Projeto de Estatuto da Vítima reforça direito a indenização, mas tem pouco efeito prático

Em dezembro do último ano, a Câmara aprovou o projeto de lei que cria o Estatuto da Vítima. Uma das regras previstas é que a vítima de um crime tem direito a receber indenização do autor do delito por “prejuízos materiais, morais e psicológicos”. O texto, que ainda precisa passar pelo Senado, também propõe que o infrator restitua valores gastos pela vítima ou pela família com tratamento médico e psicológico e com funeral.

Mulher sendo assaltada

 

 

 

Segundo o projeto, o direito de indenização por danos materiais, morais e psicológicos valeria tanto dentro do processo judicial quanto fora dele, ou seja, em acordos entre as partes. Já a restituição dos gastos médicos e funerários ocorreria somente em caso de condenação com sentença transitada em julgado.

Criminalistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico explicam que o PL não inova quanto a esse tema. “A legislação processual já assegura os direitos da vítima nesse sentido”, indica Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Essa possibilidade de indenização já existe desde a Lei 11.719/2008, segundo a qual o juiz, ao estabelecer uma condenação criminal, deve fixar um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, “considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”.

Mas Paula Moreira Indalecio, sócia do escritório Mattos Filho, explica que, na prática, essa norma “tem uma efetividade limitada”. Muitas vezes, o Ministério Público não solicita tal reparação quando oferece a denúncia.

E, mesmo quando o pedido existe, é comum que ele seja negado pelos juízes. Geralmente, a justificativa é que seria mais adequado analisar eventual indenização em uma ação cível.

Quando uma indenização é fixada na ação penal, a sentença pode ser usada em uma vara de execução cível para garantir o recebimento dos valores. Mas, segundo Paula, a condenação “dificilmente se materializa em ganhos para a vítima”, pois a maioria delas não tem advogados constituídos para executar a sentença.

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Além disso, muitos réus têm recursos financeiros limitados. Para ela, isso, somado à frequente demora para execução de uma indenização penal, levaria a um cenário semelhante ao das penas de multa. Como já mostrou a ConJur, a imensa maioria dessas sanções não é paga em São Paulo, muitas vezes devido à incapacidade financeira dos condenados.

Confusão conceitual

Aury Lopes Jr., professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), acredita que a vítima tem todo o direito de pedir um ressarcimento pelos danos sofridos. Mas, na sua visão, já existe uma via adequada para isso: a cível.

“É uma deturpação do processo penal querer misturar um interesse patrimonial, indenizatório, privado, neste espaço de punição. É um grande erro, que pode levar inclusive ao uso indevido do processo penal, que é muito mais coator e punitivo que o processo civil, para satisfação de interesses privados, de natureza patrimonial”, opina.

De acordo com o criminalista, ainda que a preocupação com a reparação da vítima seja legítima, essa mistura de conceitos é perigosa e tecnicamente inadequada: “É uma degeneração fazer isso pela via do processo penal”.

Ajuda à vítima

A ideia do PL é detalhar direitos das vítimas de crimes, outras infrações, desastres e calamidades públicas. A proposta também contém regras para a chamada Justiça restaurativa, que busca encorajar o infrator a reparar os danos causados.

Na visão de Alberto Zacharias Toron, a regra de indenização à vítima é positiva, pois garante o ressarcimento pelos “gastos decorrentes do delito que se abateu sobre ela”. Mas ele não acredita que a medida tenha “um caráter de combater a criminalidade”.

Antonio Melchior concorda que as regras previstas no projeto “não previnem, tampouco se dirigem a evitar crimes, mas a assegurar assistência mais efetiva e abrangente à vítima”.

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Embora reconheça que a proposta deve enfrentar desafios na prática, Paula Indalecio vê bons pontos no texto. “Historicamente, o processo penal sempre foi muito centrado na figura do Ministério Público como o titular da ação penal e a vítima permaneceu com um papel secundário no processo”, indica.

“Dessa forma, um dos aspectos positivos da proposta é que ela traz mais centralidade à vítima no processo penal, reconhecendo seus direitos de forma mais clara.”

Outro ponto positivo, segundo ela, é que a previsão de um direito à indenização facilita o acesso à Justiça. Isso porque, uma vez que a indenização é estabelecida no processo penal, sua execução na esfera cível pode ser mais rápida e eficaz.

A advogada considera que a obrigação “aparentemente reforça a responsabilidade individual e pode ter um efeito dissuasório, desencorajando a prática de novos crimes”. Mas ressalta que a prevenção de crimes envolve uma série de fatores, como políticas públicas, educação e medidas de segurança. Assim, ela não crê que a indenização tenha “impacto direto” sobre a repressão de delitos.

“Além disso, o foco da proposta é mais reparatório do que punitivo, buscando mais proporcionar algum alívio (muitas vezes tardio) às vítimas do que efetivamente prevenir a ocorrência de delitos”, completa.

Prerrogativas

O presidente do IBCCRIM afirma que a redação do PL “parece admitir a decretação de medidas cautelares patrimoniais que incluam o valor relativo ao dano moral e psicológico”. Segundo ele, isso é controverso, principalmente devido à “tensão envolvida com a presunção de inocência enquanto regra de tratamento”.

Para o advogado, a preocupação com a proteção integral da vítima “não deve conduzir a uma ampliação excessiva do objeto do processo penal, uma vez que isto afeta os limites do contraditório e da ampla defesa no âmbito do processo criminal”.

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Ele defende que a indenização à vítima deve ser garantida, “com maiores restrições em sede cautelar” e “maior abrangência na sentença condenatória”. Em qualquer caso, deve-se exigir pedido expresso da autora e garantir o contraditório e a ampla defesa do acusado.

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