A força expansiva do processo estrutural e o direito de livre associação

Esta coluna tem registrado o esforço do Congresso Nacional para dotar o país de um anteprojeto de lei do processo estrutural [1]. A iniciativa mais recente foi a comissão de juristas instituída pelo presidente do Senado, formada por 22 especialistas, presidida pelo subprocurador-geral da República Augusto Aras e secretariada pelo desembargador federal Edilson Vitorelli. Instalada em junho de 2024, a comissão concluiu os seus trabalhos em 31 de outubro, com a apresentação de um anteprojeto de lei do processo estrutural brasileiro, que passará a tramitar como projeto de lei a partir do Senado.

O termo “processo estrutural” refere-se a situações de conflito social envolvendo políticas públicas (tidas por insuficientes para assegurar os direitos individuais e sociais a que se prestam), complexidade e pluralidade de atores, públicos e privados. São conflitos insolúveis pelas técnicas tradicionais da jurisdição, aquelas nas quais o juiz é um mero centro emissor de éditos de diagnóstico e prescrição. Quando a insuficiência de políticas públicas, sua inefetividade, é submetida ao arbitramento jurisdicional, o que se quer no processo estrutural é que o juiz lance mão de técnicas de cooperação e negociação que resultem numa uma solução efetiva e duradoura para o problema.

Este novo juiz, articulador de consensos, precisará estar dotado de um ferramental específico para presidir a bom termo processos estruturais. Será monitorado – o anteprojeto de lei prevê que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instaure mecanismos de avaliação da atividade dos juízes em processos estruturais –, mas também apoiado – se a causa for muito complexa, o juiz poderá ser liberado de suas outras funções para dedicar-se exclusivamente a um processo estrutural. Mutatis mutandis, isso valerá também para o Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia Pública.

READ  STF retoma julgamento sobre validade do trabalho intermitente

Uma nova cultura da jurisdição e os movimentos sociais

Para além destes mecanismos de controle e apoiamento interno dos agentes estatais, o anteprojeto de lei prevê que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) criem uma base de dados sobre acordos e processos estruturais, encerrados e em andamento, com disponibilização ao público das principais peças processuais e de sumários em linguagem compreensível pelo leigo.

É de se esperar que a referida base de dados passe aos poucos a ser objeto de amplo conhecimento público, de estudos acadêmicos, de reportagens, de referências cruzadas em processos estruturais, ao ponto de chegar a constituir uma massa crítica, uma nova cultura da atuação judicial na composição de conflitos sociais complexos envolvendo pluralidade de atores com reflexos duradouros em políticas públicas voltadas à realização de direitos individuais e sociais.

A emergência dessa nova cultura da jurisdição – que demanda um novo juiz e um novo Ministério Público – tende a se espraiar pelo sistema jurídico para alcançar o que chamamos aqui em outro momento de “processos estruturais implícitos”:

“Mas, a rigor, não é necessário que um órgão julgador explicite que um litígio sob sua jurisdição é nominalmente um processo estrutural para que a estrutura conceitual e procedimental do processo estrutural se faça presente no impulso oficial que faz o processo avançar até a decisão. Dito de outra forma, sempre que o iter processual do processo estrutural seja condição para uma solução justa, o juiz deve desvestir-se dos instrumentos tradicionais de formação solitária (ou solipsista) do livre convencimento para fazer a persuasão racional fincar sua legitimidade na lógica decisional do processo estrutural.”

É previsível que tal natureza implícita do processo estrutural revele-se com força impositiva quando processos individuais – aparentemente não complexos – exigirem para o seu deslinde uma compreensão pelo julgador até mesmo da dinâmica interna dos movimentos sociais.

READ  Se quiser, vá para a Justiça! Mas não pago honorários...

Ao consagrar status constitucional ao direito de livre associação (artigo 5º, XVII) para a realização do programa constitucional da igualdade, o Constituinte reconheceu aos movimentos sociais poder de auto-organização nos limites do direito estatal.

A repartição funcional das competências do Estado reserva ao Judiciário a jurisdição (dizer o Direito). No exercício da liberdade de associação e auto-organização, os movimentos sociais produzem direito, o direito necessário à consecução dos fins sociais que lhe conferem valor social e legitimidade constitucional. Para ser fiel ao programa civilizatório da Constituição de 1988, o Judiciário, ao dizer o Direito, deve ter em conta a produção normativa dos movimentos sociais. Não como condição para a aplicação soberana do direito estatal, que não há de ser afastado nem restringido, mas para que se tenha a auto-organização dos movimentos sociais como fonte legítima de interpretação e aplicação da lei.

A produção do Direito é, não raro, conflitiva. Como na sociedade geral, nos movimentos sociais as maiorias se consolidam sob a forma jurídica. O que na sociedade são as fontes de produção do Direito estatal – o Parlamento, por excelência –, nos movimentos sociais são os colegiados formais e informais produtores das normas de natureza ético-comportamental e procedimental teleologicamente orientadas aos fins legítimos do movimento.

Assim como na sociedade, também nos movimentos sociais a legitimidade normativa interna resultante da prevalência das maiorias sobre as minorias há de ser interpretada pelo Judiciário em chave axiológica e teleológica: é justo e instrumentaliza o fim legítimo de assegurar direitos individuais e sociais por meio de políticas públicas a serem protegidas e aprimoradas pelo processo estrutural?

O tema, na aparência mera e vã indagação filosófica, revela-se fundamental para a produção de decisões judiciais justas, como revela a experiência recente. Voltaremos a ele oportunamente, mesmo porque ele é de ser considerado pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados no projeto de lei do processo estrutural brasileiro, cuja tramitação está em vias de iniciar.

READ  Rescisória (como compensação) contra errônea aplicação de precedentes

Alea jacta est. 


[1] O processo estrutural contra a judicialização da política https://www.conjur.com.br/2024-abr-23/o-processo-estrutural-contra-a-judicializacao-da-politica/

Reconstrução do RS: New Deal e lei do processo estrutural brasileiro https://www.conjur.com.br/2024-mai-21/reconstrucao-do-rs-new-deal-e-lei-do-processo-estrutural-brasileiro/

STF e a constitucionalidade dalei do marco temporal: back lash e processo estrutural https://www.conjur.com.br/2024-jul-16/stf-e-a-constitucionalidade-da-lei-do-marco-temporal-backlash-e-processo-estrutural/

Desafios do processo estrutural: o estado da arte no Congresso e no STF https://www.conjur.com.br/2024-ago-20/desafios-do-processo-estrutural-o-estado-da-arte-no-congresso-e-no-stf/

A força expansiva da ideia de processo estrutural: limites e possibilidades https://www.conjur.com.br/2024-nov-02/a-forca-expansiva-da-ideia-de-processo-estrutural-limites-e-possibilidades/

A força expansiva do processo estrutural e os processos estruturais implícitos https://www.conjur.com.br/2024-dez-24/a-forca-expansiva-do-processo-estrutural-e-os-processos-estruturais-implicitos/

O post A força expansiva do processo estrutural e o direito de livre associação apareceu primeiro em Consultor Jurídico.