Neste mês, presenciamos pela primeira vez no país a cassação de um vereador do município de São Paulo por suas declarações racistas. O momento enseja reflexão, e neste ensaio traremos algumas das diversas considerações que merecem um olhar atento.
Camilo Cristófaro (Avante) foi processado pela Câmara Municipal de São Paulo, e teve o seu mandato cassado por quebra de decoro parlamentar, com 47 votos a favor e 5 abstenções, na maior cidade do país, que tem a sua população local representada por 55 integrantes do legislativo.
Em um áudio vazado, durante uma sessão remota da Comissão Parlamentar de Inquérito — CPI dos Aplicativos —, o vereador foi ouvido dizendo: “é coisa de preto”, uma fala inegável e indiscutivelmente racista!
A função legislativa, uma das três exercidas pelo Estado, engloba atribuições de predominância relacionadas à atividade fiscalizadora (BRASIL. CRFB, 1988, artigo 49, X), por exemplo, e de elaboração de leis (BRASIL. CRFB, 1988, artigo 59 ss.), para além de outras, de natureza atípica ou não predominante, concernentes à sua competência julgadora, como nos casos em que a Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o(a) Presidente(a) e o(a) Vice-Presidente(a) da República (BRASIL. CRFB, 1988, artigo 51, I), e o Senado Federal processa-os e julga-os pela suposta prática de crime de responsabilidade (BRASIL. CRFB, artigo 52, I); ou, ainda, quando desempenha atividades de cunho administrativo.
Essas e outras atribuições do Legislativo são de competência dos(as) parlamentares eleitos e eleitas diretamente pelo povo, em uma manifestação da soberania popular, caracterizando a representatividade da democracia indireta, uma das bases do Estado Social Democrático de Direito brasileiro, cujos fundamentos e limites são constitucionalmente definidos e, portanto, devem ser respeitados, seja porque a Constituição é a norma que legitima social, jurídica e politicamente tal manifestação de poder; seja porque o princípio da separação das funções do Estado, e o sistema de “freios e contrapesos”, outro axioma que subsidia a formação do Estado brasileiro constituído a partir da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, estabelecem parâmetros que devem ser seguidos para a efetivação do equilíbrio e da independência entre os três poderes. A imunidade parlamentar representa um desses parâmetros.
Prevista no texto normativo constitucional a partir do artigo 53, a imunidade parlamentar, como garantia para o livre exercício das competências legislativas, não é prerrogativa de titularidade subjetiva, direito ou mesmo privilégio de cada representante popular; pelo menos, não foi tal a razão da sua previsão, tanto que são inalienáveis.
Pensada para operar como um mecanismo de proteção da liberdade e da não sujeição às pressões autoritárias e exógenas, para além da vontade popular, a imunidade parlamentar se apresenta como uma garantia institucional, e se manifesta a partir de distintas perspectivas — material ou formal – e seu início é marcado pela diplomação, ou posse, no caso da imunidade material do(a) representante popularmente eleito(a).
Por ocasião das reflexões trazidas neste ensaio, cumpre-nos pontuar alguns vieses que as acompanham acerca da imunidade material, a partir da perspectiva da violência política.
O caput do artigo 53 (BRASIL, CRFB, 1988) estabelece que deputados(as) e senadores(as) são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Ainda que o constituinte não tenha demarcado o prazo ab initio da vigência desta imunidade, resta evidente, pela elaboração do texto normativo, que é a posse que instaura esse momento, porque é a partir de quando serão emitidas palavras, opiniões e proferidos votos em razão da atuação na Casa legislativa.
Assim, se a premissa da imunidade parlamentar é a de garantir o exercício da função legislativa, sob a perspectiva material, tal garantia institucional iniciar- se-á com as atividades legislativas, marcadas pela posse.
De todas as manifestações da imunidade parlamentar, o que temos hoje é que a material é a única que acompanha o Legislativo em todas as unidades federativas; portanto, vereadores e vereadoras, nos termos do artigo 29, VIII (BRASIL.CRFB, 1988), também são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município, matéria que teve repercussão geral reconhecida e mérito julgado pelo Supremo Tribunal Federal, nestes termos: “[…] nos limites da circunscrição do Município e havendo pertinência com o exercício do mandato, os vereadores são imunes judicialmente por suas palavras, opiniões e votos” (RE 600.063 , red. do ac. min. Roberto Barroso, j. 25-2-2015, P, DJE de 15-5-2015, Tema 469.)
Um segundo aspecto interessante para o recorte deste artigo se refere ao alcance horizontal da imunidade material, que não é absoluta porque limitada pela própria Constituição que a estabelece. Independentemente de onde estiver, o(a) parlamentar será imune, sob a perspectiva material, desde que exercendo atividades durante e em razão do seu mandato; isto porque, a função legislativa compreende ações que são realizadas para além dos limites da casa parlamentar, em visitas à base política, muitas vezes realizadas durante os fins de semana, quando estão nas suas cidades.
Ocorre que a imunidade parlamentar, mesmo quando opera no recinto, virtualmente ou não, da casa legislativa não é absoluta; a própria função parlamentar, que justifica a imunidade, deve atender aos parâmetros constitucionais, princípios e normas estabelecidos pelo constituinte derivado ou reformador, e onde quer que a imunidade parlamentar seja aplicada, mesmo para além do parlamento, tais limites devem ser observados, considerando que a representação popular requer que sejam preservados os valores da liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça como bases supremas de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, tal como nos apresenta o intróito da norma constitucional expresso no preâmbulo do seu texto.
Em entendimento manifestado em sede de Inquérito nº 3.932 (e Pet nº 5.243), de relatoria do ministro Luiz Fux, restou assentado que entrevista concedida a veículo de imprensa não atrai a imunidade parlamentar, porque, in casu, ao afirmar que não estupraria a deputada federal porque ela “não merece” confere a esse delito gravíssimo o caráter de prêmio ou benesse à mulher, reforçando uma relação de subalternização da mulher em relação ao homem, também nesse espaço político, ao pretender que ele, o homem, pudesse avaliar o merecimento de uma mulher em ser ou não estuprada.
Assim, tais manifestações, absolutamente estranhas ao exercício do mandato legislativo, e mesmo a qualquer convívio digno em uma sociedade, que deve ser revestida por um mínimo grau de civilidade, ainda que a entrevista tenha sido concedida no interior da casa parlamentar, não atenua a gravidade do ato, tampouco aproxima a incidência da imunidade parlamentar, conquanto essa nem sequer poderia ter sido lançada como fator de proteção de uma subjetividade e ilícita, violando, assim, as premissas do instituto de tal garantia.
Vejamos que a imunidade parlamentar não pode ser utilizada como um manto protetor de arbitrariedade e violações de direitos, principalmente, porque existe uma responsabilidade política que deve ser arcada por quem se predispõe a ocupar os espaços de poder e decisórios como representantes populares; ademais, não existe qualquer obrigatoriedade imposta pela legislação nacional ou supranacional no que toca ao exercício dessa manifestação que se expressa por meio da capacidade eleitoral passiva.
Em outros termos, quem concorre aos cargos eletivos precisa respeitar as regras do jogo democrático, ter responsabilidade política e conhecer não apenas os termos constitucionais, como os limites impostos ao longo dessa jornada democrática.
Infelizmente, a realidade brasileira nos situa em um cenário ainda mais insólito quando as reflexões acerca da imunidade parlamentar perpassam pelos debates referentes às múltiplas formas de violência política.
Entender política é compreender como, através da manifestação de poder, um status quo pode ser (re)pensado de forma que as necessidades sociais e demandas públicas sejam satisfeitas da melhor forma a minimizar os (des)níveis abissais de desigualdades que nos assolam, nas mais distintas perspectivas. Portanto, a política acontece a todo momento, e a violência a acompanha, infelizmente, em espaços institucionalizados ou não.
Nessa medida, uma das principais questões relacionadas ao debate de gênero, por exemplo, e ainda partindo de uma perspectiva binária da sociedade, consiste exatamente na relação de opressão do homem em relação à mulher: o uso do poder não como um elemento agregador, mas de controle, submissão e opressão. O mesmo ocorre em relação às pessoas negras, indígenas, quilombolas que se inserem em grupos de vulnerabilidades as mais diversas em uma sociedade marcadamente desigual, como a brasileira.
E trazer essa perspectiva para o ambiente da imunidade parlamentar faz-se necessária, sob dois enfoques: porque as pessoas vítimas da violência política também são mandatárias populares; e também quando parlamentares, valendo-se do que supõem como caráter absoluto da imunidade parlamentar, usurpam da confiança que foi em si depositada pelo povo e de forma irresponsável, não apenas sob a perspectiva política, como civil e penal, praticam violências, mesmo quando não estão no espaço da casa legislativa.
Agridem, portanto, quem deveriam proteger, e, inclusive, seus próprios pares!
A ocupação pelas mulheres e de pessoas negras das casas parlamentares, e outras esferas de poder, é o resultado de muitas lutas. Em uma sociedade historicamente estruturada pela hierarquização do seu povo em razão de fatores que implicam exclusão, inclusive política, é um constante romper barreiras à entrada em espaços, como a política, não pensados para e pelos sujeitos marginalizados.E mais: revela muito quem somos como sociedade preconceituosa e das dificuldades enfrentadas por distintos segmentos para exercerem direitos reconhecidamente fundamentais, em uma carta cidadã, de modo que a autodeterminação como indivíduo e autonomia do seu ser possam ser exercidas livremente.
Quando pessoas que integram grupos vulnerabilizados 1 socialmente se inserem nesses espaços de poder ou decisórios, são vistas por muitos como intrusas, porque supostamente não lhes cabem tais funções, em uma sociedade pensada sob o olhar hierarquizado de um(a) opressor(a), protagonistas que, sob sua ótica, devem ser. Sob a perspectiva da mulher, quando apresentamos as distintas interseccionalidades que atravessam o debate de gênero, considerando a inexistência da mulher universal e única, mas sim, de mulheres, identificamos que apesar de serem igualmente titulares dos mesmos direitos, nos termos constitucionais, deparam-se com distintos obstáculos, mais ou menos pesarosos, para o exercício do que a ordem constitucional lhes garante, a depender de onde se situam nessa escala das vulnerabilidades que marcam a existência, e a construção, do seu ser, como mulher.
Inegável, parece-nos a necessidade de reafirmar um compromisso coletivo — e mais que isso: cumprir os ditames constitucionais, acerca da efetivação dos limites à atuação do parlamentar, no exercício de uma função pública que clama por respeito e punições diante da violação de direitos mais básicos, como os da igualdade de gênero e racial, p. ex., e de valores essenciais ao Estado democrático de Direito, como o da cidadania e o da dignidade da pessoa humana, insculpidos no artigo 1º (BRASIL. CRFB, 1988). E por quem se predispôs a ser a voz do povo e, assim, em sua diversidade, essência e existência, respeitá-lo, no exercício de sua autonomia e dignidade humana.
Portanto, no âmbito civil, a responsabilidade pelo pagamento de indenizações por danos morais, e eventualmente patrimoniais, do mandatário que pratica violência política é inequívoca.
Assim como também o é na seara criminal, com amparo na Lei nº 14.192, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, e de acordo com o artigo 359-P, do Código Penal, tipifica como crime a violência política, com pena de reclusão de três a seis anos, e multa, além da pena correspondente à violência, restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, cor, etnia, religião ou procedência nacional; isso, sem observar outras tipificações de eventuais crimes contra a honra, como calúnia, injúria, difamação, a depender do caso concreto.
Inequivocamente, incide a responsabilidade política, nos termos da norma contida no artigo 55, da Constituição, que determina a perda do mandato parlamentar, nas situações previstas em seus incisos, cuja incidência se aplica aos casos de violência política de gênero, em outra hipótese constitucional, a depender dos delineamentos da situação fática.
Sendo assim, a inviolabilidade civil, penal e política deve ser afastada diante de agressões praticadas por quem deve servir o povo e ser o(a) defensor(a) do bem-social, fraternidade e justiça, como valores supremos da ordem constitucional que legitima a ocupação dos espaços de poder, públicos e decisórios.
*Baseado no artigo “Violência política de gênero no sistema internacional e no ordenamento interno: o Estado Constitucional Cooperativo sob enfoque” escrito pelas duas autoras e publicado na Revista Direito Mackenzie 2023, v.17, n.1, p. 1-31 ISSN – 23172622.
1 “As condições de existência material dessa população negra remetem a condicionamentos psicológicos que devem ser atacados e desmascarados. Os diferentes modos de dominação das diferentes fases de produção econômica no Brasil parecem coincidir em um mesmo ponto: a reinterpretação da teoria do lugar natural, de Aristóteles. Desde a época colonial aos dias de hoje, a gente saca a existência de uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas, etc. até a polícia formalmente constituída. Desde a casa-grande e do sobrado, até os belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente. Da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço. No caso do grupo dominado, o que se constata são famílias inteiras amontoadas em cubículos, cujas condições de higiene e saúde são as mais precárias” (GONZALEZ, L.; HASENBALG, C. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. p. 14-15).
Fonte: Conjur