Fintech & Crypto: Afinal, o que é um ativo virtual?

Lei nº 14.478/2022 sequer foi regulamentada e já tramita um Projeto de Lei do Senado para redefinir ativo virtual, buscando uma melhor delimitação do campo de aplicação da norma. Trata-se do PL nº 4.365/2023, protocolado em 6 de setembro pela senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS).

A senadora também está à frente do Projeto de Lei nº 3.706/2021 que traz regras penais para pirâmides financeiras e a previsão de segregação do patrimônio dos prestadores de serviços de ativos virtuais e de seus clientes. O PL 3.706/2021 já foi aprovado pelo Senado e remetido à Câmara dos Deputados, enquanto o PL 4.365/2023 ainda aguarda designação de relator.

Neste texto, exploro a definição vigente de ativo virtual, suas limitações e o que a nova proposta legislativa tenta remediar.

O conceito de ativo virtual
A Lei nº 14.478/2022 traz uma definição de ativo virtual por exclusão para definir a sua incidência. Ou seja, sabemos que não são ativos virtuais:

  1. Valores mobiliários, ativos financeiros e “quaisquer ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento”;
  2. Moeda fiduciária nacional ou estrangeira;
  3. Moeda eletrônica definida na Lei nº 12.865/2013 (em seu artigo 6º, VI);
  4. Pontos e recompensas de programas de fidelidade, bem como “instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços”.

Sujeita-se ao regime da norma, portanto, qualquer representação digital de valor de emissão e circulação eletrônica usada para pagamento ou investimento que não se enquadrar nas exclusões indicadas. A lei traz, ainda, uma delegação normativa para que a regulamentação infralegal determine que ativos virtuais serão efetivamente regulados.

Há, pelo menos, dois problemas relevantes na abordagem adotada pelo legislador.

Primeiro, para definir a aplicação da lei ou das regras da CVM, é preciso analisar se determinado token é um valor mobiliário, o que não é uma tarefa trivial — já escrevi sobre o tema anteriormente. Para contornar essa dificuldade, a CVM tem acolhido projetos que assumam, desde o início, que os tokens são valores mobiliários e, com isso, os ofertem segundo regimes mais flexíveis, seja pela norma de crowdfunding ou no contexto do sandbox regulatório da autarquia. Esse é o caso, por exemplo, de vários tokens de renda fixa.

O segundo problema diz respeito à potencial ineficácia da lei, que pode deixar de fora quase todos os principais tokens em circulação, com base em volume e capitalização de mercado, segundo o portal CoinMarketCap.

A grande maioria deles ou consiste em stablecoins, tokens referenciados em ativos financeiros ou tokens de utilidade, definições que, a meu ver, se enquadram nas exceções ao conceito de ativo virtual. Vejamos.

Stablecoins e tokens referenciados em ativos financeiros
As stablecoins, emitidas com (suposto) lastro em dólar seriam ativos virtuais, não são emitidas por bancos centrais ou entidades públicas, são títulos privados que encapsulam uma moeda fiduciária. Nessa hipótese, poderíamos afirmar que um token que, em essência, é uma referência a uma moeda fiduciária — uma das exceções ao conceito de ativo virtual da Lei nº 14.478/2022 — não é um ativo virtual, nos termos dessa lei. Só poderíamos concluir de modo diverso se a natureza de emissão por banco central ou entidade pública fosse inerente ao termo utilizado na lei (moeda nacional ou estrangeira) e, por isso, não precisasse ser expressamente declarada.

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Pergunta semelhante poderia ser feita, por exemplo, a respeito de um token de fração de precatório, letra financeira ou, então de CCB que não seja considerado valor mobiliário. Nesses casos, seria o token um ativo financeiro e, portanto, não estaria sujeito ao regime da Lei de Ativos Virtuais?

A dúvida decorre do fato de que o token, em si, é apenas um “envelope”, um container de algum bem ou direito. Desse modo, precisamos determinar se a natureza do bem ou direito encapsulado é ou não imediatamente aplicável ao token. A depender da resposta, tokens referenciados em ativos financeiros e stablecoins podem ficar de fora do campo de incidência da Lei nº 14.478/2022.

E qual seria a consequência prática desta exclusão? Uma exchange que ofereça apenas serviços de negociação relacionados a stablecoins ou tokens que referenciam ativos financeiros, por exemplo, não precisaria obter autorização do Banco Central para oferecer seus serviços no Brasil, não sendo obrigada a prestar informações a autoridades, implementar mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro ou qualquer outra regra exigida dos prestadores de serviços de ativos virtuais, inclusive permitindo transações que, em essência, equivalem a operações de câmbio. Seria esse o objetivo do legislador?

Tokens de utilidade
E o que dizer de um token que referencia um imóvel ou uma fração deste? Nesse caso, o token foi emitido para permitir a fruição do imóvel e de direitos correlatos, aproximando-se da exceção ao conceito de ativo virtual expresso em “instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços”. No jargão do setor, essa é a definição de token de utilidade (utility token), categoria que é a preferida por muitos projetos, por afastar-se de uma natureza puramente financeira (e, com isso, do conceito de valor mobiliário).

A meu ver, tokens como ETH, BNB, SOL, ADA, TRN e outros com o maior volume de negócios e de capitalização podem ser enquadrados nessa definição, porque oferecem a fruição de algum serviço, ainda que de difícil identificação, além da expectativa de valorização em mercado secundário (o que, penso eu, é o motivo determinante de sua aquisição por muitos). Igualmente, tokens como os emitidos no âmbito de carteiras digitais (caso do NuBank e Mercado Livre) também escapariam da Lei nº 14.478/2022.

Ao contrário do regulador norte-americano, a CVM não tem enquadrado esse tipo de token na categoria de valor mobiliário, ainda que exista um mercado secundário para tokens de utilidade e que exista uma expectativa de benefício econômico, por parte de seus adquirentes que decorre de uma entidade responsável pela sua continuidade e, em última análise, pelo ganho dos investidores nas negociações.

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Se os tokens de utilidade não são, em regra, valores mobiliários, e, ao mesmo tempo, enquadram-se na exceção ao conceito de ativo virtual da Lei nº 14.478/2022, então podemos concluir que, à semelhança do caso das stablecoins e tokens referenciados em ativos financeiros, exchanges que listem apenas tokens de utilidade não se sujeitarão ao regime que pretende proteger investidores-consumidores nesse mercado.

O que sobra?
Se a argumentação apresentada for válida, um ambiente que ofereça serviços relacionados a stablecoins, tokens referenciados em ativos financeiros e tokens de utilidade (ou seja, a maioria dos tokens existentes), não precisaria se submeter ao regime jurídico dos ativos virtuais no Brasil. Talvez fosse possível enquadrar no conceito de ativo virtual da Lei nº 14.478/2022 apenas o bitcoin, dada a sua completa ausência de fruição de algum tipo de produto ou serviço identificável, conclusão que também poderia ser questionada.

Assim, o campo de incidência da referida lei restaria seriamente comprometido, salvo alguma ginástica hermenêutica pelo regulador ou pelo Poder Judiciário.

O que mudar? É preciso mudar algo?
O PL 4.365/2023 mantém as exceções ao conceito de ativo virtual já vigentes, mas tenta remediar a situação fragmentado o atual caput do artigo 2º em dois incisos. A regra geral atual é:

considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, exceto (…)

A proposta do PL 4.365/2023 é dividi-la em:

I – qualquer representação virtual de um valor, seja ele criptografado ou não, que não seja emitido por banco central ou qualquer autoridade pública, no país ou no exterior, ou represente moeda eletrônica de curso legal no Brasil ou moeda estrangeira, mas que seja aceito ou transacionado por pessoa física ou pessoa jurídica como meio de troca ou de pagamento, e que possa ser armazenado, negociado ou transferido eletronicamente.

E, ainda:

II – ativos virtuais intangíveis (“tokens”) que representem, em formato virtual, bens, serviços ou um ou mais direitos, que possam ser emitidos, registrados, retidos, transacionados ou transferidos por meio de dispositivo eletrônico compartilhado, que possibilite identificar, direta ou indiretamente, o titular do ativo virtual, e que não se enquadrem no conceito de valor mobiliário disposto no art. 2° da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976.

A proposta do inciso I parece tentar resolver o problema das stablecoins, mas a leitura do dispositivo acaba revelando uma redação ambígua, pois não se saber se a expressão “ou represente moeda eletrônica de curso legal no Brasil ou moeda estrangeira” deve ser negada (destaquei):

I – qualquer representação virtual de um valor (…) que não seja emitido por (…) ou represente moeda eletrônica de curso legal no Brasil ou moeda estrangeira

Assim, uma representação virtual de valor que não represente moeda fiduciária é ou não ativo virtual? E a que representa moeda fiduciária? Em qualquer caso, a redação poderia ser simplificada para garantir que as stablecoins fossem explicitamente incluídas no conceito de ativo virtual pela mera alteração das exceções:

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Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual (…) não incluídos: I – moeda nacional e moedas estrangeiras, emitidas por bancos centrais e entidades públicas;

A parte final do inciso II proposto é desnecessária, pois valores mobiliários já são exceção mantida pelo próprio Projeto de Lei. A definição deste inciso traz, ainda, a possibilidade de um ativo virtual referenciar bens, direitos e serviços, mas apenas torna mais longa a definição anterior, sem trazer nenhum benefício claro em termos de delimitação do campo de incidência da norma.

Com relação aos tokens de utilidade, pelo que procurei expor nesse texto, penso que o problema não está na definição de ativo virtual, mas nas exceções trazidas pela regra, essas sim merecedoras de reparo.

E daí?
Aqui apresento uma conclusão do raciocínio desenvolvido ao longo do texto: se o objetivo é regular os serviços de emissão, intermediação, custódia e pagamentos envolvendo ativos virtuais, o critério de incidência da norma precisa levar em consideração o “envelope” (ainda que vazio), pois é o ecossistema de emissão e circulação de tokens que traz riscos específicos.

Do mesmo modo que derivativos são regulados à parte de seus ativos subjacentes, a disciplina jurídica dos ativos virtuais precisa tratá-los de modo apartado dos bens e direitos que referenciam ou representam. Destaco que essa visão é contrária, à primeira vista, à ideia de que “a regulação precisa ser neutra com relação à tecnologia”. Porém, pensar de modo diverso resulta em esvaziar completamente o regime da Lei nº 14.478/2022.

Não existem soluções fáceis para problemas difíceis. Porém, nesse caso, a CVM parece ter acertado em cheio ao fornecer, na Resolução nº 175/2023 uma definição de criptoativo (e não ativo virtual) que pode endereçar os problemas apontados nesse texto:

Art. 2º (…) X – criptoativo: ativo representado digitalmente, devendo possuir no mínimo as seguintes características:
a) sua existência, integridade e titularidade são protegidas por criptografia; e
b) suas transações são executadas e armazenadas utilizando tecnologia de registro distribuído;

Poderíamos manter as exceções relativas a valores mobiliários e moedas fiduciárias (deixando expressa a sua emissão por entidades públicas), mas, a meu ver, os serviços relativos a tokens com as características da definição acima, ainda que referenciem ativos financeiros, milhas e pontos de programas de fidelidade, deveriam ser abrangidos pela Lei nº 14.478/2022. Esse seria um excelente ponto de partida para sinalizar ao mercado quais são os negócios e riscos que se pretende regular.

Fonte: Conjur