A questão levantada sobre a Resolução nº 581/2024 do CNJ, que faculta aos tribunais a adoção de sustentações orais de forma assíncrona, demanda uma crucial análise das práticas processuais por meio eletrônico e seus impactos na violação legal processual, na defesa dos jurisdicionados e nas prerrogativas dos advogados.
Pedro França/STJ
Como profissional dedicado ao estudo das práticas processuais por meio eletrônico, que participou representando o Conselho Federal da OAB durante todo o trâmite do PL que foi convertido na Lei nº 11.419/2006, e, atuou no comitê de regulamentação do processo judicial eletrônico no CNJ, logo após a vigência da lei em março de 2007, apresento a seguinte análise crítica sobre a referida resolução.
Concentração excessiva de poder no Judiciário
O Poder Judiciário mantém domínio integral sobre os sistemas de processo eletrônico, desde sua infraestrutura até sua gestão. Esta centralização permite modificações em procedimentos sistêmicos sem a devida análise jurídica, frequentemente negligenciando potenciais conflitos com a legislação vigente e desrespeitando prerrogativas fundamentais da advocacia e dos demais protagonistas processuais. A prática revela uma preocupante priorização do conforto operacional do Judiciário em detrimento do devido processo legal.
Em 2001, tive a honra de ser aluno do professor Lawrence Lessig na Faculdade de Direito de Harvard (EUA). Durante suas aulas, Lessig apresentava com brilhantismo os fundamentos de sua tese, consolidada em sua obra Code and Other Laws of Cyberspace, publicada em 1999. Naquele período, suas ideias pareciam visionárias, mas hoje percebo, com clareza, como elas dialogam diretamente com questões que enfrentamos no Brasil, como a sanção da Resolução nº 591 do CNJ, que faculta a sustentação oral assíncrona nos tribunais.
Lessig defende, há 25 anos que, no mundo digital, o código — ou seja, a programação, as rotinas operacionais sistêmicas que regulam os sistemas e as plataformas — funciona como uma forma, às vezes mais preponderante do que a efetividade de uma lei preexistente. Essa ideia se manifesta de maneira concreta quando o CNJ, que detém controle pleno e isolado da infraestrutura tecnológica do sistema de justiça brasileiro, utiliza esse poder para modificar práticas processuais consolidadas, como a sustentação oral síncrona, garantida pela legislação brasileira. Este poder será potencializado no ano de 2025, após o lançamento da plataforma Codex, ocorrido no início do mês de dezembro de 2024, que será a plataforma única de práticas processuais por meio eletrônico, envolvendo todos os noventa e três tribunais brasileiros, à exceção apenas dos tribunais militares.
Ao facultar a sustentação oral assíncrona, o CNJ cria, na prática, uma nova modalidade de prática processual, em contradição a vários dispositivos legais preexistentes que asseguram a realização da sustentação oral presencial ou síncrona por videoconferência. Tal medida interfere diretamente na legislação vigente, nos direitos de defesa dos jurisdicionados e nas prerrogativas da advocacia e dos demais atores processuais.
O tema desta resolução do CNJ, por ser de caráter essencialmente processual e regulamentado por lei, não passou pelo crivo do processo legislativo, mas resulta de decisões administrativas e técnicas. Como se vê, revela o que Lessig preconizava: quem controla o código, controla o comportamento, e, neste caso, as formas possíveis das práticas processuais por meio eletrônico.
Essa concentração de poder evidencia um problema grave: o código e as rotinas sistêmicas que operacionalizam a prática processual eletrônica, torna-se uma norma autônoma, que desconsidera princípios constitucionais e processuais, como a necessidade da prática de sustentação síncrona, o contraditório e a ampla defesa.
Como advogado e defensor das garantias processuais, vejo nesta situação o exato dilema que meu mestre apontava: a necessidade de garantir que o código seja projetado pelo Judiciário, mas com governança, com transparência, ética e participação efetiva de todos os atores processuais nos debates prévios à vigência da resolução, a exemplo do que ocorreu recentemente com a audiência pública convocada pelo CNJ para discutir a regulamentação da inteligência artificial no Judiciário.
A solução para este impasse, à luz da visão de Lessig, está em exigir:
- Governança colaborativa permanente no desenvolvimento de sistemas judiciais, para que todos os atores processuais, sobretudo a advocacia, participem das discussões das decisões tecnológicas e não apenas sejam comunicados pelo Judiciário, das medidas que afetam as suas prerrogativas pelo Diário Oficial.
- Submissão do código e das mudanças das práticas processuais definidas em lei ao controle prévio de legalidade, evitando que normas operacionais sobreponham-se ao ordenamento jurídico.
- Defesa enfática das prerrogativas advocatícias dos protagonistas processuais, com a atuação da OAB e de outras entidades no combate a medidas que desrespeitem o direito de defesa.
Como ex-aluno de Lawrence Lessig, enxergo na tese de The Code is Law um alerta poderoso para o que enfrentamos no Brasil neste momento de vigência da Resolução nº 591/2024 do CNJ. Não podemos permitir que as “leis das práticas processuais por meio eletrônico” do CNJ, transformem-se em um instrumento de exclusão, afetando direitos fundamentais em nome da conveniência técnica. O código, como dizia meu mestre, precisa servir à lei, e não substituí-la.
Devemos nos manter submissos apenas a Constituição e aos Códigos Processuais, mas não ao CPST – Código de Processo do Sistema dos Tribunais.
Delegação desmedida de poder normativo hierárquico inferior aos tribunais
A Lei nº 11.419/2006, em seu artigo 18, conferiu aos tribunais o poder de regulamentar o processo judicial eletrônico, ou seja: “Art. 18. Os órgãos do Poder Judiciário regulamentarão esta Lei, no que couber, no âmbito de suas respectivas competências”. Logo após a vigência da lei em março de 2007, a OAB Federal questionou a constitucionalidade deste dispositivo (ADI nº 3.880) e foi rejeitada, resultando em um “cheque em branco” ao Judiciário para criar, seguidamente, normas regulatórias sobre práticas processuais sistêmicas recorrentes, que extrapolam os limites legais e conflitam regras processuais por meio de regulamentações internas, sem respeitar a hierarquia legislativa.
Perpetuação de práticas prejudiciais sistêmicas
A implementação de Resoluções como a nº 591/2024, possibilita a vigência imediata de procedimentos processuais que impactam diretamente o exercício da advocacia. A ausência de análise prévia criteriosa, somada à morosidade de um julgamento de ADI, favorece a consolidação de práticas nocivas aos advogados, promotores, procuradores, defensores públicos e jurisdicionados, estabelecendo novos hábitos administrativos em desconformidade com a legislação.
Comprometimento das prerrogativas profissionais
Estas regulamentações, frequentemente editadas sem a devida participação da classe advocatícia, resultam em violações a direitos essenciais dos advogados. As restrições à sustentação oral não apenas afetam nossas prerrogativas, mas também prejudicam os jurisdicionados e comprometem a paridade de armas no processo.
Principais violações e prejuízos identificados na resolução
Violação ao contraditório e ampla defesa (Art. 5º, LV da CF/88)
– A sustentação oral presencial permite interação direta com os julgadores
– O formato assíncrono elimina a possibilidade de perceber reações e adaptar argumentos
– Perde-se a capacidade de responder questionamentos em tempo real
Violação ao CPC/2015
– Art. 937 estabelece expressamente o direito à sustentação oral presencial
– Art. 7º garante paridade de tratamento entre as partes
– Art. 9º assegura o contraditório participativo
– Art. 10 veda decisões surpresa sem prévia oportunidade de manifestação
5.3. Prejuízos às Prerrogativas da Advocacia (Lei 8.906/94):
– Art. 7º, IX – direito de sustentação oral presencial
– Art. 7º, X – direito de usar a palavra pela ordem
– Compromete a essência da advocacia como função essencial à justiça
– A Lei nº 8.625, Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, preceitua no artigo 41, inciso III, que é prerrogativa dos membros do Ministério Público, no exercício de suas funções, “ter vista dos autos após distribuição às Turmas ou Câmaras e intervir nas sessões de julgamento, para sustentação oral ou esclarecimento de matéria de fato”.
Impactos práticos
– Redução da qualidade da defesa técnica
– Impossibilidade de rastreamento se o magistrado assistiu a sustentação oral assíncrona do advogado
– Impossibilidade de adequar argumentos conforme a dinâmica do julgamento
– Prejuízo à construção dialética do convencimento dos julgadores
– Risco de decisões sem completa compreensão das questões debatidas
Violação à Resolução CNJ nº 314/2020
– Art. 3º estabelece que atos processuais que exijam presença física devem ser realizados por videoconferência
– A sustentação oral, mesmo que remota, deve preservar interação em tempo real
Aspectos constitucionais
– Ofensa ao devido processo legal (Art. 5º, LIV, CF/88)
– Violação ao princípio da publicidade dos atos processuais (Art. 93, IX, CF/88)
– Comprometimento da garantia de acesso à justiça (Art. 5º, XXXV, CF/88)
Jurisprudência relevante
O STF já se manifestou sobre a importância da sustentação oral como instrumento de defesa, destacando sua natureza essencialmente presencial e interativa (HC 84.193/RS)
Sugestões para solução do impasse
Consulta e participação
O CNJ deve ser instado pelos atores processuais, a garantir que qualquer regulamentação de práticas processuais por meio eletrônico passe por ampla consulta pública, para pleno exercício transparente da governança digital no Poder Judiciário. É inegável que se a tecnologia for bem utilizada teremos como finalidade o conforto operacional, porém é importante o CNJ estar atento que o foco das inovações tecnológicas deverá ser a Justiça e não apenas o conforto do Judiciário em detrimento das prerrogativas de outros protagonistas processuais.
Controle de legalidade
O STF deve ser sempre acionado como guardião da Constituição para revisar atos normativos que violem os limites legais.
Reforço institucional
A OAB e outras entidades de classe, devem intensificar o diálogo com o CNJ e os Tribunais para impedir a edição de normas que prejudiquem a advocacia, utilizando a via administrativa e judicial quando necessário.
Propostas para preservação das garantias processuais
– Manutenção da sustentação oral síncrona (presencial ou por videoconferência)
– Evitar que magistrados adotem despachos judiciais com advogados por telefone.
– Garantia de infraestrutura adequada para realização remota quando necessário.
– Preservação da interação em tempo real entre advogados, demais atores processuais e julgadores.
– Respeito às prerrogativas profissionais estabelecidas em lei.
A título de conclusão, defendo veementemente as inovações tecnológicas, porém com o exercício da governança. Este papel a ser exercido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é essencial para regulamentar práticas processuais realizadas por meio eletrônico, especialmente diante do avanço tecnológico que transforma o funcionamento do sistema judiciário. Essa regulação busca harmonizar as inovações digitais com a legislação vigente, prevenindo conflitos que possam comprometer a segurança jurídica e a previsibilidade dos processos.
Além disso, é fundamental garantir a defesa dos jurisdicionados, assegurando o pleno acesso à justiça e a observância dos direitos fundamentais. Nesse contexto, o CNJ também tem o papel de resguardar as prerrogativas da advocacia e dos protagonistas processuais, que são indispensáveis para o equilíbrio da relação processual, promovendo uma justiça eficiente, inclusiva e pautada pela legalidade.
Por estes motivos, é necessária a reavaliação da Resolução nº 581/2024 e acate o pedido de de suspensão da norma proposto pela OAB Federal, assegurando que a modernização tecnológica do Judiciário não se sobreponha às garantias processuais fundamentais e às prerrogativas de todos atores processuais.
A sustentação oral assíncrona representa um retrocesso inadmissível no exercício do direito de defesa e na própria essência da advocacia como função essencial à Justiça, sendo necessária alteração legislativa prévia, não podendo tal mudança ocorrer por mero ato administrativo do CNJ.
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