Empresas do setor sucroalcooleiro temem que o Supremo Tribunal Federal revise decisões já transitadas em julgado em que a União foi condenada a indenizar os usineiros por prejuízos causados pelo tabelamento de preços do governo entre os anos de 1985 e 1999.
As condenações levam em conta o valor fixado abaixo do preço de mercado. Em um acordo feito em 1989, o governo se comprometeu a adotar o preço indicado pela Fundação Getúlio Vargas como forma de cobrir os custos do setor.
No ano seguinte, no entanto, o acordo deixou de ser cumprido sem aviso, segundo especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
De lá para cá, muitas das condenações transitaram em julgado. Agora, a Advocacia-Geral da União tenta diminuir os valores devidos. Segundo o setor, o órgão se vale de cifras infladas para pressionar o Judiciário a voltar atrás quanto às decisões já transitadas.
O governo fala em cerca de R$ 120 bilhões de prejuízo para a União. Levantamento feito pelo setor aponta que a dívida da União por conta dos prejuízos causados pelo tabelamento gira em torno de R$ 63 bilhões.
Histórico
Na esfera judicial, algumas usinas passaram a acionar o Judiciário em 1989 para obrigar que a União Federal fixasse os preços de acordo com as apurações técnicas de custo.
A pressão do setor levou o governo a sentar na mesa para buscar uma solução consensual, que levou a um acordo assinado em outubro do mesmo ano entre o Executivo e os representantes do setor sucroalcooleiro.
Na ocasião, ficou estabelecido que a fixação de preços deveria levar em consideração a apuração técnica de custos e a sugestão de preços definida pela FGV.
Maílson da Nóbrega, que era ministro da Fazenda em 1989, no governo de José Sarney, disse à ConJur que o acordo não foi assinado somente como uma espécie de “bondade” por parte da União. O que se apurou à época, além de negligência quanto às reivindicações dos usineiros, disse, foi o fato de que a União começava a ter prejuízos com as ações que chegavam ao Judiciário.
“Parecia inadequado não reconhecer essa realidade e, com isso, reduzir custos. Todas essas medidas geram custo, viagens, perícias, tanto para o governo quanto para as empresas”, contou.
Segundo o ex-ministro, o prejuízo do setor de açúcar e álcool foi, durante muito tempo, negligenciado. Ele afirma que os reajustes aos usineiros eram pequenos, a ponto de não cobrir custos, desde o governo de Ernesto Geisel (1974-1979).
Hamilton Dias de Souza, advogado tributarista que representou a Copersucar, maior cooperativa brasileira de açúcar e etanol, no acordo de 1989, disse que o pacto foi uma boa maneira de resolver a incompatibilidade entre custo e preço de venda. Sem aviso prévio, no entanto, o governo passou a descumprir o acordo em fevereiro de 1990.
“Até hoje a União nunca justificou o descumprimento do acordo. É um absurdo. Foi uma guerra para conseguir uma indenização correspondente ao que a União deixou de pagar. As ações visavam apenas a recuperação do prejuízo sofrido a partir do que verificavam as perícias quanto à diferença do controle de preços e o que constava no acordo”, afirma.
Ações e começo da reviravolta
A partir de 1990, com o descumprimento do acordo, as empresas ajuizaram diversas ações indenizatórias contra a União. Em 2005, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a indenização era devida com base no critério da diferença entre o preço praticado pelo governo e o que decorreria da apuração técnica da FGV, nos termos do acordo de 1989.
De lá para cá, cerca de 50 casos analisados no Superior Tribunal de Justiça e 30 no Supremo Tribunal Federal tiveram a mesma conclusão: de que a indenização era devida. Muitos deles já transitaram em julgado, com precatórios expedidos, pagos, distribuidos a sócios, acionistas e usados em negociações com o Poder Público.
Em 2013, o STJ analisou um recurso repetitivo envolvendo a Usina Matary (Tema 613), mantendo o direito à indenização, mas substituindo o critério da cálculo. Segundo a decisão, a dívida deveria ser calculada com base no custo efetivamente tido pela empresa.
Dois anos depois, no mesmo repetitivo, ficou definido que a decisão não alcançava os casos transitados em julgado, em respeito à coisa julgada, mas somente processos ainda em aberto. A União não entrou com recurso.
Em 2020, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar o Tema 826, envolvendo o mesmo caso, manteve a decisão do STJ. Na ocasião, o tribunal analisou um recurso da Usina Matary contra a decisão do STJ.
Agora, dizem os representantes do setor de açúcar e álcool, a União tenta se aproveitar desse caso que está no Supremo para aplicar a nova fórmula de cálculo também a processos que já transitaram em julgado e estão em fase de execução.
Após conseguir derrubar a chamada “revisão da vida toda”, a nova prioridade do governo seria justamente a revisão das ações bilionárias envolvendo o setor sucroalcooleiro. A União prevê perdas prováveis nos processos, mas quer mitigar os impactos mesmo assim.
O tema seria discutido pela 2ª Turma do Supremo no último dia 11, mas a decisão deve ficar para o segundo semestre de 2024. Trata-se do ARE 1.392.660.
No processo, a AGU defendeu em memorial a necessidade de que as usinas comprovem, por meio de perícia técnica individualizada, os prejuízos que os usineiros teriam sofrido com o tabelamento de preços, mesmo nos casos já em fase de execução de sentença.
Ou seja, buscam validar o novo cálculo em casos que já transitaram em julgado, ao contrário do definido pelo STJ e pelo Supremo.
Insegurança jurídica
Nóbrega, ministro que assinou o acordo em 1989, afirma que a União deveria ter contestado decisões antes de elas terem transitado em julgado e que o Supremo servirá como “fonte de insegurança jurídica” se alterar o valor das indenizações.
“Revisar uma decisão de última instância é criar um ambiente de insegurança jurídica e querer mudar o passado. Acho uma insanidade essa ação da AGU. E mais ainda se o STF revisar decisões transitadas em julgado”, afirmou.
Segundo ele, há diversos casos em que os diretores e sócios das empresas indenizadas já morreram e que os precatórios já foram inclusive vendidos.
“ Como ficam esses investidores se o Supremo definir que a dívida é menor? A credibilidade do Tesouro Nacional também estaria em jogo.”
Hamilton, que atuou no acordo como advogado, concorda. Ele também critica a AGU, que estaria exagerando o valor de eventuais prejuízos da União para pressionar o Judiciário.
“A AGU exagera. Já é uma luta absolutamente desigual. Quando as autoridades tentam reduzir o passivo da União a qualquer custo — e alguns juízes ficam sensíveis quanto a essa pressão de natureza econômica — se instala um ambiente de insegurança jurídica muito grande”, disse.
De acordo com ele, o mercado se reorganizou, em parte baseado nos valores definidos nas indenizações, o que permitiu que empresas em má situação se equilibrassem. Agora, afirma, as garantias dadas aos usineiros estão em risco.
“O que está em jogo é também a estabilidade das relações jurídicas. Era um assunto que estava morto. O mercado aceitou, os créditos circularam no mercado, foram adquiridos. Empresas que estavam em situação complicada se levantaram, o mercado inteiro se organizou com isso e agora querem reabrir o assunto.”
Daniel Szelbracikowski, advogado tributarista, questiona a própria possibilidade de rever decisões transitadas em julgado. Segundo ele, eventual alterações em casos já definidos afronta a Constituição, a autoridade de precedentes qualificados e abala a confiança das pessoas, instituições e do mercado no sistema de Justiça.
“A argumentação da União é não só inconstitucional, mas ilógica e contraditória. Afinal, o precedente do STF que a própria AGU usa para querer reabrir os casos transitados em julgado é exatamente o mesmo que confirmou e manteve o precedente repetitivo do STJ que determinou que fossem preservados os casos transitados em julgado”, disse à ConJur.
“Ou seja, o raciocínio da União é absurdo, inconstitucional e ilógico por ferir o princípio da não-contradição, a coisa julgada, a segurança jurídica e a estabilidade dos precedentes”, concluiu.
Prejuízo pode aumentar
Uma nota técnica feita por economistas afirma que se a União apostar na tentativa de revisão, os prejuízos podem aumentar, em vez de diminuir. O estudo é assinado pelos economistas José Roberto R. Afonso, Geraldo Biasoto e Murilo Viana. Clique aqui para ler.
A conclusão, tomada com base na análise de oito processos que não transitaram em julgado e foram recalculados com base no precedente do STJ de 2013, é a de que em 33% dos casos o valor devido aumentou 337% com o novo cálculo. Há casos em que o aumento foi de 800%.
“Se a União vier a adotar (para não dizer, apostar) em tal postura protelatória, ao se extrapolar as tendências reveladas por tais casos, é forte a perspectiva que venha a incorrer em maiores despesas públicas com as indenizações”, diz trecho da nota.
Ainda segundo o levantamento, poderia haver custos adicionais envolvendo sucumbência e multas. Admitindo apenas 1% de sucumbência sobre casos já pagos, que correspondem a cerca de R$ 59 bilhões, segundo o levantamento dos economistas, o aumento de despesas seria de R$ 590 milhões só em sucumbência.
“Pode ser antieconômico para o próprio Estado reabrir os casos transitados em julgado com perícia. O direito à indenização já está reconhecido”, conclui a nota técnica.
A ConJur entrou em contato com a AGU, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado caso o órgão se manifeste.
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Fonte: Conjur