O racismo, segundo a CF/88 e as leis brasileiras
A questão racial tem sido objeto de debates acalorados e, muitas vezes, radicais. Em um contexto político polarizado entre ideologias cegas, para as quais o mais importante é o domínio do poder pelo uso das massas e não o enfrentamento sério dos problemas sociais, o debate sobre racismo reverso é um banquete para lideranças odiosas, totalitaristas e revanchistas.
Afinal, é possível que minorias políticas sejam racistas e discriminem outras pessoas (de minoria ou de maioria)?
Bem, o racismo, enquanto gênero, engloba toda e qualquer manifestação preconceituosa, discriminatória, excludente, restritiva ou preferencial contra pessoa ou grupo em razão de raça, cor, religião, etnia ou outros fatores discriminatórios, podendo essas manifestações serem diretas, ou indiretas, comissivas ou omissivas, individuais, sistêmicas e/ou estruturais.
As leis sobre racismo, a começar pela Constituição, ao tratarem de racismo, assim como de preconceito e discriminação, não afirmam que o ele só ocorra quando praticado por maiorias políticas contra minorias políticas. Não há dispositivo normativo que afirme que racismo é discriminação de branco contra preto, ou de cristãos contra umbandistas etc. As leis definem racismo como a discriminação em razão da raça, da cor (não importa a cor do autor, nem da vítima), da religião (não importa a religião do autor, nem da vítima) e da etnia (não importa a etnia do autor, nem da vítima).
Como se sabe, a lei não tem palavras inúteis, logo se escreveu-se cor e não negro, é porque o legislador não restringiu o polo passivo do racismo aos negros, se escreveu-se religião e não religião de matriz africana, é porque o legislador não restringiu o polo passivo do racismo às pessoas e religiões de matriz africana. Mas, por qual razão a lei não restringiu o racismo aos negros ou as minorias? Ora, a lei busca combater o racismo em todas as suas formas e contra qualquer pessoa, ainda que, na prática, algumas minorias políticas sofram muito mais racismo do que as maiorias jamais experimentaram em suas vidas. Porém, o que a lei busca não é implementar uma revanche proibindo o racismo contra as minorias e permitindo contra as maiorias, ou se preferirem em outros termos, a lei não busca proibir discriminações contra pretos e pardos e permitir contra brancos; a lei busca pôr um fim em toda e qualquer forma de preconceito, discriminação e racismo. Como bem afirmam William Douglas e Irapuã Santana, “o racismo pode ser praticado por qualquer pessoa contra qualquer pessoa”.
Nesse sentido, o art. 1º, da lei de crimes resultantes de preconceito (Lei 7.716/1989), também chamada de Lei de Racismo, define os crimes raciais como aqueles tipificados em lei (somente os definidos em lei expressa, em respeito ao princípio constitucional da legalidade penal), resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Veja que a lei não diz os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de brancos contra pretos, ou de cristãos contra umbandistas etc. A lei é clara: são os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, não importando a raça, a cor, a etnia, a religião ou a procedência nacional do autor, nem da vítima!
O artigo 20-C, da Lei 7.716/89 e a má-fé hermenêutica dos neorracistas
Embora a CF/88 seja clara em conceber que todo racismo é racismo e, portanto, deve ser repudiado, os defensores do identitarismo pós-moderno revanchista têm usado, de má-fé, o artigo 20-C, da Lei 7.716/89, para sustentar a falácia de que os crimes de discriminação, preconceito e racismo só poderiam ser praticados por maiorias contra minorias. O referido artigo afirma: “Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.
Perceba que o dispositivo unicamente institui uma norma hermenêutica que reforça a identificação e tipificação dos crimes de preconceito, discriminação e racismo, sempre que identificados atos e tratamentos contra minorias que causem constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, que usualmente não são dispensados a grupos majoritários. É uma norma hermenêutica de identificação e reforço e não uma norma de definição. Ou seja, o legislador reconheceu que há certas formas de discriminação, preconceito e racismo que ocorrem predominantemente (ou exclusivamente) contra minorias, mas não todas. E isso, obviamente, não exclui a ocorrência desses crimes contra maiorias, nem a prática desses crimes por minorias, isto é: a lei não tutela um direito das minorias de serem preconceituosas, discriminar e serem racistas!
Assim, essa norma jamais pode ser interpretada no sentido de excluir a punição do preconceito, da discriminação e do racismo contra pessoas pertencentes a grupos majoritários, pois não é essa a teleologia da Constituição, nem mesmo da Lei de Racismo, que buscam punir o racismo de qualquer pessoa contra qualquer pessoa, sob pena de se dizer que uma pessoa pode ser diretamente discriminada pela cor da sua pele, pois ela é branca, ou pela cor do seu cabelo, pois é loira, ou pela sua religião, pois é cristã, ou pela sua origem, pois é europeu, o que implicaria ofensa direta ao princípio da igualdade, que não admite discriminações negativas, e, em especial, à dignidade da pessoa humana, que veda a reificação de qualquer pessoa por qualquer pessoa.
Ora, o artigo 20-C, da Lei 7.716/89 não exclui em nenhum momento a prática de crimes de discriminação, preconceito e racismo por minorias políticas. A própria estrutura da norma não permite esse raciocínio, pois ela não afirma que “o juiz só deve considerar como racismo a discriminação contra grupos minoritários”. Se o legislador quisesse restringir a aplicação da lei de racismo ao racismo contra minorias ou aderir à tese do racismo estrutural, ele deveria ter feito uso de expressões que assim o fizessem, como “só”, “somente”, “apenas” etc. Mas, não foi essa a sua intenção. A lei em nenhum momento usa qualquer expressão que leve a essa conclusão. Contudo, caso o legislador assim o fizesse, essa pretensa norma seria claramente inconstitucional por ofensa direta aos princípios da igualdade, da não discriminação e da dignidade da pessoa humana.
Racismo reverso? Só o racismo estrutural é racismo?
Em que pese a CF/88 vede expressamente toda e qualquer forma de preconceito, discriminação e racismo contra qualquer pessoa ou grupo, os radicais do identitarismo pós-moderno tem defendido que só o racismo estrutural é racismo, sustentando que não há racismo de minoria contra maioria (de preto contra branco, de umbandista contra cristão etc.). Assim, pretos estariam juridicamente liberados para serem preconceituosos, para discriminar e terem atitudes racistas contra brancos. Do mesmo modo, umbandistas teriam essa mesma licença jurídica contra os cristãos, e assim por diante. Ora, não é só o racismo estrutural que é racismo. A Constituição protege todas as pessoas contra qualquer forma de preconceito, discriminação e racismo e não só as minorias. Por um lado, ninguém precisa ter sido escravizado ou ter tido os direitos negados por décadas ou séculos para ser vítima de racismo. Por outro lado, ser racista não é um direito fundamental das minorias!
Então, existe racismo reverso? Não! A Constituição veda toda e qualquer forma de preconceito, discriminação e racismo de qualquer pessoa ou grupo contra qualquer pessoa ou grupo, logo todo racismo é racismo. Não existe racismo reverso porque todo racismo é racismo, não se podendo graduar o racismo, como pretendem os identitaristas ao rotularem de racismo reverso os atos preconceituosos, discriminatórios e racistas praticados por minorias contra maiorias, numa tentativa de legitimar condutas criminosas revanchistas.
Ora, ninguém precisa ter poder ou pertencer a um grupo político dominante para ser racista, qualquer um pode ser racista. Da mesma forma, ninguém precisa pertencer a uma minoria política para ser vítima de atos e tratamentos preconceituosos, discriminatórios ou racistas. O discurso supremacista negro que eclodiu nos Estados Unidos na segunda metade do séc. XX, ressurge agora no Brasil, em alas radicais do movimento negro, sendo abraçado pela esquerda progressista, que promove um neorracismo identitário como projeto de (manutenção de) poder: é o famoso “nós contra eles”.
Se a Constituição vedasse só o chamado racismo estrutural (como tentam impor alguns, inclusive, para fins de aplicação das leis de crimes resultantes de discriminação ou preconceito) e permitisse as demais formas de preconceito, discriminação e racismo, em especial, contra maiorias políticas, então a tese do racismo reverso passaria a existir como um pseudo-contraponto ao único racismo existente identificado pelos identitaristas, unicamente, para tentar conferir razão, autoridade e unanimidade a uma tese furada.
Perceba: tanto a teses do racismo reverso quanto a tese do racismo estrutural foram criadas pelos neorracistas identitários, pois a sobrevivência de uma depende da sobrevivência da outra. Então, ambos os discursos são repetidos exaustivamente, um em tom intelectual e acadêmico, para lhe conferir razão, e outro em tom de chacota, para ridicularizar qualquer um que pense diferente. Porém, um não vive sem o outro, os dois conceitos são interdependentes, de modo que para defender que o racismo reverso não existe é indispensável defender a existência (unicamente) do racismo estrutural.
Aqui, vale lembrar que a tese do racismo estrutural foi proposta em estudos raciais de autores adeptos do movimento supremacista negro americano a partir dos anos 1960, sendo popularizada no Brasil por Silvio Almeida, para quem o racismo decorre da estrutura social em si, da forma como se constituem as relações políticas, econômicas, culturais, jurídicas e familiares de uma sociedade. Assim, o racismo seria estrutural, de modo que as ações individuais e os processos institucionais derivam de uma sociedade racista, ou seja, para essa teoria, a sociedade é estruturalmente racista e tudo que as pessoas e instituições praticam é feito de forma racista, em razão da estrutura social que foram formadas. Nas palavras do autor, o racismo é parte de um processo social que ocorre pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição, de modo que a validade da reprodução sistêmica de práticas racistas está na organização política, econômica e jurídica da sociedade, sendo que o racismo se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e jurídica, uma vez que o racismo, enquanto processo histórico e político, cria condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistêmica. Assim, para os defensores desta tese, ainda que indivíduos que cometam atos racistas sejam responsabilizados, a responsabilização jurídica seria insuficiente para que a sociedade deixe de ser uma máquina produtora de desigualdade racial.
Ora, a tese do racismo estrutural tem caráter homogêneo e totalizador. Sendo homogêneo, somos todos culpados por esse racismo, não havendo presunção de inocência. Nesse contexto, o movimento supremacista identitário tenta imputar à sociedade atual uma “dívida histórica” por atos da sociedade dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, que deveria, então, ser reparada. Ora, em qualquer sistema jurídico republicano, a responsabilidade é individual (a pessoa responde por seus próprios atos e não pelos atos de outrem), sendo criminoso falar em “reparação histórica”, pois essa ideia busca responsabilizar brancos do presente por atos de brancos do passado, favorecendo pretos do presente pelo sofrimento de pretos do passado. Sendo totalizador, o conceito acaba por perder o seu poder explicativo, pois se todo racismo é estrutural (como afirma Silvio Almeida), não se esclarecem os fenômenos sociais. Nesse contexto, o movimento supremacista identitarista tenta impor o conceito de racismo estrutural como o único possível de caracterizar o racismo (monopólio do racismo).
Assim, de um lado, tenta legitimar atos preconceituosos, discriminatórios e racistas contra outros grupos, criando uma licença para que minorias sejam racistas. De outro lado, usam o racismo, de forma abusiva e banal, como um escudo para qualquer situação da vida dessas pessoas. Consequentemente, não importam mais as razões pelas quais um negro foi preso, expulso de um lugar ou demitido do trabalho, não importa se matou alguém, se assediou as colegas ou se furtou algo da empresa, o que é importa é que ele é negro, logo sua prisão foi racista, sua expulsão foi racista, sua demissão foi racista ou fruto de perseguição porque a branquitude não consegue ver negros em lugar de destaque ou de poder. Os fatos não importam mais, agora o que importa é a cor da pele.
O próprio Silvio Almeida, principal autor e defensor da tese do racismo estrutural no Brasil, quando era Ministro de Direitos Humanos, após ser denunciado por dezenas de mulheres, incluindo a Ministra da Igualdade Racial, por importunação sexual, assédio sexual e moral, afirmou que estava sendo perseguido por um grupo de pessoas que queriam diminuir sua luta e afetar sua imagem por ser um homem negro e que com isso o combate ao racismo no Brasil perderia muito. Afirmou, ainda, que esse grupo de pessoas não suportava ver negros em lugares de poder e de destaque, colocando-se como uma vítima do racismo estrutural.
Ademais, a tese do racismo estrutural não possui qualquer base científica, até por ser irracional, assim como não possui qualquer base normativa, vez que não há qualquer lei, democraticamente elaborada pelos representantes do povo, que reconheça que um ato ou tratamento preconceituoso, discriminatório ou racista para ser considerado racismo (e crime de racismo) deve encaixar-se na tese do racismo estrutural.
Obviamente que, com isso, não se quer dizer que brancos ou cristãos sofram, constantemente, preconceito, discriminação e racismo na sociedade brasileira, longe disso. O que se quer é dizer que, também, existem atos racistas, discriminatórios e preconceituosos que são praticados por pessoas pertencentes a minorias políticas contra pessoas pertencentes a maiorias políticas, e, até mesmo, alas radicais e revanchistas de alguns movimentos que difundem preconceito, discriminação, exclusão e preferências contra pessoas brancas, contra cristãos etc. E esses atos e tratamentos, bem como esses movimentos, devem ser punidos da mesma forma que se pune atos racistas e movimentos racistas contra minorias. Afinal, a Constituição vedou a discriminação de qualquer natureza contra todas as pessoas e não apenas contra as minorias.
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