Talvez aconteça com boa parte dos leitores de textos jurídicos, mas se deparar com uma abordagem que recorra a conceitos de outras ciências (História, Psicologia, Literatura, Filosofia etc.) oferece um genuíno deleite intelectual. Não por diletantismo. Essa abordagem interdisciplinar permite expandir horizontes de compreensão para visualizar determinado fenômeno, tanto quanto possível, como um todo. Afinal, a realidade não é fracionada. Ela é apenas uma e cada vez mais complexa.
Edgar Morin [1] denunciou que “a inteligência que só sabe separar fragmenta o complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo”. Essa citação foi transcrita na introdução da dissertação de mestrado [2] deste autor, no agora longínquo ano de 2014, em pesquisa sobre uma determinada hipótese de inelegibilidade, portanto, dentro do eixo temático de Direito Eleitoral, porém com apoio de valiosas lições de Epistemologia, Filosofia, Ciência Política e até mesmo um pouco de Neurociência.
Essa interlocução intelectiva aproxima-se da metodologia dialética, recurso que este autor buscou, em alguma medida, invocar na tese de doutorado [3], quando foi citado o método de pesquisa histórica de Caio Prado Júnior [4], para quem “todos os momentos e aspectos são senão partes, por si só incompletas, de um todo que deve ser sempre o objetivo último do historiador, por mais particularista que seja”. Por essa razão, defendia o autor a importância de não descuidar do “cipoal de acontecimentos secundários” que se manifestam no conjunto dos fatos e revelam a linha-mestra dos acontecimentos e sua respectiva direção.
Hoje essa perspectiva holística é ainda mais urgente para o pesquisador da Ciência Jurídica Eleitoral, assim como para todos os atores que participam do processo eleitoral. No limite, os graves dilemas que a democracia enfrenta atualmente atingem todos os cidadãos. É insuficiente valer-se do acervo de leis e jurisprudências como ferramentas exclusivas de compreensão e resolução dos desafios contemporâneos, especialmente aqueles relacionados à democracia. Logo, autores de outras vertentes de conhecimento enriquecem e contribuem, cada vez mais, no diálogo com a dogmática jurídica para o enfretamento de temas áridos como desinformação, populismo, pluralismo, autoritarismo, regulamentação de mídias sociais, transparência (ou não) dos algoritmos, uso inteligência artificial no contexto eleitoral, possibilidades e limites da democracia.
A par dessa necessidade teórica, que é antes, acima de tudo, prática, determinadas obras de viés não estritamente jurídico começam a se entrelaçar na direção de uma “linha-mestra” de análise, que desagua no que parece ser um dos grandes problemas da democracia no presente e, sobretudo, para o futuro.
Algofobia
A primeira delas é A Sociedade Paliativa [5], do autor sul-coreano, Byung-Chul Han. Nela o autor formula uma investigação filosófica sobre o fenômeno da “algofobia”, essa palavra curiosa que descreve, em resumo, o medo da dor, que acomete e flagela a sociedade contemporânea. Na medida que a tolerância à dor reduziu drasticamente, nasce um estado de anestesia permanente, no qual toda condição dolorosa é desesperadamente evitada. Esse comportamento se projeta para o campo social, em que “conflitos e controvérsias que poderiam levar a confrontações dolorosas têm cada vez menos espaço” [6], assim como para a arena política, na qual a “coação à conformidade e a pressão por consenso crescem” [7].
Essa analgesia implica a perda da vitalidade que alimenta a política, que passar a ingressar, assim, em uma zona paliativa e anuncia uma nova categoria de pós-democracia: uma democracia paliativa, que não é capaz de reformas e não tem coragem para a dor. O paradigma da positividade rejeita toda forma de negatividade, que, na psicologia, substituiu uma psicologia negativa por uma psicologia positiva, na qual pensamentos negativos devem ser evitados e substituídos por pensamentos positivos. A dor se submete a uma lógica de desempenho, que busca canalizar traumas como catalisadores para incremento do desempenho. Na sociedade paliativa, que corresponde à sociedade do desempenho, dor equivale à fraqueza. Uma de suas características, segundo o autor, é que ela consiste em “uma sociedade do curtir [Gefällt-mir]. Ela degenera uma mania de curtição [Gefälligkeitswahn]. Tudo é alisado até que provoque bem estar. O like é o signo, sim, o analgésico do presente. Ele domina não apenas as mídias sociais, mas todas as esferas da cultura. Nada deve provocar dor” [8].
A partir daí, Byung-Chul Han enumera uma série de argumentos que reforçam importância da dor em diversos aspectos constitutivos da vida. Por meio da dor é que se alcança uma escuta ativa do outro, a alteridade. Na sociedade do desempenho, a sensibilidade com o outro significa vulnerabilidade. Não há espaço para sentir a dor do outro. Por sua vez, o compromisso com a individualização da felicidade despolitiza e dessolidariza a sociedade. Além disso, a digitalização contribui para o desaparecimento do confronto porque os algoritmos criam bolhas de desconstrução da realidade em um estado de pura anestesiação. Fake news ou deepfakes representam, portanto, uma forma de apatia, ou anestesia, da realidade. É ainda a dor que distingue humanos da inteligência artificial, pois, ainda que ela seja capaz de aprender e de aprendizado profundo (deep learning), ela não é capaz de ter experiência, uma vez que “apenas a dor metamorfoseia a inteligência em espírito” [9]. Por isso, jamais haverá um algoritmo da dor.
Logoterapia
Essas provocações remetem à obra de Viktor Frankel, intitulada Em Busca de Sentido [10]. Trata-se de um relato autobiográfico do que se passou no campo de concentração de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial, com incursões a episódios concretos examinados sob a ótica da logoterapia — fundada pelo autor — também denominada de terceira escola vienense de psicoterapia (posterior à Psicanálise de Freud e à Psicologia Individual de Adler).
Aqui o olhar de Frankel evidencia, diante da trágica experiência própria, a possibilidade de realização do ser humano, mesmo no epicentro do mais indigno e vil experimento da humanidade. Ainda que sob tais circunstâncias, ele argumenta que assiste uma liberdade última ao prisioneiro, privado de tudo, menos da liberdade de decidir como reagir frente às condições que lhe foram dadas. Essa significação do sofrimento, segundo Frankel [11], era associada entre os prisioneiros a uma frase atribuída a Dostoiévski: “temo somente uma coisa: não ser digno do meu tormento” [12]. O contexto dessa reflexão exprimia a garantia assegurada aos prisioneiros de configurar sua vida de modo que lhe fosse preservado um sentido, até seu último suspiro, o que foi testemunhado pelo comportamento de mártires que conservaram sua dignidade nos momentos mais difíceis.
Depois de descrever aspectos psicológicos da entrada até a saída do campo de concentração, Frankel passa a discorrer sobre o conceito da logoterapia, que, em síntese, “concentra-se no sentido da existência humana, bem como na busca da pessoa por esse sentido” [13]. Para a logoterapia, a grande força motora do ser humano é a busca do sentido, evocando uma ideia inata de vontade de sentido, em oposição à vontade de prazer, sustentado pela corrente freudiana. Assim, um de seus princípios fundamentais é não basear o comportamento humano na perseguição pelo prazer ou na fuga da dor; postulado este que permite encontrar sentido, mesmo no sofrimento.
A ausência absoluta de sentido é representada pelo vazio existencial, que, conforme levantamento estatístico de Frankel [14], acometeu 25% de seus alunos europeus e 60% daqueles norte-americanos. A diminuição da importância dos instintos de sobrevivência e das tradições desorienta o ser humano, que passa a desejar reproduzir comportamentos alheios (conformismo) ou que lhes são impostos (totalitarismo). Um dos disfarces da vontade de sentido frustrada é a vontade de poder, sobretudo em sua forma mais primitiva, que é a “vontade de dinheiro” [15]. A manifestação mais aguda do vazio existencial é o suicídio.
Na logoterapia, ademais, o sofrimento não seria condição necessária para a realização humana. Ela sustenta que existe a possibilidade de atribuição de sentido à vida, apesar dele, em circunstâncias inevitáveis, uma vez que “sofrer desnecessariamente é ser masoquista, e não heroico” [16]. A cultura da higiene mental que coage à felicidade agrava o aparente diagnóstico de que infelicidade equivaleria a um desajuste psicológico, privando as pessoas da possibilidade de considerar seu sofrimento enobrecedor ao invés de degradante. O sentido da vida é, portanto, incondicional, pois abrange, inclusive, o sentido potencial do sofrimento inevitável, que faculta, até o último instante, aceitar o desafio de sofrer com bravura e dignidade.
Infocracia
Colocadas essas questões, avança-se para o último degrau dessa incursão teórica, que complementa as duas etapas anteriores. Os conceitos de algofobia e logoterapia oferecem noções acerca dos riscos e mazelas diante dos rumos que caminha a sociedade atual com o império de um paradigma que apregoa a necessidade permanente de experimentar um estado paliativo de anestesia à dor, desprezando a importância ontológica e psicológica que o sofrimento inevitável significa ou pode significar para a realização do indivíduo. Em Infocracia [17], alguns desses elementos são retomados novamente por Byung-Chul Han, para abordar o problema sob uma ótica mais diretamente relacionada à deformação da democracia.
Sua premissa é que, em oposição ao regime de dominação disciplinar, no qual corpos e energias são explorados para ganhar poder como forma típica do capitalismo industrial por meio do adestramento do humano como animal de trabalho, vigora hoje o regime da informação, conceituado como “a forma de dominação na qual informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos” [18]. Nele liberdade e opressão coincidem. Não subsistem os mecanismos violentos de coação, que são substituídos por algoritmos que sussurram no inconsciente, em vez de dar ordens. Com a disponibilização total de dados pelos indivíduos, a dominação ocorre de maneira voluntária, por meio de uma liberdade motivada e otimizada.
Esse modelo denota traços totalitários, visto que o regime da informação aspira ao saber total por meio da operação algorítmica, não pela narração ideológica. O dataísmo “quer calcular tudo que é e será” [19]. A desenfreada digitalização da vida e a intoxicação de informações resulta, assim, na degeneração da democracia em infocracia. A racionalidade discursiva, que garantia a existência de uma esfera pública de debate, cede lugar para a comunicação afetiva, na medida em que prevalecem as informações que mais engajam em detrimento dos melhores argumentos.
Ferramentas de microtargeting (focalização no micro) orientam a formulação de programas para eleitores, de acordo com seu perfil psicométrico, nas mídias sociais, de modo a influenciar inconscientemente o comportamento eleitoral tal qual o comportamento do consumo. Autonomia e liberdade de escolha, que são pressupostos do processo democrático, são minados pela manipulação de dados na infocracia. No final das contas, há uma crise da verdade atrelada a um novo niilismo [20] do século 21, que não se funda na perda de crenças religiosas ou valores, mas da verdade em si. Sem ela, perde-se a facticidade e se passa a viver em um universo desfactualizado, no qual inexiste critério de distinção entre verdade e mentira.
É, pois, em face desses conceitos que a sobrevivência do regime democrático exige conformação. Se a inteligência artificial [21] já é capaz de oferecer as soluções para os problemas atuais da democracia, por que não está tudo bem? Ou está tudo bem e ninguém percebeu? Para que para escrever um artigo, então? Talvez o último suspiro do resquício da natureza humana para não sucumbir de vez ao dataísmo seja a capacidade de transcender a fim de encontrar as conexões necessárias de elementos (ainda) invisíveis no universo de dados para fugir da superfície de informações e mergulhar na essência da realidade, ou do que sobrou dela.
[1] MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 14.
[2] Tribunais de contas e inelegibilidade: limites da jurisdição eleitoral. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.
[3] A tolerância no processo eleitoral: contorno jurídicos e perspectivas. Rio de Janeiro: Lumem Juris: Rio de Janeiro, 2022.
[4] PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
[5] HAN, Byung-Chul. A sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Editora Vozes, 2021.
[6] Ibidem, p. 7.
[7] Ibidem, p. 7.
[8] Ibidem, p. 9.
[9] Ibidem, p 46.
[10] Fui presentado com este livro coincidentemente em duplicidade por dois amigos distintos. Minha esposa me indagou, na ocasião, se eu estaria acometido por alguma depressão ou crise existencial que ela desconhecia.
[11] FRANKEL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicológo no campo de concentração. São Leopoldo: Vozes. Petrópolis: Vozes, 2021, p. 89.
[12] Fiquei muito intrigado com essa formulação e quis localizar exatamente a citação de Dostoievski, que não foi referida no texto de Frankel. Encontrei, contudo, na obra “O Idiota”, diálogo travado entre o Príncipe Míchkin com Hipótilo, jovem afligido por uma grave tuberculose, reproduzido nos seguintes termos: “ – (…) Mas diga-me: não sente nesta altura um grande desprezo pela minha pessoa? – Por quê? Porque o senhor parece ter sofrido e sofre mais que nós? – Não senhor, mas sim porque sou indigno do meu sofrimento”. (DOSTOIÉVSKI, Fiodor. O idiota. Tradução de A. Augusto dos Santos. Mimética: São Paulo, 2019, p. 560).
[13] FRANKEL, op. cit., p. 124.
[14] Ibidem, p. 131.
[15] Ibidem, p. 132.
[16] Ibidem, p. 138.
[17] HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Petrópolis: Vozes, 2022.
[18] Ibidem, p. 7.
[19] Ibidem, p. 22.
[20] Ibidem, p. 81.
[21] Formulei para a Meta AI esta indagação: “Você consegue me dar as soluções para os problemas atuais da democracia?” (Quantas pesquisas não foram e são produzidas no Brasil e no mundo para investigar essa questão?). Para a minha surpresa, a inteligência artifical não afirmou que era incapaz de responder. Ao contrário, foram enumerados os 5 problemas mais “comuns”, cada qual com duas soluções específicas, assim classificados: 1) desinformação e manipulação de dados; 2) polarização política e divisão social; 3) corrupção e falta de transparência; 4) desigualdade econômica social; e 5) mudanças climáticas e degradação ambiental. Acerca do problema 1, as soluções foram: “Fortalecer a educação midiática e promover a alfabetização digital, para que as pessoas possam distinguir entre informações confiáveis e falsas”; e “Implementar regulamentações mais rigorosas para as plataformas de mídia social, para evitar a disseminação de desinformação”.
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