O Judiciário legisla? Liberdade de expressão tem limites? Existe uma ditadura da Justiça? Passada a tormenta dos tempos em que a democracia parecia ser uma diversão perigosa, perguntas como essas pululam em corações e mentes inquietas mais para confundir do que para explicar, todas elas tendo como alvo preferencial o sistema de Justiça em geral e o Supremo Tribunal Federal em particular. Ou o ministro Alexandre de Moraes, particularissimamente falando.
Na verdade, dúvida não há. O que se tenta mesmo é desacreditar o Judiciário brasileiro, não por seus defeitos e mazelas reais, mas pelo fato de ter se tornado o núcleo central da defesa das instituições e do Estado Democrático de Direito. Os autores dos ataques são os manés que perderam a batalha em 8 de janeiro de 2023.
Só que a guerra agora é mais sutil do que nos tempos em que um presidente da República ia para a praça xingar ministros e prometer desobediência civil. E pode vir na forma de ameaça de desacatamento do ordenamento jurídico nacional por um bilionário que brinca de ser o dono do mundo. Pode ser mera bravata de Elon Musk, o dono da rede de relacionamento social X, ex-Twitter, que dias depois de dizer que não acataria as ordens de exclusão de perfis do seu aplicativo foi desmentido pelos gestores de sua rede que asseguraram o fiel cumprimento dos mandados recebidos.
O certo é que a ameaça das big techs ao modelo de democracia participativa é real e vai muito além do debate sobre o direito a liberdade de expressão invocado por Musk e seus cúmplices. “O que está se construindo é um regime de informação, que consiste em ‘uma forma de dominação na qual as informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos’” escreveram os advogados e professores Ingo Sarlet e Gabriela Sarlet, em artigo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico, citando o filósofo sul-coreano e professor da Universidade de Berlim Byung-Chul Han. “Nessa perspectiva, prossegue, ‘não é a posse de meios de produção que é decisiva para o ganho de poder, mas o acesso a dados utilizados para a vigilância, controle e prognóstico de comportamentos psicopolíticos’.”
Daí o clamor geral pela regulamentação global do mercado de informação virtual. O ministro Dias Toffoli entende que a legislação atual já tem elementos para enquadrar as empresas, mas não subestima a necessidade de um regramento específico das redes sociais: “É evidente que o Congresso precisa regular o ecossistema virtual, muito embora eu entenda que a legislação atual pode ser aplicada a ele. O próprio Código Civil deixa claro que, se alguém causa prejuízo a outrem, a pessoa é responsável por reparar esse prejuízo. Se o prejuízo se deu pela utilização de meios virtuais, o direito a indenização é cabível e a reparação é devida”.
Tramita há mais de três anos no Congresso Nacional o Projeto de Lei 2.630/2020 que “institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. Aprovado no Senado, debaixo de uma intensa campanha contrária das big techs, o projeto dormita na gaveta da Câmara desde maio de 2023, em estado terminal. Em abril de 2024, o presidente da casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), anunciou a criação de um grupo de trabalho para apresentar uma “proposta mais madura”.
Enfrentamento às fake news
Na omissão do Legislativo, o Judiciário tem sido a principal força de enfrentamento desse novo poder. Além de dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal para investigar o uso das redes para a propagação de fake news e mensagens de ódio – ambos abertos de ofício e sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes –, coube ao TSE baixar normas para disciplinar o uso das redes sociais no contexto das eleições municipais de 2024. Elas terão de adotar medidas para impedir a circulação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados, além de tomar providências imediatas para cessar o impulsionamento, a monetização e o acesso a esse tipo de conteúdo, sob pena de responsabilização civil e administrativa.
A regulamentação da internet é apenas uma das muitas matérias que tem colocado em lados opostos o Judiciário e o Legislativo. O fenômeno, que não é novo, acentuou-se a partir da atual legislatura, iniciada em 2023. O Senado, que elegeu uma vigorosa bancada de direita ultra conservadora em outubro de 2022, colocou em andamento uma pauta de temas com vistas a desafiar o poder do Supremo. Em novembro de 2023, com votos de senadores da base governista, a câmara alta aprovou a PEC 8/2021, que limita o poder dos ministros da corte de proferir decisões monocráticas. A medida, que ainda terá de ser votada pela Câmara dos Deputados, tem pouco efeito prático visto que o próprio STF já havia restringido as possibilidades de decisões individuais pela corte. Mas valeu como um recado, como admitiu o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ao discursar na abertura do Ano Legislativo de 2024. “O Senado votou uma proposta de emenda à Constituição que limita as decisões monocráticas do STF. Indispensável dizer aqui do convencimento que a maioria do Senado teve em relação a esse tema.”
Tramitam, ainda, no Senado, três propostas de emenda à Constituição, todas com a intenção de fixar mandatos e aumentar a idade mínima para ser ministro do Supremo. No início do ano, Rodrigo Pacheco chegou a dizer que colocaria as propostas na pauta de votação da casa, mas depois mudou de ideia. Atualmente, a idade mínima para ingressar na corte é de 35 anos e os ministros permanecem no cargo até os 75 anos de idade (para saber mais sobre o tema leia aqui).
Argumentos a favor ou contra as propostas não faltam, mas nenhum deles afasta a tese de casuísmo para que a matéria seja pautada neste momento. Como lembrou o ministro Gilmar Mendes, chama a atenção que estas propostas, que tentam interferir diretamente na estrutura e no funcionamento da corte, sejam apresentadas justamente após o Supremo ter se revelado como a instituição que enfrentou as ameaças contra o Estado Democrático de Direito. “O que me surpreende é o foco inicial no Supremo”, disse o ministro em entrevista à GloboNews em março. “Um relatório internacional mostrou que, de todos os países que tiveram problemas com a extrema-direita, o Brasil foi o que melhor se saiu, graças à institucionalidade. E nisso o STF teve um papel importantíssimo. Depois disso tudo, com tantas reformas necessárias e urgentes, a primeira reforma que o Congresso consegue votar é uma emenda contra o Supremo.”
As propostas anti-Judiciário foram desenterradas pelo presidente do Senado supostamente em retaliação a decisões do Supremo que desagradaram integrantes do Parlamento. Coisas como a autorização dada para a Polícia Federal fazer operações de busca e apreensão contra os deputados federais Alexandre Ramagem (PL-RJ) e Carlos Jordy (PL-RJ). O primeiro é acusado de liderar um esquema de espionagem ilegal quando chefiou a Agência Brasileira de Inteligência durante o governo Bolsonaro. O segundo é suspeito de ser um dos mentores dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro.
Seguindo a lei da física de que a toda ação corresponde uma reação, o Congresso respondeu com uma proposta de emenda à Constituição que prevê que este tipo de operação contra parlamentares precisa de autorização prévia do Parlamento.
Pedra de toque
Antes disso, já despertara a ira da classe política a decisão do Supremo que considerou inconstitucional o chamado orçamento secreto, depois rebatizado como emendas do relator, um artifício usado pelos parlamentares para se apropriarem para fins eleitorais de fatias do orçamento da União.
Além de minar a instituição em sua essência, o Legislativo passou a operar com uma pauta paralela à do Supremo, principalmente em temas relacionados a direitos individuais e aos costumes. Para cada decisão judicial à frente tomada pelo Supremo, o Congresso contrapõe-se com um recuo legislativo.
Foi o que aconteceu, por exemplo, na discussão sobre o direito ao aborto, talvez uma das pedras de toque usadas no mundo inteiro para distinguir um progressista (a favor) de um conservador (contra). Antes de deixar a Presidência do STF e se aposentar, a ministra Rosa Weber quis deixar uma marca indelével de sua gestão e para tanto colocou em julgamento a ADPF 442, que pede sejam considerados inconstitucionais os artigos 124 e 126 do Código Penal que tipificam o aborto como crime. Rosa proferiu seu voto para descriminalizar o aborto feito até a décima-segunda semana de gestação.
Na oportunidade, destacou que, apesar da competência do Congresso Nacional para legislar sobre o tema, o Poder Judiciário é obrigado, constitucionalmente, a enfrentar qualquer questão jurídica a ele apresentada sobre lesão ou ameaça a direitos seja da maioria ou das minorias. “Na democracia, os direitos das minorias são resguardados, pela Constituição, contra prejuízos que a elas possam ser causados pela vontade da maioria. No Brasil, essa tarefa cabe ao Supremo Tribunal Federal”, frisou. Um pedido de vista do ministro Roberto Barroso suspendeu o julgamento.
O Congresso não entendeu o recado e já tramita no Senado um projeto de decreto legislativo para que seja feito um plebiscito para que a população brasileira diga se concorda ou não com a legalização do aborto.
Também no quesito tráfico de drogas, o Congresso reagiu com um projeto de lei que criminaliza o porte de qualquer quantidade de substância proibida, contrapondo-se à discussão que corre no Supremo, no julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, com repercussão geral (Tema 506), que busca definir justamente qual a quantidade de maconha que define se um portador é usuário ou traficante. O que poderia ser um primeiro passo para discutir a política e a legislação de combate a drogas acabou virando o estopim que incendiou os defensores do proibicionismo. Já em 2024, o Senado aprovou a PEC 45/2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco, que insere no artigo 5º, o sagrado artigo dos direitos fundamentais do cidadão, a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga considerada ilegal.
Uma das primeiras e mais controversas decisões do Supremo nesta seara – a que equiparou a união de pessoas do mesmo sexo ao casamento civil, em 2011 – voltou à baila. Na Câmara dos Deputados, o PL 580/2007, que inseria no Código Civil dispositivo para legalizar a união homoafetiva foi substituído pelo PL 5.167/2009 que torna ilegal a união entre pessoas do mesmo sexo. O parecer invertendo o sentido do projeto foi aprovado pela Comissão de Previdência Social e Família.
Marco Temporal
Nenhum tema mostra tão bem o conflito instalado entre os poderes da República como a tese do marco temporal, que estabelece que só podem ser demarcadas como terras indígenas as áreas que estavam efetivamente ocupadas por indígenas à época da promulgação da Constituição de 1988. Em 21 setembro de 2023, por nove votos a dois, no julgamento do RE 1.017.365, o Supremo considerou inconstitucional a tese que havia sido construída pelo próprio Supremo em 2009, no julgamento da demarcação da terra indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima.
Uma semana depois da decisão da corte, o Senado aprovou o PL 2.903/2023, que restabeleceu a tese. Mandada à sanção presidencial, a nova lei foi sancionada pelo presidente Lula em outubro de 2023 com 32 vetos, inclusive o que estabelecia o marco temporal. Em novo capítulo, em dezembro, o Congresso derrubou os vetos do presidente e promulgou a Lei 14.701, legalizando a tese.
A promulgação da lei resultou em ações de controle de constitucionalidade apresentadas ao Supremo por partidos de esquerda e de direita: três, ADIs 7.583, 7.586 e 7.582, uma delas proposta pelo PT, PV e PCdoB, pede que a lei seja declarada inconstitucional; outra, a ADC 87, do PL, Progressistas e Republicanos pede que ela seja declarada constitucional.
Como se não fosse o bastante, já tramita no Senado uma proposta de emenda à Constituição instituindo a tese. Ao fim e ao cabo, caberá ao Supremo dar a última palavra.
Talvez seja assim mesmo que deve funcionar em uma democracia. O flagrante conflito de posições entre Legislativo e Judiciário, contudo, é didático na medida em que deixa claro qual é o papel de cada instituição. Enquanto cabe ao Congresso interpretar o sentimento da maioria e fazer valer o seu ponto de vista, cabe à Justiça fazer valer o respeito à lei e à Constituição e preservar os direitos da minoria.
Como bem lembrou o ministro Roberto Barroso ao falar sobre as propostas contra a corte : “É inevitável que o Supremo desagrade segmentos políticos, econômicos e sociais importantes, porque, ao Tribunal, não é dado recusar-se julgar questões difíceis e controvertidas. Tribunais independentes e que atuam com coragem moral não disputam torneios de simpatia. Interpretar a Constituição é fazer a coisa certa, mesmo quando haja insatisfações, porque assim é . Nesse espírito de diálogo institucional, o Supremo não vê razão para mudanças constitucionais que visem a a alterar as regras do seu funcionamento. Num país que tem demandas importantes e urgentes, que vão do avanço do crime organizado à mudança climática, que impactam a vida de milhões de pessoas, nada sugere que os problemas prioritários do Brasil estejam no Supremo Tribunal Federal”.
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