Processo legislativo e tecnologia: cumprimento da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência

Uma rede de cooperação acadêmico-científica foi formada entre Brasil, Suíça e África do Sul para desenvolver o projeto Fostering inclusive law-making for people with disabilities: risks and opportunities of Intelligent assistive technologies [1], que investigará nos três países, os riscos e as oportunidades que as tecnologias assistivas inteligentes apresentam para a participação política das pessoas com deficiência nos processos legislativos desses países.

A pesquisa, selecionada para receber financiamento da Worldwide Universities Network (Rede Mundial de Universidades), avalia a implementação do artigo 29 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que prevê a participação na vida política e pública das pessoas com deficiência em condições de igualdade com as demais pessoas.

Embora a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência tenha sido recepcionada pelo Brasil em 2009 [2], garantir condições de igual participação política para as pessoas com deficiência é um dever estatal que se extrai de dispositivos previstos na Constituição da República de 1988. o fomento às tecnologias assistidas nos processos decisórios estatais

A Constituição de 1988 prevê, por exemplo, a cidadania e o pluralismo político como fundamentos do Estado Brasileiro (incisos II e V do caput do artigo 1º da Constituição). O princípio da igualdade, também assegurado no caput do artigo 5º, é um dispositivo que convoca o Estado a promover a inclusão das pessoas com deficiência nos processos discursivos que integram os de elaboração das leis e de formação da agenda pública.

A Convenção, entretanto, representou um ganho de substituição do modelo médico para o modelo social de deficiência: em vez ser portadora de uma incapacidade biológica ou psíquica, a pessoa com deficiência está em condições de desigualdade pela incapacidade do meio urbano e político-social em adotar um desenho ou estruturar seus processos de forma a possibilitar o acesso, a inclusão e a participação da pessoa com deficiência com autonomia.

Em 2022, pela primeira vez desde o início da série histórica, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) coletou dados sobre a população de pessoas com deficiência no Brasil. Adotando como recorte as pessoas com dois anos de idade ou mais, a Pesquisa Nacional Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnd Contínua) revelou que existem 18,58 milhões de pessoas com deficiência no Brasil.

ConJur

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Considerando o cenário das novas tecnologias, tramita na Câmara dos Deputados a  Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 47/2021 [3], aprovada no Senado, que objetiva acrescentar a inclusão digital no rol dos direitos fundamentais do artigo 5º da Constituição.

A PEC parece concentrar-se no dever do poder público de ampliar o acesso à internet no território nacional, todavia, a inclusão digital é um conceito mais amplo, que abrange as soluções tecnológicas para tornar os ambientes igualmente acessíveis a pessoas diferentes.

Marco Regulatório de Ciência, Tecnologia e Inovação, lei que disciplina as condições para  a existência de pesquisa e inovação no Brasil, nos termos dos artigos 23 24 167 200 213 218 219 219-A da Constituição definiu como princípios da política brasileira para autonomia científico tecnológica, dentre outros (artigo 1º I,II, III):  promoção das atividades científicas e tecnológicas como estratégicas para o desenvolvimento econômico e social; promoção e continuidade dos processos de desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação, assegurados os recursos humanos, econômicos e financeiros para tal finalidade;  redução das desigualdades regionais.

Os objetivos do Marco são: “a capacitação tecnológica, ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional do país” conforme o sistema constitucional de ciência, tecnologia & inovação. Para tal, universidades, centros de pesquisa, empresas de base tecnológica, setor público são intérpretes e partícipes da economia do conhecimento e suas aplicações em benefício dos fins da República.

A pesquisa investigará a interface entre o direito fundamental de participação política das pessoas com deficiência no processo legislativo, e os atores da economia do conhecimento em s tecnologias assistivas inteligentes, disponíveis, com o fim de avaliar e propor medidas para a ampliação do cumprimento da convenção.

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O Decreto nº 10.094/2019, que dispõe sobre o Comitê Interministerial de Tecnologia Assistiva, estabelece que esse comitê assessorará na estruturação, na formulação, na articulação, na implementação e no acompanhamento de plano de tecnologia assistiva, com vistas a garantir à pessoa com deficiência acesso a produtos, recursos, estratégias, práticas, processos e serviços que maximizem sua autonomia, sua mobilidade pessoal e sua qualidade de vida.

O trecho grifado consta no artigo 2º do decreto e oferece um conceito de tecnologia assistiva centrado na autonomia da pessoa com deficiência. Esses produtos, recursos, estratégias, práticas, processos e serviços foram e serão profundamente impactados pela integração da inteligência artificial a essas tecnologias. Esse cenário demanda não só inovação, mas garantias para o pleno exercício da autonomia da vontade pelos participantes.

Conhecer e disponibilizar ferramentas inteligentes de inclusão para as pessoas com deficiência nos processos de participação política é medida que favorece a apresentação dos problemas que impactam sua vida diária e de soluções para esses problemas a partir desse paradigma de autonomia. A construção de soluções pela própria população impactada confere maior legitimidade e responsividade aos processos políticos, inclusive o de elaboração das leis.

Se “legislar é projetar uma realidade futura” [4], os processos legislativos e de formação da agenda pública serão mais responsáveis na medida em que possibilitarem maior acesso à construção coletiva de soluções pelos seguimentos impactados por leis, políticas públicas e suas repercussões judiciais.

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[1]Em tradução livre: “Promover a elaboração legislativa inclusiva para pessoas com deficiência: riscos e oportunidades de tecnologias assistivas inteligentes”. O projeto de pesquisa coordenado pelas professoras da IDHEAP/Universidade de Lausanne (Suíça) Sophie Weerts e Alicia Pastor y Camarasa, tem na equipe a Profa. Ilze Grobbelaar-du Plessis, da Universidade de Pretoria (África do Sul), da Profa Fabiana de Menezes Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Profa Cristiane Silva Kaitel e das pesquisadoras brasileiras e Thábata Filizola Costa.

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[2]A Convenção foi recepcionada pelo Brasil por meio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Para mais informações sobre a internalização de tratados e convenções internacionais no Brasil, recomenda-se a leitura do artigo O ingresso dos tratados internacionais no Direito brasileiro, de autoria de Raimundo Simão de Melo, publicado nesta ConJur em 10 de maio de 2019.

[3]PEC de iniciativa dos seguintes parlamentares: Senadora Simone Tebet (MDB/MS), Senador Alessandro Vieira (CIDADANIA/SE), Senador Marcelo Castro (MDB/PI), Senador Plínio Valério (PSDB/AM), Senadora Eliane Nogueira (PP/PI), Senadora Mailza Gomes (PP/AC), Senadora Eliziane Gama (CIDADANIA/MA), Senador Telmário Mota (PROS/RR), Senadora Maria do Carmo Alves (DEM/SE), Senadora Zenaide Maia (PROS/RN), Senador Alvaro Dias (PODEMOS/PR), Senador José Aníbal (PSDB/SP), Senador Jorge Kajuru (PODEMOS/GO), Senadora Nilda Gondim (MDB/PB), Senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP), Senador Paulo Paim (PT/RS), Senador Humberto Costa (PT/PE), Senador Roberto Rocha (PSDB/MA), Senador Oriovisto Guimarães (PODEMOS/PR), Senador Fabiano Contarato (REDE/ES), Senadora Leila Barros (CIDADANIA/DF), Senadora Soraya Thronicke (PSL/MS), Senador Weverton (PDT/MA), Senador Flávio Arns (PODEMOS/PR), Senador Giordano (MDB/SP), Senador Lasier Martins (PODEMOS/RS), Senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB/PB), Senador Vanderlan Cardoso (PSD/GO), Senador Eduardo Braga (MDB/AM), Senador Reguffe (PODEMOS/DF). Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151308. Acesso em: 3 mar. 2024.

[4]Sobre a responsabilidade do processo de escolha e de justificação da legislação nessa ótica prospectiva, recomendamos a leitura do texto Legislação intergeracional: pautas essenciais para os legisladores em 2024, de autoria de Fabiana de Menezes Soares. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-02/legislacao-intergeracional-pautas-essenciais-para-os-legisladores-em-2024/. Acesso em: 3 mar. 2024.

Fonte: Conjur