A partir de 2018, com a edição da Lei Federal nº 13.756, as apostas esportivas foram disciplinadas no nosso país, atraindo o interesse e a atenção de milhares de brasileiros que, sedentos pelo resultado positivo, destinam parte de seus orçamentos em busca do êxito.
O Decreto-Lei nº 3.688/41, intitulado de Lei das Contravenções Penais, no artigo 50, parágrafo 3º, alínea “c””, vedava quaisquer apostas sobre competições esportivas. Nessa senda, durante setenta e sete anos, não se admitiu a mencionada atividade no Brasil, tendo, inclusive, a Lei n.º 13.155/2015 vedado os jogos de azar pela Internet ou qualquer outro meio de comunicação.
Não obstante, o crescimento da dita modalidade por meio de plataformas estrangeiras [1], que se tornaram acessíveis para qualquer pessoa, conduziu o legislador a optar por a admitir, coadunando-se com a realidade que emergia.
Trata-se da espécie lotérica denominada de “apostas de quota fixa”, prevista no artigo 29 da Lei nº 13.756/2018, em que o interessado efetiva o pagamento de um montante referente a um evento real de temática esportiva, podendo ganhar em caso de acerto do prognóstico. Consistia em um serviço público exclusivo da União, cuja competência para legislar acerca do tema foi reconhecida nas ADPFs nºs 492 e 493, julgadas, no ano de 2020, pelo Supremo Tribunal Federal [2].
Sucede que, em 24 de julho de 2023, a Medida Provisória nº 11 2 alterou o aludido dispositivo e possibilitou a exploração comercial da atividade mediante concessão, permissão ou autorização por parte do Ministério da Fazenda. Deverá ser expedida regulamentação sobre a outorga onerosa para as pessoas jurídicas que atendam aos critérios estabelecidos.
Importante salientar que somente poderão atuar como agentes operadores das apostas esportivas pessoas jurídicas — e não físicas —, nacionais ou estrangeiras, que estejam devidamente estabelecidas no território nacional e que cumpram os requisitos exigidos. No entanto, o Projeto de Lei nº 3626/2023 tenciona prever a regra de que estas devem ser constituídas segundo a legislação brasileira e possuir sede administrativa no Brasil.
O apostador terá que ser uma pessoa física, nos termos do art. 29-A, inciso II, da multicitada Lei, e dúvidas não pairam acerca da sua qualificação como consumidor, eis que é destinatário final de um produto cultural: as competições esportivas [3]. A vulnerabilidade desses sujeitos é patente, nos termos do artigo 4º, inciso I, da Lei n.º 8.078/90, sobretudo para a maioria da população brasileira, que não dispõe de vultosos recursos financeiros e optam por apostas de menor porte.
Ainda que o apostador venha a investir altas somas, não deixa de estar protegidos pelo microssistema consumerista, posto que vulnerabilidade não se confunde com hipossuficiência e engloba também os aspectos informacional, técnico e jurídico [4]. Não podem ser olvidados os recentes escândalos envolvendo esquemas de manipulações de resultados em partidas de futebol profissional no Brasil, que engendraram a instalação, em 26 de abril de 2023, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, cujas atividades foram finalizadas em 26 de setembro do ano em curso.
As operações “Penalidade Máxima” e “Jogada Ensaiada”, iniciadas, respectivamente, em Goiás e Sergipe, detectaram falcatruas que se espraiaram para outras unidades federativas no País [5]. Os apostadores, na condição de consumidores, foram aviltados quanto aos seus direitos de participação de um negócio jurídico ético, caracterizado pelo “fair play”, e tiveram as suas legítimas expectativas frustradas em decorrência da patente fraude.
Apesar de não ter avançado, de forma satisfatória, na proteção dos consumidores, as inovações propiciadas pela MP n.º 1182/2023 podem ser examinadas sob quatro enfoques: 1) restrições quanto aos apostadores; 2) deveres dos agentes operadores; 3) atribuições do Ministério da Fazenda; e 4) destinação dos valores arrecadados. Quanto ao primeiro aspecto, não poderão ingressar no universo das apostas esportivas sujeitos que não possuam capacidade de discernimento dada a sua faixa etária e aqueles que possam se valer de sua condição para antever os resultados.
A legislação veda a participação dos menores de 18 anos, mas o ideal seria adotar as regras da incapacidade insculpidas pelo Código Civil. Ademais, estão coibidos o próprio agente operador e todos aqueles que façam parte da sua estrutura societária e de funcionamento, bem como os que estejam interligados com as competições esportivas e possam exercer influência no seu desfecho.
Do mesmo modo, não se admite a presença dos envolvidos com as atividades fiscalizatórias e os que tenham acesso a sistemas informatizados interligados com a sistemática negocia l[6]. Note-se que os inscritos em cadastros de proteção ao crédito não estão autorizados a realizar as apostas, almejando o legislador evitar agravar, ainda mais, o seu estado de desequilíbrio financeiro. No que concerne aos operadores, devem cumprir obrigações legais de natureza: 1) patrimonial; 2) informacional; 3) estrutural; e 4) publicitária.
Além de terem que arcar com o valor da outorga, devem pagar a taxa de fiscalização e reterão 82% do valor arrecado, destinando o restante para a seguridade social, o Fundo Nacional de Segurança Pública, o Ministério dos Esportes e o setor educacional. Compete-lhes empreender ações para mitigar a manipulação de resultados e a corrupção, comunicando-as, no prazo de cinco dias, para a autoridade competente. Em caso de suspeita de lavagem de dinheiro, são obrigados a noticiá-la ao Coaf.
As pessoas jurídicas, que obtiverem o aval para atuar na seara, ainda sob a ótica estrutural, devem integrar organismo nacional ou internacional destinado ao monitoramento da integridade esportiva. Devem adrede valer-se de mecanismos de segurança e integridade, incluindo o zelo pelos dados pessoais dos consumidores. Não podem adquirir, licenciar ou financiar a aquisição de direitos sobre a exibição de sons e imagens de eventos esportivos, consoante o artigo 33-A, inserido pela MP em epígrafe.
Quanto à atividade publicitária, determina o artgo 33, caput e parágrafo 1º, que, além de atender à regulamentação do Ministério da Fazenda, necessitam promover ações informativas de conscientização dos apostadores para se prevenir o transtorno do jogo patológico. Previu-se a elaboração de códigos de conduta e de difusão de boas práticas com o desiderato de não ser incentivada a compulsão [7].
Malgrado a Lei n.º 13.756/2018 e a Medida Provisória, que a alterou, não se refiram, de modo expresso, às vedações atinentes ao ato publicitário, constantes no artigo 37, do CDC, estas aplicam-se à divulgação das apostas esportivas. De acordo com o parágrafo 2º do citado artigo 33, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária poderá estabelecer “restrições e diretrizes adicionais à regulamentação do Ministério da Fazenda”, bem como “expedir recomendações específicas para a comunicação, de publicidade e de marketing da loteria de quota fixa”.
Não se desconsidera a relevância da autorregulamentação, mas esta não possui o condão de reduzir o poder de atuação do órgão fiscalizador e este terá que atentar para as premissas do microssistema consumerista — conjunto normativo de ordem pública e interesse social —, que se sobrepõe aos demais [8].
O Ministério da Fazenda foi erigido como o órgão encarregado de tratar das questões que envolvam as apostas esportivas e as suas atribuições podem ser congregadas em três conjuntos: 1) regulatória; 2) fiscalizatória; e 3) sancionatória. O detalhamento das regras referentes ao exercício da atividade, a previsão dos requisitos necessários e a outorga decorrerão de ato deste órgão público. O acompanhamento das atividades pelos agentes operadores e a instauração de procedimento administrativo fazem parte da exclusiva órbita da sua atuação.
As infrações administrativas encontram-se elencadas no artigo 35-C, introduzido pela MP nº 1.182, e aglutinam-se em quatro conjuntos, quais sejam: 1) violação ao obrigatório aval do poder público; 2) publicidade ilícita; 3) embaraços à fiscalização; e 4) atos fraudulentos ou interferências indevidas.
Constituem conduta infracional ofertar apostas esportivas sem a prévia outorga do aparato público, desenvolver atividades em desacordo com o ato de autorização e efetivar divulgações antes da chancela estatal. Óbices e embaraços para a fiscalização, incluindo-se a não disponibilização de dados, informações e/ou documentos, ou o descumprimento de prazos, configuram atos atentatórios.
O cometimento de fraudes ou interferências consistentes em práticas atentatórias à integridade, incerteza, transparência, igualdade entre os competidores, lisura ou higidez dos certames esportivos, são também violações. As sanções aplicáveis podem ser a advertência, a multa, suspensão, proibição de nova autorização e/ou de participar de licitação. Salienta-se que, dentre os fatores que podem agravar a penalidade, o artigo 35-B da Lei nº 13.756/2018 fixou o grau de lesão ou de perigo para a economia, o esporte, os consumidores[9] e terceiros.
Digna de registro é a exígua menção à figura do consumidor na Lei nº 13.756/2018 e na MP nº 1182, restringindo apenas ao quanto, acima, externalizado. A despeito de não pairarem dúvidas sobre a aplicação do microssistema consumerista em prol da tutela dos apostadores, considera-se de inquestionável valia a aprovação do PL nº 3626/2023, para estatuir a sua explícita incidência, primando-se pelo reconhecimento dos direitos básicos assegurados pelo CDC.
As prerrogativas sobre a precisa, clara e ostensiva informação nas apostas esportivas e um serviço de atendimento qualificado desvelam-se de crucial mérito, sobretudo no capitalismo “das plataformas”, como aponta Nick Srnicek [10]. Em regra, dada a comodidade, os indivíduos optam pelas apostas no ambiente virtual, tornando-se essencial a presença de uma firme regulação, segundo Woods e Perrin [11], e uma fiscalização ativa por parte do Ministério da Fazenda, que deverá também se valer de uma atuação integrada e coesa com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
[1] Cf.: PASQUALE, Frank. Platform Neutrality: Enhancing Freedom of Expression in Spheres of Private Power, Theoretical Inquiries in Law, vol. 17, nº 2, p. 487-513, 2016, p. 488.
[2] SCHMITT, Cristiano Heineck. O Estado fornecedor de jogos de apostas. Revista Consultor Jurídico, Coluna Garantias de Consumo, 22 de março de 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-22/garantias-consumo-estado-fornecedor-jogos-apostas. Acesso em: 14 set. 2023.
[3] SCHMITT, Cristiano Heineck. Jogos de apostas esportivas online: o caminho da legalidade até a proteção do consumidor. Migalhas Contratuais, 5 de dezembro de 2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/378018/jogos-de-apostas-esportivas-online. Acesso em: 14 set. 2023.
[4] MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Ricardo Lorenzetti trata também do princípio quanto ao momento em que se manifesta, referindo –se à “vulnerabilidade atual” e “potencial”, bem como levando em consideração a dimensão dos atingidos, apontando a “vulnerabilidade geral (estrutural)” ou “especial (conjuntural)”. LORENZETTI, Ricardo L. Consumidores. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni, 2003, p. 87.
[5] Cf.: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/parlamentar-de-inquerito/57a-legislatura/cpi-sobre-manipulacao-de-resultado-em-partidas-de-futebol.
[6] De acordo com ao artigo 35-E, parágrafo 1º, da Lei em análise, as proibições estendem-se aos cônjuges, companheiros e parentes, da linha reta e colateral, até o segundo grau.
[7] Cf.: BARBER, Benjamin R. Consumido. Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2009. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.
[8] Cf.: MARQUES, Claudia Lima. Introdução ao Direito do Consumidor. In: BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 9. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 39-64.
[9] Sobre a proteção dos consumidores, cf.: BOURGOIGNIE, T. Droit de la consommation: un droit rebelle. Revista de Direito do Consumidor, 113, 26, p. 19-27, 2017. PAISANT, G. Défense et illustration du droit de la consommation. Paris: LexisNexis, 2015, p. 7-15; 16-22.
[10] SRNICEK, Nick. Platform capitalism. Cambridge: Polity Press, 2018, p. 39.
[11] WOODS, Lorna; PERRIN, William. Online harm reduction: a statutory duty of care and regulator, abril 2019, p. 5. Disponível em https://www.carnegieuktrust.org.uk/publications/online-harm-reduction-a-statutory-duty-of-care-and-regulator/. Acesso em 03 out. 2023.
Fonte: Conjur