratada pelo Poder Judiciário brasileiro.
Esse tema foi abordado pela primeira vez pelo STJ em 2015, quando fixou tese vinculante determinando que a falta de pagamento da pena de multa não pode impedir a extinção da punibilidade do condenado.
O Estado ainda poderia cobrar a multa, mas ela não teria mais efeitos penais. O problema ressurgiu das cinzas quando o STF, em 2018, julgou uma questão de ordem na Ação Penal 470, do “mensalão”, em conjunto com a ADI 3.150.
A conclusão do Supremo foi de que a pena de multa não perde seu caráter penal e pode ser cobrada pelo Ministério Público. O colegiado decidiu considerando crimes do colarinho branco, mas a solução acabou servindo para todo e qualquer condenado.
A revista eletrônica Consultor Jurídica mostrou em 2019 que esse precedente vinha sendo abraçado pelas câmaras criminais do Tribunal de Justiça de São Paulo para todo e qualquer caso.
Isso fez o STJ revisar sua tese pela primeira vez, em 2020, proibindo a extinção da punibilidade sem o pagamento da pena de multa.
E em 2019, o pacote “anticrime” entrou em vigor dando nova redação ao artigo 51 do Código Penal, prevendo que a pena de multa deve ser executada perante o juízo da execução penal.
Foi essa alteração na redação que permitiu ao STF analisar a interpretação conforme do artigo 51 pela segunda vez, agora em ação ajuizada pelo Solidariedade e desvinculada de casos de corrupção.
Fator de marginalização
O tratamento dado pelo Judiciário à pena de multa, de fato, tem sido um fator de marginalização da população carcerária, como mostrou a ConJur.
E os valores dessas multas, especialmente nos vastos casos de tráfico de drogas, contrastam fortemente com a miséria dos presos no país.
As consequências de se impedir a extinção da punibilidade de uma pessoa condenada por crimes no Brasil são drásticas.
Sem ela, ele não consegue a reabilitação, que é o que assegura o sigilo dos registros sobre seu processo e sua condenação.
Sem o sigilo, a pessoa não consegue a certidão negativa de antecedentes criminais, sem a qual a busca por emprego formal fica extremamente prejudicada.
Além disso, sem a extinção, também não começa o chamado período depurador — prazo de cinco anos em que o condenado será considerado reincidente. Após esse tempo, ele volta a ser primário, embora ostente maus antecedentes.
Também permanece a suspensão dos direitos políticos. Assim, o ex-preso não consegue regularizar o título de eleitor. Logo, não pode votar, matricular-se em instituição de ensino público ou exercer cargos públicos concursados.
Se o condenado não tiver CPF, não conseguirá expedir esse documento, devido à ausência do título de eleitor. Por isso, não obterá carteira de trabalho, crédito em instituições bancárias ou acesso a benefícios sociais.
Clique aqui para ler o acórdão do STF
ADI 7.032
Clique aqui para ler o acórdão do STJ
REsp 2.024.901
REsp 2.090.454
Fonte: Conjur