Relicitação obrigatória de bens, serviços e obras

No dinâmico cenário das contratações públicas, com relativa frequência, ocorre a paralisia de processos licitatórios ou de contratos já celebrados, que se arrastam por anos, submergindo a expectativa inicial da contratação em incertezas.

Nesse contexto, a relicitação obrigatória emerge não como uma faculdade, mas como um imperativo legal inafastável, diante das circunstâncias fáticas e temporais que tornam a contratação original desvantajosa, desnecessária ou tecnicamente inviável.

Perda da vantajosidade e questões relacionadas ao decurso do tempo

Um processo licitatório ou contrato que permanece paralisado por período significativo, dependendo do objeto, um ano, dois anos ou mais, em grande parte dos casos, perde a sua aderência à realidade que o motivou. O decurso do tempo, por si só, é um fator corrosivo da vantajosidade inicial, alterando as condições de mercado, a evolução tecnológica, as diretrizes orçamentárias e as próprias necessidades da Administração Pública.

A atual Lei de Licitações e Contratos enfatiza a importância do planejamento estratégico e da gestão por resultados. Nota-se que o artigo 5º da lei, ao elencar tantos princípios, estabelece a busca pela vantajosidade, pela eficiência, pela economicidade e pelo interesse público como pilares inegociáveis. Se a contratação original, após longa paralisação, já não atende a esses princípios, sua manutenção ou o prosseguimento sob as condições pretéritas configura um desvirtuamento do mandamento legal, inviabilizando a via da contratação de remanescente com outra licitante.

O artigo 11, inciso I, da Lei nº 14.133/2021, estabelece como um dos objetivos do processo licitatório o de assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto.

Quando o objeto originalmente licitado, por fatores supervenientes, não mais se alinha com o que seria mais vantajoso, a finalidade da licitação resta comprometida. O parágrafo único do artigo 11 ainda impõe à alta administração do órgão ou entidade a responsabilidade pela governança das contratações, exigindo a implementação de processos e estruturas, incluindo gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações. Uma paralisação prolongada exige, portanto, uma reavaliação sob a ótica da governança.

Integrando tal perspectiva, o artigo 18 da mesma lei detalha minuciosamente a fase preparatória da licitação, caracterizada pelo planejamento. Exige-se compatibilidade com o plano de contratações anual (isso por força do artigo 12, inciso VII, da lei) e com as leis orçamentárias, bem como a abordagem de todas as considerações técnicas, mercadológicas e de gestão que podem interferir na contratação.

No contexto dessa fase de planejamento, entre outras, essas balizas são essenciais:

1) a descrição da necessidade da contratação fundamentada em estudo técnico preliminar (ETP), que deve caracterizar o interesse público envolvido e a sua melhor solução, evidenciando o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, o que inclui um levantamento de mercado e a justificativa técnica e econômica da escolha do tipo de solução a contratar;
2) a definição do objeto por meio de termo de referência, anteprojeto, projeto básico ou projeto executivo;
3) o orçamento estimado, com as composições de preços; e
4) a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual.

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Assim, quando um projeto licitatório é concebido sob determinadas premissas e, por um hiato de um ou dois anos ou mais, as condições mercadológicas, técnicas ou operacionais se alteram drasticamente, a premissa fundamental do artigo 18 é violada.

O ETP original não mais reflete o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, e o levantamento de mercado está defasado, tornando o projeto original obsoleto e potencialmente prejudicial ao erário e ao interesse coletivo. O valor estimado da contratação, que deve ser compatível com os valores praticados pelo mercado e considerar contratações similares recentes (período de até um ano, em face do artigo 23, § 1º, inciso II), torna-se inexato, o que impacta a economicidade e a viabilidade econômico-financeira daquela futura contratação.

Obsolescência e inviabilidade em casos reais que levam à relicitação

A imposição da relicitação obrigatória decorre de uma avaliação pragmática e jurídica das consequências da inércia administrativa, de fatores externos incontroláveis ou da própria natureza de certos objetos contratuais.

Certos cenários emblemáticos exemplificam a necessidade de um novo certame.

A tecnologia da informação e comunicação, pois a dinâmica do setor de TIC é de constante e veloz inovação, sendo que os produtos de telecomunicações, por exemplo, podem se tornar obsoletos ou ter sua fabricação descontinuada em prazos curtos como de dois a três anos, equipamentos de TI (hardware), sistemas e softwares de segurança são constantemente atualizados, e a adesão a uma tecnologia defasada representa não só um risco à segurança dos dados e das operações, mas também uma evidente ineficiência e desvantagem tecnológica para a Administração, de modo que a relicitação será o caminho para o ente público buscar as soluções mais modernas, eficazes e seguras disponíveis no mercado, garantindo a seleção da proposta mais vantajosa para o ciclo de vida do objeto, dentro das diretrizes do artigo 11, inciso I, da Lei nº 14.133/21.

Obras de engenharia e infraestrutura, pois projetos de obras são muito suscetíveis a mudanças ao longo do tempo, sendo que uma obra que leve um ano para ser planejada e, em seguida, tenha dois anos de paralisação, pode ter suas necessidades estruturais completamente alteradas:

1) edificações podem ter significativos impactos, pois a capacidade de um prédio para comportar servidores públicos pode ser modificada por um novo concurso público, pela adoção generalizada do trabalho remoto, ou pela reestruturação de órgãos, equipamentos específicos de um projeto original podem se tornar incompatíveis com novas normas técnicas ou com a finalidade atual do empreendimento, ou mesmo serem descontinuados pelo mercado, o mesmo acontecendo com escolas e outras instalações públicas nas quais as situações de mudanças de demandas vão evidenciar que nem com eventuais alterações contratuais quantitativas e qualitativas se consegue resolver desafios supervenientes; e
2) infraestrutura, como as que envolvem aeroportos e rodovias, enfim, projetos de grande vulto, baseados em complexos estudos de demanda e viabilidade, que, pelo decurso de tempo com certas paralisações fazem com que demandas, como as de transporte possam não mais concretizar ou possam se elevar, prejudicando o que se tinha nas origens, do mesmo modo que certa rodovia planejada para determinado volume de tráfego pode se tornar superdimensionada ou subdimensionada, tornando o projeto original prejudicado, ineficaz ou economicamente inviável (embora esse tema tenha relação com sua legislação específica, de concessões e permissões, o “racional” será o mesmo).

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Existem ainda bens e serviços específicos comuns a se exemplificar:

1) na área médico-hospitalar, equipamentos tendem a se tornarem defasados e alteração de protocolos pode tornar desnecessários certos itens, em razão da demanda de certo local, com alteração de unidades e quantidades de algo diferente, que venha a exigir uma relicitação, porque a avaliação de consumo e utilização prováveis (artigo 40, inciso III, da lei), podem mostrar ser inviável a convocação de remanescente ou a alteração contratual;
2) em segurança pública, equipamentos para as forças policiais podem se tornar obsoletos em poucos anos, comprometendo a eficácia das operações e a segurança da população e dos agentes;
3) frotas de veículos podem sofrer com mudanças de modelos do mercado, com transições de modais de transporte, mudanças na quantidade de servidores em atuação presencial ou novas demandas decorrentes de políticas de trabalho remoto ou de novas plataformas de serviço, de modo que, em certos casos, não adiantará sequer pensar nas condições que estavam consideradas ainda na licitação de origem;
4) serviços contínuos, mesmo quando se tem repactuação de preços admitida (nos termos do artigo 135 da lei), se a necessidade fundamental do serviço se altera ou o mercado se transforma radicalmente, a relicitação pode ser a única via para assegurar a vantajosidade.

Nessas e em outras situações, a insistência em manter as bases da licitação ou do contrato paralisado não apenas gera prejuízos financeiros, pela contratação de bens ou serviços inadequados ou mais caros que as opções atuais, também compromete a qualidade dos serviços públicos e a consecução do interesse coletivo.

Distinção relevante entre relicitação e contratação de remanescente

Os cenários de relicitação e de contratação de remanescente possuem nítidas diferenças.

A contratação de remanescente, prevista no artigo 90, § 7º, da Lei nº 14.133/2021, é uma ferramenta útil e eficiente para concluir uma obra, serviço ou fornecimento quando o contratado original falha ou o contrato é rescindido, desde que as condições originais permaneçam vantajosas e adequadas à Administração. A norma permite a convocação dos demais “licitantes classificados” para dar continuidade ao objeto.

No entanto, quando as condições técnicas, mercadológicas e de necessidade da administração se alteram fundamentalmente ao longo de certo período de tempo por uma suspensão específica, a contratação de remanescente, sob premissas desatualizadas e um projeto obsoleto, torna-se uma solução paliativa e, em muitos casos, economicamente irracional e juridicamente insustentável. Nesses casos, a Administração não estaria buscando a proposta de resultado mais vantajoso, do artigo 11, inciso I, da lei, nem agindo com eficiência e economicidade, também da mesma lei

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A própria Lei nº 14.133/21 prevê cenários que levam à necessidade de uma nova licitação. O artigo 90, § 9º, da lei prevê que, se frustradas as providências para a contratação dos remanescentes (parágrafos 2º e 4º do mesmo artigo), o saldo de que trata o parágrafo oitavo poderá ser computado como efetiva disponibilidade para nova licitação, desde que identificada vantajosidade para a administração pública e mantido o objeto programado.

O dispositivo legal, ainda que condicione a manutenção do “objeto programado”, abre a porta para uma nova licitação (relicitação) quando as opções de continuidade se mostram inviáveis ou desvantajosas, reforçando que a aferição da vantajosidade é premissa para a decisão. A vantajosidade aqui não se restringe ao preço, mas engloba todas as dimensões do interesse público e do ciclo de vida do objeto.

De outro lado, o artigo 147 da lei oferece um arcabouço jurídico para a decisão sobre a continuidade ou a declaração de nulidade/suspensão de um contrato em caso de irregularidade, quando o saneamento não for possível. O legislador, ciente dos custos associados à paralisação e à eventual necessidade de reiniciar um processo, exige uma avaliação ponderada do interesse público, considerando diversos aspectos, entre os quais, os impactos econômicos e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato, os riscos sociais, ambientais e à segurança da população local decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato, o custo da deterioração ou da perda das parcelas executadas, a despesa inerente à desmobilização e ao posterior retorno às atividades, o custo para realização de nova licitação ou celebração de novo contrato e o custo de oportunidade do capital durante o período de paralisação.

Convém notar que, segundo o parágrafo único do artigo 147 da lei, esse conjunto de balizas não deve ser avaliado apenas em situações de anulação de contrato, mas paralisação, também, o que atrai a matéria para a discussão ora tratada. Será feito o questionamento, enfim, sobre ser a manutenção do contrato original ou a relicitação.

Por fim, uma hipótese bem peculiar de relicitação está plantada no artigo 148, § 2º, da lei, que se reporta a alguma nulidade no contrato, havendo, então, permissão de que se mantenha um contrato anterior pelo tempo suficiente para efetuar nova contratação, o que deve ser resolvido no prazo de até seis meses, prorrogável uma única vez.

Conclusão

A relicitação obrigatória tende a ser mecanismo essencial de salvaguarda do interesse público, da economicidade e da correta aplicação dos recursos públicos, conforme a sistemática da Lei nº 14.133/2021. Em face de paralisações prolongadas que resultem na perda da vantajosidade técnica, mercadológica, econômica ou operacional do objeto originalmente licitado, a Administração tem o inafastável dever de reavaliar as condições e, constatada a obsolescência ou a inviabilidade superveniente, proceder à realização de um novo certame.

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