O recente episódio envolvendo as declarações do empresário Elon Musk em desabono do Supremo Tribunal Federal e sua atuação relacionada a eventuais restrições ao uso de redes sociais (para fins reputados incompatíveis com a normatividade vigente) reacendeu o clamor pela regulação dessas redes.
O Supremo reagiu, não só com a edição, por sua Presidência, de comunicado em que reitera a submissão de empresas que operam no Brasil às leis e decisões das autoridades brasileiras, mas também com nota expedida pelo gabinete do ministro Dias Toffoli, relator do Tema 987 da repercussão geral a ser apreciado no RE nº 1.037.396/SP, na qual se informa que o feito será encaminhado para julgamento até o final de junho deste ano.
O quadro geral parece evidenciar uma infeliz combinação de fatores que aparentemente, não concorrem para um adequado equacionamento de um dos problemas públicos mundiais mais aflitivos no século 21, a saber, o potencial nocivo das redes sociais.
A matéria é sensível e envolve fortíssimos interesses de toda ordem. Não por outra razão o Congresso Nacional não alcançou consenso mínimo para deliberação sobre a matéria, não obstante a sinalização original do ministro Dias Toffoli de preferência pelo equacionamento pelo Legislativo, da questão suscitada no Tema 987 [1].
Fato é que, sob a pressão também do cenário político, acirrado pelo caráter eleitoral do ano de 2024, a Corte parece caminhar, sob a inspiração (talvez) do impulso inicial já ofertado pelo Judiciário com a edição da Resolução nº 23.732, de 27 de fevereiro de 2024, para oferecer ela mesma, o desenho de parâmetros postos à operação das redes sociais.
Limites da atuação do Supremo
Primeira questão a ser enfrentada, diz respeito a qual será a compreensão do STF no que diz respeito aos limites de sua atuação, em demanda que tem por objeto especificamente a constitucionalidade de um regime de responsabilidade civil estabelecido pelo artigo 19 da Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que tem sido interpretado como restritivo da responsabilização dos provedores de internet por danos decorrentes de conteúdo postado por terceiros.
Caso prevaleça a lógica do processo civil clássico, em que os limites objetivos da demanda orientam os mesmos contornos da decisão, a deliberação que se venha a construir no STF estará longe de merecer a alcunha de regulação de redes sociais — vetorização que compreenderia muitos outros aspectos além do referido regime de responsabilidade civil.
São conhecidas as advertências do potencial lesivo de aspectos do funcionamento de redes sociais que vão além da simples veiculação de conteúdo de terceiros. A erosão dos limites da privacidade pela autorização sub-reptícia de compartilhamento de dados pessoais; o concurso para o chamado capitalismo de vigilância [2]; a crise de saúde mental que se vem instalando entre os mais jovens pela aplicação de mecanismos verdadeiramente viciantes de fidelização [3]; os vieses que contaminam a personalidade algorítmica construída pelos mecanismos de IA [4] cujo aprendizado foi informado pelas pegadas digitais presentes (também) nas redes sociais; todos esses são aspectos que mereceriam tratamento em se cuidando verdadeiramente de regulação de redes sociais.
Caso, de outro lado, o STF opte pela reafirmação de que em sede de controle de constitucionalidade — ainda que aquele que originalmente não se punha na modalidade abstrata — não seja aplicável o rigor da adstrição aos limites objetivos da demanda, o risco parece residir numa aproximação que, a ver desta escriba, se anuncia desprovida de uma delimitação mais clara do problema público que se enfrenta, sem o que a resposta jurisdicional pode se apresentar inadequada, incompleta.
O debate sobre liberdade de expressão
É verdadeiramente intuitiva a compreensão de que, no tema específico da responsabilidade pela veiculação de conteúdo de terceiros — diferentemente do que se dá nos demais pontos sensíveis relacionados à ação das redes sociais acima indicados — tem-se a forte presença do tema da liberdade de expressão, derivação direta dos direitos da personalidade, consagrada também em nossa Constituição, no artigo 220. Todavia, é também conhecimento comum, aquele segundo o qual não se tenha na liberdade de expressão um direito absoluto — por isso o debate posto internacionalmente sobre os seus possíveis limites.
No Brasil, subjacente ao debate público, apresenta-se reproduzida, ainda que sem essa específica denominação, a dualidade de concepções apresentada por Owen Fiss [5] como instalada no cenário estadunidense: 1) a teoria libertária, centrada no autor da mensagem, que teria por foco a proteção da autonomia privada; e 2) a teoria democrática, que credita à liberdade de expressão, o potencial de instrumentalizar o autogoverno, pela garantia de acesso em favor dos cidadãos, a informação fidedigna sobre assuntos de interesse geral, que lhes permita formular suas próprias opiniões e decisões.
O discurso corrente, no tema da (equivocamente) chamada regulação de redes sociais no Brasil, tem contraposto exatamente, de um lado, uma pretensão libertária de um discurso a ser manifesto nas plataformas digitais sem qualquer limitação; e de outro lado, a necessidade de se prevenir a subversão do debate público decorrente de uma expressão desregrada nesses mesmos meios digitais.
Em aval à necessidade de constrição à manifestação em redes sociais, apresenta-se sempre o argumento ad terrorem das chamadas fake news, e todos seus efeitos nefastos — mas com isso se reduz, em verdade, o perigo associados à teoria libertária, que compreendem igualmente o efeito silenciador de manifestações divergentes, que pode se dar em relação não só às minorias tradicionalmente conhecidas (étnicas, economicamente vulneráveis, deficientes, etc.), mas também quanto àquelas novas categorias de vulneráveis que exsurgem na cyber era, como as vítimas da exclusão ou da iliteracia digital. A Ágora digital preconizada pelos libertários reproduz os erros da original, eis que é por natureza, excludente.
Tendência da corte
A sinalização que se extrai das manifestações dos ministros do STF parece indicar, quando menos, uma tendência à ampliação, possivelmente pela via da interpretação conforme a Constituição, dos termos em que se tem entendido a responsabilização das plataformas digitais, ao menos à luz do já referido artigo 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet).
Mais do que isso; a existência em si dos Inquéritos 4.781 (fake news), 4.874 (milícias digitais) em curso junto ao STF, este último instaurado ante a “presença de fortes indícios e significativas provas apontando a existência de uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político absolutamente semelhantes àqueles identificados no Inq. 4.781/DF, com a nítida finalidade de atentar contra a Democracia e o Estado de Direito” [6], sugere uma aproximação do direito à liberdade de expressão alinhada com a teoria democrática.
A se confirmar essa tendência da corte, mais do que a enunciação de um sistema de responsabilização de plataformas de redes sociais pela veiculação de conteúdo de terceiros que se caracterize em episódios distintos do descumprimento direto de ordem judicial; será preciso ter em conta outras providências associadas à garantia de um exercício de liberdade de expressão harmônico com a teoria democrática.
Afinal, a garantia da autodeterminação envolveria não só coibir as notícias grosseiramente falsas, mas igualmente considerar outros aspectos como a transparência da origem da fonte, e a existência de oportunidades de contradita a uma narrativa que se revele incompatível com o objetivo geral de possibilitar uma deliberação informada de parte do cidadão.
Encarar a questão da regulação de redes sociais a partir exclusivamente do ferramental clássico do direito, de comando e sanção, parece tarefa inglória — não por outra razão, a inclinação original do STF foi de chamar à responsabilidade o Legislativo, que deve enfrentar a matéria.
A recusa da Casa de Leis no desenvolvimento de tarefa que é sua deve encontrar, de parte do STF, resposta mais estratégica do que a pretensão de uma atuação substitutiva, numa matéria revestida de tantas nuances. Modular o tom do que se possa esperar de sua atuação; reiterar a responsabilidade primária do Legislativo na matéria; tudo isso parece prudente.
A par disso, na construção da resposta jurisdicional que aparentemente o STF parece disposto a apresentar, é de se ter em conta que a distorção do ambiente democrático informado pode se dar por mecanismos muito mais sutis do que fake news que se desautorizem pelo seu próprio caráter caricato. Remeter o juízo de identificação destas hipóteses mais delicadas a cada juiz oficiante no país afora parece um caso clássico de opção bem-intencionada, mas fadada ao fracasso.
[1] Tema 987 – “Discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros.”
[2] No tema, consulte-se a obra de Shoshana Zuboff – “A era do capitalismo de vigilância”.
[3] A cidade de Nova York judicializou a matéria, ofertando demanda em face das grandes corporações, para buscar co-financiamento do atendimento empreendido pelo sistema público de saúde.
[4] O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa. Como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Tradução Rafael Abraham, Santo André – São Paulo: Editora Rua do Sabão, 2020, p. 268.
[5] FISS, Owen M. A ironia da Liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública. Prefácio de Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto; Rio de Janeiro: FGV Direito Editora, 2022, p. 12-13.
[6] Extraído do despacho de prorrogação do prazo de conclusão do Inquérito 4874, havido em 19 de janeiro de 2024, disponível em https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/INQ4874708despacho.pdf, acesso em 10 de abril de 2024.
FONTE: Conjur